21 Fevereiro 2013
"A renúncia de Bento XVI só é considerada grandiosa ou profética porque ocorreu num ambiente enrijecido. Em corporações e instituições políticas modernas, a troca de poder é normal, desejável e esperada. Fazendo uma metáfora, piscar o olho é coisa corriqueira e nada digna de comemorações, a não ser que ocorra num paciente há longo tempo em coma. Essa renúncia mostrou que ainda há vida no doente principal, a Igreja Católica", escreve Jorge Claudio Ribeiro, professor livre-docente e titular do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Eis o artigo.
... “para governar a barca de são Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que hei de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi encomendado”.
Essa é, decerto, uma das mais revolucionárias declarações deste início de século. Ao anunciar sua renúncia, o papa Bento XVI manifestou uma constatação que, de tão óbvia, tomou de surpresa a tantas pessoas (dentre as quais não me incluo) pelo mundo afora. Que constatação é essa? Que, como todos os seres vivos, também ele tem/é um corpo. Tal como você, eu, tal como Jesus. A corporeidade é nosso inarredável ponto de partida, que nos torna sensíveis, relacionais e históricos.
Constatar isso talvez tenha sido árduo para o cardeal Ratzinger, que passou boa parte de sua vida religiosa e pontificado olhando para a corporeidade alheia, em geral nela apontando o que considera mazelas e desvios. Enquanto isso, instalou-se num mundo platônico, em que manejava com maestria ideias e doutrinas distantes dos dilemas mais prementes dos companheiros e companheiras de humanidade.
Eis que – à semelhança de casais homossexuais, usuários de camisinha e de anticoncepcionais, perpetradores e vítimas de pedofilia, sacerdotes doidos para casar (ou padres casados ansiosos para voltar ao serviço sacerdotal), freiras que o povo quer ver celebrando missa e sacramentos, assim como jovens mergulhados em aluvião hormonal – de repente o papa exclama: “Olhem, tenho um corpo!”. E pede: “Estou com idade avançada. É difícil compreender isso?”.
Aqui surge um segundo componente da corporeidade, que introduz carne e sangue no asséptico silogismo aristotélico “Todos os homens são mortais, eu sou um homem, deinde sou mortal”. Velhice, dor e doença são sinal da finitude que, por sinal, deslanchou a conversão do príncipe Sidarta. Mesmo que os teólogos elaboradores de dogmas insistam em que papas são infalíveis (ok, em matéria de fé), quando as articulações doem, a próstata incha e dificulta a reles ação de urinar, o coração exige uma ajuda tecnológica e periódica troca de pilha e quando isso tudo desemboca em enorme cansaço, só aí é que se vê que papas, como o atual, são falíveis no nível mais fundamental.
Ao contrário da crença que os curiais tentaram incutir durante a agonia de João Paulo II – midiaticamente exposta ao longo de doze anos – o papa não é um holograma, um ectoplasma, um símbolo. Não, o papa só será simbólico e inspirador se assumir radicalmente a nossa comum condição humana. A tanto, Bento XVI foi impelido por seu corpo e contradisse a tradição de que o papado dura até o momento em que seu titular entra para a eternidade.
A renúncia de Bento XVI só é considerada grandiosa ou profética porque ocorreu num ambiente enrijecido. Em corporações e instituições políticas modernas, a troca de poder é normal, desejável e esperada. Fazendo uma metáfora, piscar o olho é coisa corriqueira e nada digna de comemorações, a não ser que ocorra num paciente há longo tempo em coma. Essa renúncia mostrou que ainda há vida no doente principal, a Igreja Católica.
Agora se anuncia a boa notícia: o gesto de Bento XVI o coloca no meio de nós. Daqui para a frente, todos os papas terão oficialmente um corpo, serão mortais, como todos os seres vivos. Sê bem vindo à raça humana, Herr Joseph, nós amorosamente te acolhemos.
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O papa tem corpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU