Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o Projeto de Lei n. 151/2023, mas especialistas em Meio Ambiente advertem que o projeto atende a interesses privados e não considera os ecossistemas e demais seres vivos
No dia 12 de março de 2024, os deputados gaúchos aprovaram o Projeto de Lei n. 151/2023, de autoria do deputado Luciano Lorenzini Zucco (Republicanos), que prevê a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Ambiental – APPs. A justificativa seria a de armazenar água para períodos de estiagem. Contudo, considerando a finalidade do projeto, o que os especialistas na questão ambiental abordam é que seria mais coerente criar esses reservatórios na área de produção, afinal é a única área beneficiada por esse tipo de ação. Além disso, os efeitos ecológicos de alteração das APPs acabam afetando negativamente os recursos hídricos.
“Para construir barragens e açudes, seria necessário impactar o pouco que se tem hoje preservado”, explica Heverton Lacerda, jornalista e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental, ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. “Poderiam, sem problemas, criar reservatórios de captação de água das chuvas em área de produção, visto que o objetivo é melhorar a produção. Já há uma área convertida em produção, então que seja essa mesma área utilizada para tal finalidade, deixando as APPs cumprirem as suas”, complementa.
Paulo Brack, professor e pesquisador na UFRGS, também alerta sobre a inocuidade do projeto. “A maioria do parlamento gaúcho opta por tratar os temas ambientais somente pelo viés dos ganhos econômicos para alguns, o que reflete um parlamento imediatista e alinhado a setores gananciosos que querem uma supremacia dos negócios rurais sobre o princípio da precaução e os direitos da natureza”, sustenta.
Heverton Lacerda (Foto: Arquivo pessoal)
Heverton Lacerda é ambientalista, jornalista, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental/UFRGS, especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia e mestrando em Comunicação na mesma instituição. É membro da coordenação do Comitê de Combate à Megamineração no RS, representando a Agapan, fundador e ex-presidente do Instituto de Comunicação Social e Cidadania – InComun, instrutor em projetos sociais populares e presidente da Agapan na segunda gestão consecutiva.
Paulo Brack (Foto: Reprodução | YouTube)
Paulo Brack é mestre em Botânica pela UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS – Consema/RS.
IHU – Quais as consequências ambientais de construir barragens e açudes em Áreas de Proteção Permanente – APPs?
Heverton Lacerda – Cabe destacar, inicialmente, que as Áreas de Preservação Permanente são conceituadas na Lei 12.651/2012 como "área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas". Assim, o projeto de lei dos deputados gaúchos, além de buscar se impor, de forma mais permissiva, sobre a lei federal, desautorizando-a, subverte a finalidade das APPs, em especial no que tange a suas funções ambientais (conforme descritas acima). Para construir barragens e açudes, seria necessário impactar o pouco que se tem hoje preservado. Além disso, o PL gaúcho não dá limites para a quantidade de área que poderia ser destruída para criar reservatórios. Poderiam, sem problemas, criar reservatórios de captação de água das chuvas em área de produção, visto que o objetivo é melhorar a produção. Já há uma área convertida em produção, então que seja essa mesma área utilizada para tal finalidade, deixando as APPs cumprirem as suas.
A finalidade das APPs é preservar a biodiversidade. Os recursos hídricos são elementos de preservação dessa biodiversidade. As APPs são os nascedouros de água. Como pode ser razoável pensar em interferir nesse sistema natural complexo e já tão escasso para criar reservatórios artificiais? Trata-se de uma intervenção antrópica destrutiva e mal posicionada em um local que deve ser entendido com um santuário ecológico de maior valor. Se essa intervenção for autorizada, o que vão querer mais adiante, visto que o modelo de produção do agronegócio é insustentável ecologicamente? É importante ainda refletir que, como já tem sido apontado há muitos anos, o modelo de produção do agronegócio brasileiro exportador é perigoso por depender fortemente de transgenia e venenos químicos com tecnologias importadas e altamente perniciosas aos produtores e ao meio ambiente em geral.
Paulo Brack – As consequências podem ser múltiplas, além do precedente de ilegalidade e reincremento de uma agricultura nem sempre sustentável, em sua maioria voltada à exportação de grãos de soja, em monoculturas que hoje já ultrapassam 6,7 milhões de hectares no RS, compactam o solo, enchem de insumos químicos, entre eles os agrotóxicos. No aspecto ecológico, permite-se retirar a vegetação nativa junto aos cursos ou corpos de água, que pode ser uma mata ciliar ou outro tipo de mata, banhado ou campo nativo que restou, lembrando que a conservação da biodiversidade, em risco de extinção crescente, está circunscrita às Áreas de Preservação Permanente – APPs.
É bom destacar que, oficialmente, 1.084 espécies de flora e fauna do Rio Grande do Sul encontram-se em ameaça de extinção (804 espécies de plantas nativas e 280 de animais silvestres), e pelo menos 10% destas encontram-se junto à ecossistemas aquáticos, dentro ou sob a influência das APPs. Exemplo disso são os lagostins de água doce e límpida, anfíbios, peixes, algumas bromélias, sarandis outras plantas exclusivas de beira de rios, que muito provavelmente desapareceriam com a alteração destes ecossistemas e também das condições de águas correntes, com estas atividades em APPs. Aqui mora um potencial crime contra a natureza, conta a Constituição Federal. Perdem-se, assim, diversas leis que, ao longo de mais de 40 anos após a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal n. 6.938/1981), defendem a biodiversidade.
Lembremos: grande parte do pouco que resta de matas, campos nativos e outros ecossistemas que não foram convertidos em agricultura ou outras atividades antrópicas, está confinado nas APPs. Ao intervir retirando a vegetação que resta nestas faixas de preservação para irrigar lavouras de exportação, estaremos contrariando a Constituição Federal, promovendo maior grau de extinção de espécies de flora e fauna, provocando maior quantidade de assoreamento nos rios e demais corpos de água, esquecendo que a vegetação nativa tem seu “efeito esponja” e dá mais resiliência inclusive fornecendo mais umidade em microclimas associados à agricultura, em épocas de seca.
IHU – O PL n. 151/2023, que autoriza a construção de barragens e açudes em APPs, não contraria a Lei Federal que regula, precisamente, a proteção destas áreas? Diante disso, qual a validade desse tipo de regulação, considerando o ordenamento jurídico vigente?
Heverton Lacerda – Já há manifestação do Ministério Público sobre a inconstitucionalidade do PL. Nesse caso, acredito que a bancada ruralista esteja confiante com a possibilidade de alteração da lei nacional. Além disso, já devem ter carta na manga para o caso de o PL do deputado Zucco não prosseguir. É um jogo político que envolve grandes interesses econômicos privados.
Paulo Brack – As Áreas de Preservação Permanente da beira dos cursos de água estão protegidas pela Lei Federal n. 12.651/2012, que restringe em muito as atividades que possam degradar o meio ambiente. A nova lei “inovadora” altera o Código Estadual do Meio Ambiente, já enfraquecido em sua flexibilização (Lei Estadual n. 15.434/2020), mas ignora que o conceito de utilidade pública e interesse social é de origem de legislação federal e mais restritiva, já que a agricultura, em geral insustentável e que em sua maioria prevê exportação de grãos, não pode ser enquadrada nestes conceitos.
Lembremos que o artigo 225 da Constituição Federal garante, em quatro incisos do seu parágrafo primeiro, a manutenção dos processos ecológicos, da diversidade biológica, e impõe a necessidade de estudos de impacto ambiental em atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente – sendo este o caso – e proíbe que se provoque a extinção de espécies. Se formos analisar cada um destes incisos, praticamente nenhum está sendo obedecido.
Além disso, é importante destacar que a Lei Federal n. 12.651/2012 define o que é utilidade pública, bem longe do que está sendo atribuído por interesses privados de uma agricultura que, de forma hegemônica, é altamente destruidora dos ecossistemas naturais. Importa lembrar outros conflitos com a legislação, como fez a Agapan em seus documentos de alerta sobre o PL 151 e similares que tramitavam na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, que a Lei da Mata Atlântica, Lei n. 11.428/2006, incluindo também seu zoneamento na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pela Unesco.
IHU – Por que o PL, ao invés de solucionar a questão da escassez de água, pode aprofundar ainda mais o problema?
Heverton Lacerda – Porque não aborda a questão principal: o modelo de produção. O PL busca apenas uma solução paliativa para um modelo de produção insustentável, baseado na artificialidade. Modelos agroflorestais de produção de alimentos, por exemplo, têm se demonstrado muito mais inteligentes, saudáveis e viáveis ecologicamente. Mas isso não interessa para a finalidade de produzir commodities. Tem que separar bem os tipos de produções que estamos falando. Os barões do agronegócio têm utilizado o discurso generalista, incluindo produtores familiares cooptados, para defender seus interesses de produção para exportação em larga escala. Com isso, buscam permissão social para operar dessa forma predatória dos ecossistemas. Isso é bem visto, inclusive, pelas empresas de mídias parceiras deles, que defendem os clientes e lucram junto com esse modelo perverso de produção.
Paulo Brack – A agricultura moderna esgota os recursos naturais, inclusive a água, e é, portanto, insustentável, como bem frisou o pioneiro e talvez mais destacado ecólogo da história recente, Eugene Odum, em seu Prefácio do livro de Agroecologia: processos ecológicos, de Stephen Gliessmann (Editora UFRGS, 2009). A água depende da vegetação, e a potencial supressão de vegetação deixa as áreas de armazenamento cada vez mais limitadas no referente ao “efeito esponja”, ainda mais com a compactação do solo pelo uso de máquinas agrícolas pesadas que limitam em muito a infiltração das águas da chuva no solo, nas nascentes e no lençol freático. As matas ciliares, com sua capacidade de evapotranspiração, associadas aos corpos de água, bombeiam a umidade e o orvalho nas primeiras horas do dia às culturas agrícolas, o que gera mais resiliência inclusive às lavouras próximas, permitindo também maior fluxo gênico, maior abrigo para fauna e alimentos para peixes, o que, ao contrário, é muito limitado em reservatórios e sua margem, alvo de alterações que promovem a expansão de espécies exóticas invasoras, como moluscos (mexilhão-dourado, por exemplo).
IHU – Deseja acrescentar algo?
Paulo Brack – A nova lei, a partir do PL n. 151, comete flagrante inconstitucionalidade, que inclusive atropela uma consulta pública feita pelo Consema até o início de abril, abordando o mesmo tema (irrigação). A maioria do parlamento gaúcho opta por tratar os temas ambientais somente pelo viés dos ganhos econômicos para alguns, o que reflete um parlamento imediatista e alinhado a setores gananciosos que querem uma supremacia dos negócios rurais sobre o princípio da precaução e os direitos da natureza. Assim, pelas questões de inconstitucionalidade e potencial desaparecimento do que resta de biodiversidade original de cursos de água e de matas ciliares e outros tipos de vegetação, flora e fauna das APPs, apelamos para que o governador do Rio Grande do Sul vete esta lei profundamente inconstitucional.