17 Setembro 2023
Olhos d’água (Pallas, 2014), de Conceição Evaristo, foi o tema do quarto debate da iniciativa Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares, que tem como objetivo estimular a leitura e o exercício do debate, lançando questionamentos e luzes sobre o universo das relações étnico-raciais e seus desafios transversais.
“É uma obra que repercute o clamor de um povo que sabe que merece viver e que coletivamente combinou de não morrer para que não seja perdida 'a alegria do nosso povo'”, escreve Jeferson da Costa Vaz, doutorando em Filosofia pelo Joint PhD Programme – Dottorato in Scienze Umane dell’Università degli Studi di Ferrara e pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCPR, em resenha elaborada especialmente para o encontro, no qual destacou importantes dimensões-chave do pensamento de Conceição Evaristo.
A iniciativa do CEPAT, com o apoio de diversos parceiros, ocorreu na noite do dia 14 de setembro, nas dependências da PUCPR.
A capacidade de expressar muito fazendo uso de poucos recursos, ou seja, de falar muito com pouco, é algo característico de um excelente conto. Podemos mencionar como exemplo Machado de Assis (1839-1908) que com maestria realizou esse feito a ponto de ser considerado o maior contista em lusófono até então. É pressuposto que um conto deve expressar, dizer o muito com o pouco, na medida em que esse gênero literário não permite construções muito extensas e com a presença de muitos detalhes e informações.
Jeferson da Costa Vaz apresentando a obra "Olhos d'água", pela iniciativa "Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares"
Não só Machado de Assis mostrou com maestria essa habilidade, mas também outros autores e autoras do ramo literário. Poderíamos aqui propor uma lista exaustiva, mas com isso não atenderíamos aos requisitos necessários para a construção de uma resenha, uma vez que esse gênero literário também pede poucas palavras. Nesse sentido, a cara leitora e o caro leitor deverão fazer um esforço para o conhecimento das características de outros e outras contistas, caso tenham o interesse de aferir de que forma o muito é expresso com pouco nas mais diversas obras. Advirto isso, pela via de que na presente resenha me limitarei a falar de uma contista tendo como recorte um de seus livros, a saber: o livro Olhos d'água da escritora mineira Conceição Evaristo.
O presente livro é composto de 15 contos. São produções que falam o muito com o pouco porque fazem soar a voz, antes de tudo, das vivências da própria autora, ou melhor, de suas escrevivências, conforme ela mesma prefere conceituar. Isso quer dizer que seriam narrativas autobiográficas? A resposta à pergunta é que não. Com o conceito de escrevivência a autora não sugere um relato autobiográfico egóico e unilateral. São escritos que urgem da vivência individual, mas que sobretudo expressam outras vivências, verídicas ou projetadas como possibilidade, do povo preto em decorrência do fato de ter sido historicamente injustiçado e de sofrer até os dias de hoje as consequências do racismo existente no Brasil desde que ele é Brasil, ou seja, desde que foi invadido e nomeado assim. As escrevivências, portanto, não são fruto apenas da vida pessoal de alguém, mas de sua consciência de ser pertencente a um povo que vivencia situações que demandam uma resiliência quadruplicada para que se cumpra a promessa expressa em passagem do penúltimo conto desse livro, a saber: "a gente combinamos de não morrer" [1].
A escrevivência não se restringe a uma singular vivência, mas contempla a vivência de outras subjetividades que fazem parte do nosso tecido social e padecem nesse meio em consequência do racismo estrutural [2] existente no nosso contexto. Em resumo, as vivências da autora não ficaram apenas no âmbito da singularidade, mas se projetaram como um grito, uma voz que fala por muitas e muitos. Para potencializar um espaço para o ecoar dessas vozes e o escoamento dessas dores, Evaristo escreveu contos. O muito é falado nesses contos, na medida em que percebemos ali conceitos como o de ancestralidade, axé, oralidade, o já citado racismo estrutural, maternidade, amor, empoderamento e ainda outros mais numa obra que não se lança para trabalhar especificamente esses conceitos. Ou seja, mesmo sem se propor como filosóficos, os textos de Conceição Evaristo permitem ao público leitor o reconhecimento de conceitos que ali urgem e repercutem noções das filosofias africanas.
É imprescindível comentar que ela atua como uma griotte, uma djeli [3] ao narrar e propor as próprias escrevivências de maneira que podemos encarar como verdadeiras crônicas sociais que denunciam as mazelas sofridas pelo povo preto. Ela narra, sendo assim, com a responsabilidade de propor uma conduta crítica do público leitor. Ela o faz como os mais velhos e as mais velhas faziam no samba, dizendo no verso que o nosso povo sofre e que providências são necessárias para o melhor das próximas gerações.
O público leitor deve se dar conta de que as escrevivências propostas no livro Olhos d'água não se limitam a refletir aspectos agradáveis da nossa realidade. Portanto, o lado rude do ser humano é posto ali sem maquiagem, sem máscaras. Citando Racionais MC's, poderíamos dizer que a narrativa tem um caráter "violentamente pacífico, verídico" [4], que vem para sabotar o raciocínio de quem acredita na narrativa mítica e fantasiosa da "democracia racial" [5] e de que vivemos em um mundo acolhedor e de irmandade entre povos diferentes.
Assim como os povos indígenas, nas palavras de Krenak, "estamos em guerra" [6]. Ou seja, o povo preto está em guerra, lutando por ocupação em espaços de tomada de decisão, por vida digna, lutando contra a violência policial e ainda por outras pautas. Os contos, sendo assim, desmancham uma possível noção fantasiosa das relações étnico-raciais e expressa realidades na sua concretude. É um livro que nos leva a questionar: "a semelhança com a realidade é mera coincidência?".
Advertimos isso porque as escrevivências colocam no centro das discussões a vida de uma Maria que foi linchada enquanto regressava para a sua casa na esperança de encontrar os seus filhos. Narra também a vida de Duzu-Querença, que foi prostituta e que, com a velhice, passou a viver nas ruas na condição de mendiga. Narra também a vida breve da criança que veio a óbito por conta de uma bala perdida consequente da intervenção policial numa comunidade [7]. Narra o casal que foi assassinado brutalmente pela polícia que procurava pelo homem, mas nem perguntou quem era a mulher e tampouco o ser nascituro que estava no ventre dela. Narra a breve vida do menino Lumbiá que queria conhecer de perto o Presépio e colocar flores nas mãos do menino Jesus e que, para isso, adentrou numa loja, numa propriedade privatizada, para tentar vivenciar um sonho pueril.
Contudo, narra também a vida de Cida que saiu a correr em mais um dia regrado de trabalho, de controle do tempo, da rotina e que decidiu correr livre do trabalho, do tempo e da rotina. A mulher que, portanto, correu para a vida e não correu da vida rumo aos mecanismos que nos fazem esquecer da vida. Narra a escolha empoderada de Natalina que escolheu ter um único filho por ter a certeza de que a criança não teria um pai, até porque não careceria disso. Narra, evidentemente, a cor misteriosa dos olhos da mãe que se projetam como espelho refletido nos olhos da filha e da neta. A obra Olhos d'água fala ainda mais do que conseguimos sintetizar nestas linhas.
Potencializa o senso crítico e o empoderamento da população negra. Projeta-se para auxiliar todas as pessoas que se propõem a fazer coro à luta antirracista. É uma obra que repercute o clamor de um povo que sabe que merece viver e que coletivamente combinou de não morrer para que não seja perdida “a alegria do nosso povo” [8].
ALMEIRA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação da Biblioteca Nacional, 2016.
FREYRE, G. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.
KRENAK, Ailton. Entrevista. In: GUERRAS do Brasil.doc. As guerras da conquista. Direção de Luiz Bolognesi. São Paulo: Buriti Filmes, 2019.
NOGUERA, Renato. “Antes de saber para onde vai, é preciso saber quem você é”: tecnologia Griot, Filosofia e Educação. Problemata: R. Intern. Fil., vol. 10, n. 2, 2019, p. 258-277.
[1] Menção ao título e à frase talvez de mais impacto de um dos contos do livro.
[2] Com este conceito, Silvio Almeida propôs a forma na qual o racismo está imbricado nas estruturas econômicas e políticas da nossa sociedade. Para mais informações sobre esse conceito, ver: ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[3] Griottes, Griots e Djali são conceitos que se harmonizam no sentido de que são palavras que buscam definir pessoas que, nas tradições africanas, eram incumbidas de comunicar as coisas. Eram, portanto, contadoras e contadores de histórias, poetisas e poetas, crônicas e crônicos que narravam fatos ou histórias para fazê-las perpetuar pelo povo. Definindo as funções dessas personalidades, o filósofo Renato Noguera propôs o seguinte: “As funções são: genealogista, filósofo, historiador, contador de histórias, conselheiro, orador, diplomata, mediador de conflitos, intérprete de várias línguas, músico, compositor, cantor, ator, professor, repórter, supervisor, testemunha em muitas cerimônias que são distribuídas em três áreas: artes, política, e, ciências e filosofia. Por artes englobamos: a música e o teatro. No que diz respeito à política: as funções de embaixador(a), conselheira(o) de famílias nobres/gestão de conflitos, supervisão organizacional. Os campos das ciências e da filosofia circunscrevem atividades como história, filosofia, intérprete de línguas, repórter, ensino, psicologia e medicina” (NOGUERA, 2019, p. 266).
[4] Citamos aqui uma passagem do rap Capítulo 4, Versículo 3 do álbum Sobrevivendo no Inferno de Racionais MC’s.
[5] O conceito de democracia racial é de alcunha de Gilberto Freyre, na obra Casa Grande, Senzala. Trata-se da noção de que o Brasil é um país plural em decorrência da miscigenação pacífica que ocorreu entre os povos europeus, indígenas e africanos. Segundo Freyre (2003, p. 70): “Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação colonizadora”.
[6] Em documentário Guerras do Brasil.doc, Krenak, em entrevista, afirma o seguinte: “Nós estamos em guerra. (...) O seu mundo e o meu mundo estão em guerra. Os nossos mundos estão todos em guerra. A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz é para continuarmos mantendo a coisa funcionando. Não tem paz em lugar nenhum. É guerra em todos os lugares o tempo todo” (KRENAK, 2019).
[7] Aqui fazemos referência ao conto Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos.
[8] Menção ao significado do nome Ayoluwa, personagem principal do último conto do livro.
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'Olhos d’água' repercute o clamor de um povo que coletivamente combinou de não morrer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU