Para o entrevistado, o governo gaúcho está na contramão das decisões ecologicamente sustentáveis e os governantes ecocídas pagam para ver à espera da próxima tragédia climática
Em menos de um ano os gaúchos viveram dois extremos. Inundados pela chuva no inverno passado, sufocados por um calor histórico no último verão com a segunda maior média histórica de temperaturas acima dos 40º graus. O Rio Grande do Sul tornou-se, tragicamente, um exemplo emblemático das mudanças climáticas em curso em todo o planeta. Se por um lado a escala global dessas alterações depõem em favor de um discurso de que não havia nada que pudesse ser feito, por outro, essa falácia cai totalmente por terra.
Tal realidade não foi suficiente para que o governo Executivo e o Legislativo estadual voltassem atrás das alterações feitas “a toque de caixa” nos Códigos Ambiental e Florestal do estado. Diante dessas mudanças nas legislações e das enchentes que devastaram o estado em 2024, em agosto do ano passado, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) entregou um estudo para a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) do Rio Grande do Sul, com um comparativo referente às mudanças no Código Estadual do Meio Ambiente e do Código Florestal, alertando para os problemas. Um trabalho conjunto com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e cientistas. Em fevereiro deste ano, após encontro com técnicos da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e a titular da pasta, Marjorie Kauffmann, a entidade manifestou a insatisfação com falta de respostas por meio de nota, salientando que “a devolutiva da Sema foi insatisfatória pela superficialidade e inadequação”. Acesse na íntegra aqui.
Entre os principais erros está a modificação no conceito de várzea, que foi substituído “de forma a flexibilizar a interpretação da ocupação destas áreas”, assinala Heverton Lacerda, presidente da Agapan. “A supressão do conceito serviu para minorar a importância que deve ser dada às áreas sujeitas à inundação, que se diferem das áreas alagadiças”, sinaliza. “O artigo 179 flexibiliza a ocupação das várzeas mesmo diante do cenário no qual o RS se apresenta como estado brasileiro mais sujeito aos extremos climáticos e com amplo histórico de cheias e secas com grandes impactos socioambientais”, comenta.
Recentemente duas comitivas com o governador do estado, Eduardo Leite, e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, estiveram na Holanda com a finalidade de importar soluções para a crise ambiental. Lacerda, no entanto, trata a viagem como uma escolha equivocada, que gerou custos e poluição. Fizeram uma “viagem de turismo aos países baixos para buscar soluções que poderiam ser encontradas aqui mesmo, e ainda mais qualificadas em razão do conhecimento que nossos técnicos e cientistas têm sobre a nossa região”, critica. “Politicamente, é mais vantajoso para eles dizerem que trouxeram soluções de outros países – em especial soluções onerosas de engenharia – do que reconhecer que a sociedade e os povos tradicionais, em conjunto, têm as respostas necessárias em casa”, evidencia. Ele ainda adverte: “estamos, literalmente, pagando para ver”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Heverton Lacerda lamenta que os governantes “insistem na intenção de manter esse modelo ecocída atual”. O ambientalista enfatiza que “o governo gaúcho está na contramão das decisões ecologicamente corretas”, além de “não termos governantes sensíveis às questões ambientais. Estamos sendo conduzidos por inaptos do ponto de vista ecológico”.
Heverton Lacerda (Foto: Graziela Lopes | Brasil de Fato)
Heverton Lacerda é presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – Agapan, jornalista e ambientalista. Especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia e integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental UFRGS/CNPq.
IHU – O que é a Lei 15.434/2020 e quais foram as mudanças mais sensíveis no Código Ambiental?
Heverton Lacerda – A Lei 15.434/2020 é o atual Código Estadual do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul, que substitui a Lei Estadual 11.520/2000, o Código original.
O problema que identificamos começa já pela forma como foram feitas as alterações. Ao contrário do que foi feito na criação do código original (Lei 11.520/2000), que contou com amplo debate aberto com a sociedade ao longo de uma década, o código substituto (Lei 15.434/2020) tramitou a toque de caixa, inibindo a ampla participação social. Não foram oportunizados, por exemplo, espaços e tempo hábil para a formação de comitês técnicos específicos para analisar e debater artigo por artigo. A avaliação em audiência pública, como foi feita, não é adequada para estudos e propostas de alterações consistentes em leis importantes, como são as ambientais.
O que aconteceu foi uma manobra política nada democrática para alterar o Código, mantendo pessoas e entidades interessadas dispersas. Além disso, as alterações mudaram e suprimiram conceitos importantes que podem representar riscos ao meio ambiente, prejudicando tanto a fiscalização quanto a segurança jurídica de empreendedores e a segurança ambiental de bairros ou até cidades inteiras.
No Artigo 1º do Código já identificamos falhas e incoerências. Se, como aponta o artigo, é imposto “ao Estado, aos municípios, à coletividade e aos cidadãos o dever de” defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado a que “todos têm direito”, quem está descumprindo com suas obrigações? Pois é evidente que o meio ambiente não está mais ecologicamente equilibrado. As alterações climáticas e os eventos extremos são evidências cruas disso, assim como os nossos rios poluídos.
Se estamos sob um sistema político representativo, será que a coletividade e os cidadãos a que se refere o texto devem ser cobrados da mesma forma que os eleitos, que são pagos pela população para governar o Estado e os municípios? Seguidamente, vê-se parlamentares cobrando o direito de decidir em nome dos que o elegeram, alegando a tal representatividade – que seria total e irrestrita, na visão deles –, mas será que vão assumir as responsabilidades por decisões equivocadas que nos trouxeram a este cenário de crise climática e degradação ambiental?
Esse ponto é um dos mais sensíveis no nosso ordenamento social e que ainda não está sendo tratado juridicamente de forma apropriada. Os responsáveis pela elaboração e aprovação de leis precisam ser responsabilizados por suas determinações também quando o resultado é socialmente prejudicial, como é o caso da Lei 15.434/2020, o código alterado por interesses econômicos acima de seu objetivo ambiental.
Na nossa visão, e aqui falo a partir de entendimentos que temos dentro da Agapan, através das visões de diversos especialistas que estudam o tema e atuam na área ambiental, o que precisava era implementar o Código original, e não alterá-lo como foi feito.
Outro ponto que precisa de atenção é o fato de que as alterações feitas para o novo Código trouxeram insegurança jurídica. Ao contrário do Código original, que não gerou problemas na Justiça, o Código substituto já é alvo de ações e decisões do STF por inconstitucionalidade.
O autolicenciamento – chamado eufemisticamente de Licença por Adesão e Compromisso (LAC) – é um caso desses. E não foi por falta de alerta, pois sempre nos posicionamos publicamente sobre a irresponsabilidade que o governo e os parlamentares estavam propondo, em razão dos riscos que o autolicenciamento representa. Poder-se-ia comparar o autolicenciamento com o automedicamento. É como se o Estado tivesse um médico à disposição para examinar e receitar tratamento, mas determinasse o uso de drogas sem supervisão profissional. É isso que acontece com o autolicenciamento. É uma grande irresponsabilidade e falta de compromisso com a sociedade.
Cabe ressaltar que os estudos que encaminhamos ao governo do Estado sobre as alterações no Código – aos quais aguardamos as respostas adequadas – contam com as participações de membros da Agapan, de analistas ambientais da Fepam e de pesquisadores da UFRGS.
IHU – Como o atual Código Estadual de Meio Ambiente trata das questões de área de várzea dos rios, Áreas de Proteção Permanentes e de não ocupação de regiões passíveis de alagamento?
Heverton Lacerda – O código substituto suprimiu o conceito de várzea, que dizia, no artigo 14 do original, que “áreas que equivalem às várzeas, vão até a cota máxima de extravasamento de um corpo d'água em ocorrência de máxima vazão em virtude de grande pluviosidade”. Entendemos, conforme consta no documento enviado ao governador e à Sema, “que a supressão do conceito serviu para minorar a importância que deve ser dada às áreas sujeitas à inundação, que se diferem das áreas alagadiças”.
Áreas sujeitas a inundações são áreas com risco de inundar, embora este fator só apareça mediante modelagens e estudos de hidrologia. Também a retirada do conceito de Área Sujeita à Inundação, mantendo somente o conceito de Área Alagadiça, de modo genérico, pode levar a erros de avaliação, visto que remete área alagadiça é uma categoria próxima estruturalmente aos banhados, charcos etc. Populações humanas podem ficar em situações de risco por esse importante detalhe.
É importante que as áreas que são dos rios, as várzeas, sejam preservadas. Quando forem áreas de uso público, como o caso do Parque da Harmonia, em Porto Alegre, por exemplo, que sejam projetadas, com controle social, para serem inundadas ocasionalmente. Essa proteção tem que valer para todas as áreas inundáveis.
O argumento dado pelo governo é que o conceito de várzea já estava previsto no Código Florestal (Lei 12651/2012), e de fato está, porém com um conceito muito mais abrangente que o retirado da lei gaúcha. Conforme nossa equipe técnica, ao prever a cota máxima de extravasamento no conceito de várzea, é garantido a segurança jurídica de toda área que sofre com a influência hidrológica do corpo hídrico. Ao remeter o conceito ao Código Florestal, que determina que são as áreas marginais aos rios que permitem o escoamento da enchente, ao invés de legislar para restringir e proteger a população e o meio ambiente, a lei gaúcha é alterada de forma a flexibilizar a interpretação da ocupação destas áreas.
A manutenção somente do conceito de área alagadiça demonstra o desmonte ambiental no código. O termo alagamento está muito mais associado à drenagem urbana e ao acúmulo de água em áreas impermeáveis, enquanto o conceito de área sujeita à inundação remete a rios, arroios e toda sua relação com o ambiente no entorno, sejam as matas ciliares, várzeas e banhados.
Mas os problemas não param aí. O Parlamento [gaúcho] ainda aprovou, no ano passado, a lei que permite construir reservatórios de água em Áreas de Preservação Permanente (APP) para fins de produção agrícola não sustentável. Ou seja, estão avançando sobre áreas de grande importância ecológica para insistir em um modelo agrícola inadequado. Quanto mais eliminam áreas naturais, que realizam serviços ecológicos vitais, mais ampliam o problema. Se os reservatórios autorizados pela lei são para a produção, que sejam feitos em área já impactada pela própria produção, que já são a maior parte.
Ainda tem a questão que o código substituto permitiu o parcelamento do solo (loteamentos) em áreas sujeitas à inundação. O artigo 179 flexibiliza a ocupação das várzeas mesmo diante do cenário no qual o RS se apresenta como estado brasileiro mais sujeito aos extremos climáticos e com amplo histórico de cheias e secas com grandes impactos socioambientais.
É lamentável que o governo e a base parlamentar não tenham a sensibilidade ambiental necessária para ver isso. Estão destruindo os nossos biomas em nome de uma agricultura exportadora predatória que não garante alimento para todos.
IHU – Por que o tema não foi (e não é) debatido mais amplamente com a sociedade civil? Que canais de diálogo existem junto às instâncias governamentais?
Heverton Lacerda – É evidente que o Código foi alterado por pressões de setores interessados em flexibilizar a lei para ‘facilitar’ a implementação de projetos ambientalmente precários e suspeitos. Quando o debate é aberto à sociedade de forma ampla, fica mais difícil alterar normas que atendam a pequenos grupos de interesse, caso essas alterações sejam prejudiciais à coletividade. Quando a população e a sociedade civil se apoderaram das propostas, o debate pode tomar rumos que não interessam a esses grupos de interesse. Daí a forma açodada como as alterações foram feitas, pois não querem informar e ouvir a população.
Em relação aos canais de diálogo, considero que são falhos e, propositalmente, de difícil acesso. Os conselhos de meio ambiente, a exemplo do estadual e do municipal de Porto Alegre, são compostos majoritariamente por quem não defende o meio ambiente. Ou seja, os interesses extra-ambientais predominam nos encaminhamentos. O mesmo vale para o conselho que está definindo as ações pós-enchentes. As entidades ambientalistas não têm assento nos principais fóruns de decisões. As definições estão sendo encaminhadas da forma tradicional, sem olhar ecológico, com pseudossoluções de mercado.
Um exemplo é essa viagem de turismo aos países baixos para buscar soluções que poderiam ser encontradas aqui mesmo, e ainda mais qualificadas em razão do conhecimento que nossos técnicos e cientistas têm sobre a nossa região. Vão gastar todos os recursos financeiros arrecadados e não vão resolver o problema. Estamos, literalmente, pagando para ver.
IHU – Passado quase um ano do começo das enchentes no RS e olhando em perspectiva e transversalmente as ações governamentais com a legislação ambiental, o que explica a magnitude da tragédia e seus desdobramentos sociais?
Heverton Lacerda – Muitas pessoas ainda estão sofrendo com os impactos das enchentes. Conheço uma cadeirante com doença autoimune que até hoje não conseguiu voltar para o seu apartamento, no bairro Rubem Berta, onde a água subiu até o teto inutilizando tudo enquanto ela estava internada para fazer exames. Muitos outros casos ainda estão sem solução. A tragédia ainda está viva na memória de todos, em especial dos gaúchos e de quem vive aqui Rio Grande do Sul. Mas, basta uma pesquisa rápida nas redes sociais e no noticiário para ver que várias partes do mundo estão enfrentando problemas de inundações e calor extremo. Isso tende a se agravar, pois os cenários apontados por modelagens científicas estão se concretizando.
A temperatura média já encostou no primeiro ponto, que é de aquecimento de 1,5ºC acima da média do período pré-industrial. Só com isso já estamos vendo algumas mudanças nos eventos extremos. Se chegarmos a 2ºC, 3º ou 4ºC, não aguentaremos por muito tempo. Seremos exterminados, majoritariamente. Alguns poucos bilionários e seus políticos associados podem até se salvar, inicialmente. Isso até parece cena de filme – e várias produções já encenaram situações graves com esses argumentos.
Apesar da grande quantidade de informações que temos sobre o problema, não vemos isso claro nas ações e manifestações dos governantes, alertando a população. Chefes de poderes, em especial dos Executivos, em todas as esferas, continuam com olhares focados na questão econômica, com as características de cada ideologia, claro, em maior ou menor grau.
Os planos de ações climáticas que circulam por aí tratam mais sobre enfrentamento e adaptação às mudanças climáticas, mitigação e resiliência, do que propriamente sobre a reversão dela, pois isso exigiria mudança total de modelos de produção e estéticas de costumes e consumo. As próprias Conferências das Partes – COPs, onde se reúnem os chefes de Estado de diversos países, têm produzido mais retóricas do que resultados até agora. Aqui no Brasil, ainda enfrentamos lobbies para ampliar o tempo de operação de usinas a carvão e explorar petróleo na foz do Amazonas e na bacia de Pelotas. É muita insensatez!
Um amplo e potente projeto de educação e conscientização ambiental seria de grande ajuda, inicialmente, para atrair a população para o polo ativo de iniciativas que podem nos ajudar a reverter mais rapidamente esse processo de aquecimento global. Mas não vemos isso acontecendo. Mesmo com enchentes e ondas de calor que estão causando mortes, os governos seguem se movimentando como se fosse algo pontual e passageiro. Ou seja, respondendo mais diretamente à pergunta, a magnitude das tragédias não pode ser atribuída isoladamente aos políticos que estão no governo hoje, mas também a eles por não estarem tomando atitudes corretas e continuarem seguindo cartilhas antigas, que bebem nas fontes do negacionismo climático persistente.
É preciso ampliar a visão para perceber as formas corretas de conviver com a natureza, e isso os povos originários têm muito a ensinar. Não adianta recorrer a soluções temporárias de engenharia, pois os impactos causados por grandes obras acabam enfraquecendo ou eliminando as soluções que a própria natureza apresenta para manter o equilíbrio ecológico. As obras humanas precisam impactar o mínimo possível e conviver harmoniosamente com a natureza, afinal, somos parte dela. Ao destruir a natureza, como temos feito nos últimos séculos, estamos também nos prejudicando.
Estão fazendo exatamente o contrário do que é necessário: não vemos projetos de educação ambiental de boa qualidade por parte dos governos, nem iniciativas para aprender e melhorar a convivência com a natureza. Onde estão os povos indígenas, que não são ouvidos pelos políticos tomadores de decisões? Por outro lado, o que percebemos é que estão focando em soluções temporárias e caras de engenharia. É mais do mesmo.
IHU – Como está a questão do Zoneamento Ecológico-Econômico? O tema foi votado? Como ficou o repasse de financiamento da ação previsto em R$ 9 milhões?
Heverton Lacerda – O Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) é um instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) que serve para orientar tomadas de decisões públicas e privadas. Um dos objetivos é estabelecer áreas prioritárias para conservação, preservação e recuperação ambiental, assim como para o desenvolvimento econômico. O ZEE-RS serve para ser usado junto ao sistema de planejamento do Estado. O processo de criação do Zoneamento Ecológico Econômico do RS iniciou em 2012. A última notícia que consta no blog do projeto é de 2019. Em 2021, o governo Leite encaminhou à Assembleia Legislativa na condição de um projeto de lei, o PL nº 236/2021, que foi arquivado. Isso é estranho, porque o governo tem maioria na Assembleia e aprovou todos os projetos que quis até agora. Parece um jogo de cena do governo para assegurar o discurso de que fez a parte dele (encaminhando) e para se livrar de possíveis críticas. É medonho.
Não temos mais informações sobre possíveis andamentos do ZEE-RS nem sobre o motivo de estar engavetado há tanto tempo.
IHU – Na última semana de fevereiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, estavam em missão na Holanda para conhecer alternativas em relação às enchentes. Pelo que foi divulgado pela imprensa e pelas redes sociais dos governantes, o que apareceu de novidade em relação ao tema?
Heverton Lacerda – Basicamente, fica claro que foram lá para ver obras e soluções urbanísticas que podem muito bem ser apresentadas aqui no Brasil por técnicos, pesquisadores e profissionais de grande qualidade que temos e que já atuam há muitos anos. O principal problema não é fazer obras, mas compreender, de forma ampla, como um todo, o que está acontecendo e como enfrentar os problemas. Percebo que, em algumas entrevistas, alguns políticos já se referem ao que estamos apontando desde o início: que toda e qualquer solução tem que vir com base nas necessidades da natureza. Para isso, não precisavam ter viajado. E isso não pode ser só retórica. Para encontrar soluções com base na natureza, precisa conversar com quem entende e respeita a natureza. Isso não está no mercado à disposição, mas está na sociedade, em especial no movimento ambiental, nas comunidades tradicionais e nas universidades.
Um exemplo de solução com base na natureza, como já estamos afirmando há vários anos, é a recomposição das matas ciliares nas bordas dos nossos rios e um grande programa de arborização de nossas cidades, com a diminuição de áreas concretadas e asfaltadas. Isso já ajuda na amenização do calor e na absorção das águas das chuvas, além de diminuir o impacto das enchentes e contribuir para a captura de CO². Várias outras iniciativas podem ser tomadas, como a mudança gradual do modelo agrícola, implementando um sistema mais ecológico, a diminuição do uso de combustíveis fósseis, e a realocação de comunidades que estão em locais de risco, com base em estudos de zoneamentos que nossos técnicos e universidades podem muito bem fazer com qualidade excepcional, o incentivo ao consumo consciente, reduzindo a necessidade de ampliar cada vez mais a produção etc.
Mas parece que nada disso interessa aos governantes, que insistem na intenção de manter esse modelo ecocída atual. Viajar gerou gastos públicos e ampliou a emissão de gases de efeito estufa. Isso foi mais uma escolha equivocada. Não temos governantes sensíveis às questões ambientais. Estamos sendo conduzidos por inaptos do ponto de vista ecológico.
IHU – Um tema que apareceu, neste sentido, foram as áreas esponjas na Holanda. A prefeitura, no entanto, autorizou, ao privatizar, por exemplo, o projeto de calçamento do Parque da Harmonia. Em que sentido projetos como este podem, de fato, aparecer na capital gaúcha?
Heverton Lacerda – Os locais com efeito esponja, ou seja, que conseguem absorver parte da água que extravasa de corpos hídricos e acumulam pela precipitação, não são novidades. Inclusive, esse é um ponto que discutimos nas alterações do Código Ambiental. As áreas sujeitas à inundação, áreas alagadiças, banhados, charcos são estruturas de solo que precisam ser respeitadas. Na nossa opinião, é possível ir além do conceito de cidade-esponja, e para isso não é necessário ir à Holanda buscar inspiração.
O que propomos na Agapan é a construção de cinturões ecológicos, que servem ao propósito de absorver excessos de águas e, somado a isso, para produzir alimentos de base ecológica perto dos grandes centros urbanos. É uma iniciativa que só traz benefícios sociais, ambientais e, principalmente, para a saúde e economia das famílias. A ideia está posta e os governos e quem mais quiser pode se apropriar para aprofundar os estudos e executar.
IHU – Enquanto Sebastião Melo estava na Holanda, uma chuva um pouco mais forte deixou o bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre, bastante alagado. Tomo o caso como exemplo para questionar: algo foi concretamente feito para resolver o problema das enchentes na Capital ou em outras regiões do estado?
Heverton Lacerda – A administração municipal já deixou claro que ainda não entendeu o que está acontecendo. Eles estão perdidos por algo que para eles é novo. Afinal, o negacionismo climático vem perdendo força há muito pouco tempo. As mudanças climáticas se impuseram por falta de limites e de atitudes políticas adequadas, que, com raras exceções, [os políticos] sempre voltam suas agendas prioritariamente para os interesses econômicos. É claro que agora a tarefa não é fácil. Evitar que eventos extremos aconteçam com mais frequência e maior intensidade – como é alertado há décadas – não é mais possível e não é tarefa exclusiva de prefeitos e governadores, tampouco de presidentes, isoladamente. A solução definitiva precisa vir de uma coalizão global intensa e persistente. Mas as ações locais de redução de emissões e proteção do ambiente natural são fundamentais. É a soma das pequenas ações que vai resultar no todo necessário.
Nesse sentido, arrisco dizer que, dentro do pouco que foi divulgado e do histórico de atuação da atual gestão municipal de Porto Alegre – vale também para a gestão estadual –, não estamos nada seguros. Se outra chuva forte, nos padrões das que atingiram o Rio Grande do Sul no ano passado, chegar por aqui, os riscos aos quais a população está submetida podem ser até maiores do que antes. As proteções naturais continuam sendo fragilizadas pelas ações humanas. Já em relação aos equipamentos de proteção construídos pelos poderes públicos, pouco sabemos se estão com manutenção em dia e prontos para serem operados adequadamente quando necessário.
Em relação ao estado, cabe ressaltar que ainda estão incentivando projetos para ampliação da silvicultura, em especial os maciços de monoculturas para exploração da indústria de celulose. Esse é um exemplo explícito de que o governo gaúcho está na contramão das decisões ecologicamente corretas. O bioma Pampa está sendo destruído por alterações que aniquilam com sua resiliência natural. As alterações que estão sendo impostas à vegetação natural do Pampa não são poucas. Ao contrário, são ecologicamente criminosas, apesar das leis.
IHU – Voltando a uma abordagem mais ampla, até que ponto a questão das águas, inclusive de acesso a este elemento essencial para a vida, tem sido tratada – incluindo a preservação de nascentes, monitoramento da ocupação próximo aos cursos d’água, proteção das áreas de proteção permanente – a partir de interesses humanitários e a partir de que ponto virou um assunto de “negócios”?
Heverton Lacerda – Essa é uma questão muito ampla, mas que toca em um ponto vital. Cada um de nós pode ter ao menos uma ideia de como nossas águas estão sendo tratadas a partir da observação de nossos rios e demais corpos hídricos. São poucos os que não estão poluídos, especialmente na região metropolitana. O uso para consumo humano só é possível após muito tratamento, que exige gastos de dinheiro público e geram altas contas mensais.
As matas nativas, em especial as espécies de árvores de grande porte que dão sustentação às encostas de morros, já não existem mais, praticamente. Daí os grandes escorregamentos de terras que vimos durante as chuvas do final de abril do ano passado. As matas de encostas e topos de morros, assim como as matas ciliares, que protegem as margens dos rios, são fundamentais para o sistema ecológico que influencia na qualidade de nossas águas. O avanço sobre essas Áreas de Proteção Permanente não recebe fiscalização adequada e, com isso, acaba gerando problemas ecológicos e contribuindo para a crise climática.
No bioma Pampa, as monoculturas de soja, eucalipto e pinus, principalmente, estão destruindo os campos nativos e adicionando agrotóxicos no solo, que podem contaminar, inclusive, o lençol freático. As pulverizações aéreas de venenos agrícolas, além das lavouras, atingem também vegetação nativa, corpos hídricos e comunidades. Um programa da Fepam, com recursos do Fundo de Recursos de Bens Lesados do Ministério Público do RS, está monitorando, desde 2023, a presença de agrotóxicos nas águas superficiais de cursos hídricos das bacias hidrográficas do rio Gravataí e do Alto Jacuí. Já encontraram resíduos de diversos agrotóxicos nos rios.
Os reservatórios artificiais em APPs, como já colocado aqui, são outros problemas, novos problemas em plena etapa inicial das mudanças climáticas. Em um momento no qual deveríamos estar corrigindo os erros, estamos fazendo exatamente o contrário, ampliando-os.
Na Holanda, o governador falou em uma tal “autoridade estadual para as águas”, mas não se refere aos comitês de bacia, colegiados que são instituídos pelo próprio Governo do Estado e contam com participações de representantes da sociedade e de usuários das águas. Será que não seria mais eficaz e econômico aproveitar uma estrutura que já existe do que criar uma nova, do zero?
Em nível oceânico, os plásticos – produtos derivados de petróleo – estão contaminando ecossistemas marinhos em proporções colossais. Pela lógica da logística reversa, bem conhecida do mercado, as empresas responsáveis pela fabricação de plásticos deveriam se responsabilizar – ou serem responsabilizadas – pelo recolhimento desse material tóxico.
Enfrentamos problemas de gestão das águas em níveis locais, regionais e mundial. As indústrias, maiores responsáveis pela poluição, e os governos, que deveriam gerenciar essa questão, se omitem de suas responsabilidades.
IHU – Como compreender que governante, ao menos no nível retórico sejam tão sensíveis a ouvir experiências no exterior, mas muito mais céticos a ouvir especialistas locais, mesmo sendo referências científicas?
Heverton Lacerda – Os governos que temos atualmente no RS e na Capital gaúcha têm visão de mercado, não de Estado. Estão governando a coisa pública com mentalidade de gestão empresarial, de administração privada. Com isso, não olham adequadamente para as potencialidades do setor público e da sociedade civil organizada, que tem muito a contribuir. Politicamente, é mais vantajoso para eles dizerem que trouxeram soluções de outros países – em especial soluções onerosas de engenharia – do que reconhecer que a sociedade e os povos tradicionais, em conjunto, têm as respostas necessárias em casa. Soluções onerosas movimentam a economia, o que é primordial para o pensamento de mercado do governo, mas trazem junto emissões de gases poluentes e interferências pesadas na natureza. Isso amplifica o problema ao invés de resolvê-lo.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Heverton Lacerda – A população precisa despertar para o que está acontecendo com o planeta. A quantidade de informações sobre o problema climático e ecológico é significativa e suficiente para indicar que precisamos agir agora mesmo. Não há mais tempo para esperar. Mas, o que se vê é uma apatia generalizada, agora intensificada pela quantidade de desinformações que circulam nas redes sociais e, inclusive, em alguns veículos tradicionais de imprensa.
Precisamos nos dar conta de que a vida é muito sensível, assim como é o equilíbrio do planeta. O ser humano, em sua maioria, parece não reconhecer suas próprias fragilidades, tampouco as do meio ambiente, por isso, abusa das intervenções que faz na natureza e não cuida dela. Não é à toa que o marco do início das mudanças climáticas e da degradação ambiental em larga escala é a revolução industrial, quando os impactos no planeta começaram a ser feitos em escalas gigantescas.
A solução para essa doença que estamos enfrentando não é simples. Não basta tomar um comprimido, um chá ou fazer uma cirurgia, temos que mudar profundamente a nossa forma de relação com a natureza, da qual fazemos parte. Sim, somos parte da natureza. Destruí-la é destruir a nós mesmos.
Também não é só emitir menos gases de efeito estufa, precisamos melhorar nossas escolhas, consumir menos e de forma consciente. Podemos começar pelas compras do dia a dia, recusando alimentos ultraprocessados e transgênicos de multinacionais, dando preferência a alimentos saudáveis produzidos pelas famílias que praticam agroecologia perto de nós. Podemos caminhar e pedalar mais, diminuindo o uso de veículos automotores que poluem o ar.
O pensamento ecológico é, ao mesmo tempo, simples e complexo. À medida que vamos refletindo sobre ele, tudo vai ficando mais claro. Precisamos nos desvencilhar de quase tudo o que aprendemos pelos meios de comunicação desde a nossa infância, em especial os meios comerciais que nos encheram de propagandas sobre os piores produtos do planeta: refrigerantes altamente adoçados, bolachas recheadas de qualquer coisa colorida e açucarada, enlatados e embutidos com altos teores de sal e gorduras etc.
Resumindo: precisamos mudar nossas atitudes e mostrar aos políticos demagogos, tomadores de decisões e mercados que não aceitamos mais esse modelo ecocída que nos foi imposto e que está nos levando à destruição. Esse pode ser um ponto de partida.