Plano climático de Porto Alegre representa greenwashing, e catadores ficam na mão com privatização do lixo. Entrevista especial com Marcelo Kunrath Silva

O pós-doutor pelo Watson Institute for International Studies/Brown University avalia que o Plano de Ação Climática e a Parceria Público Privada (PPP) do lixo, proposta pelo prefeito Sebastião Melo, são uma coisa no papel e outra na prática. Para o professor da UFRGS, aparentemente, o governo está comprometido com as “medidas prioritárias” do PLAC. Mas quando se observam as ações concretas, a realidade é outra.

Foto: Gustavo Garbino | PMPA

Por: Elstor Hanzen e Patricia Fachin | 06 Fevereiro 2025

O sociólogo e pesquisador da UFRGS questiona a forma como o Plano de Ação Climática (PLAC) é apropriado e usado pelo governo de Porto Alegre. Segundo o professor, “parece haver fortes evidências de um uso enganoso, representando um greenwashing”. Ao mesmo tempo, avalia que o plano traz uma série de avaliações e proposições pertinentes para o enfrentamento da crise ambiental e climática.

Afirma que essa incoerência entre plano e ação é evidenciado pela proposta de PPP para a gestão de resíduos da cidade, apresentada pela prefeitura da capital em dezembro de 2024. Ele destaca que o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Porto Alegre (PMGIRS), de 2023, também foi produzido em um processo paralelo ao da formulação da proposta de PPP. “Esse padrão observado em relação ao PLAC e ao PMGIRS, indicando que os planos tendem a ser desconsiderados pelos governantes municipais no desenho de suas políticas, reforça o argumento de que aqui há efetivamente um processo de greenwashing”.

Marcelo Kunrath ressalta ainda que, na medida em que não são ouvidos nem valorizados, a tendência é que os interesses dos catadores sejam desconsiderados. “Quais as propostas para esses trabalhadores frente à tendência de inviabilização dos seus meios de vida tradicionais? Mais uma vez a proposta da PPP não traz respostas”, ilustra. Para o analista, “a PPP dos resíduos urbanos é mais uma iniciativa que tem como fundamento um projeto de desmonte do Estado, das políticas públicas e dos direitos sociais”.

E, depois de oito meses da pior enchente do RS, que balanço se pode fazer da situação ambiental de Porto Alegre? “Infelizmente e assustadoramente, o balanço é de manutenção de práticas de atores governamentais e do mercado que contribuíram para agravar os efeitos desastrosos das enchentes”, responde o pesquisador nesta entrevista ao Instituto Humanitas UnisinosIHU, concedida via e-mail.

Marcelo Kunrath Silva (Foto: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) | UFRGS)

Marcelo Kunrath Silva é sociólogo, graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutor em Sociologia pela mesma instituição. É pós-doutor pelo Watson Institute for International Studies/Brown University, concluído em 2008. Professor titular do Departamento de Sociologia da UFRGS, integra os PPGs em Sociologia e em Desenvolvimento Rural.

Confira a entrevista.

IHU - Em que consiste o Plano de Ação Climática (PLAC), lançado pelo governo Melo em setembro do ano passado?

Marcelo Kunrath Silva - O Plano de Ação Climática de Porto Alegre, segundo o exposto em sua apresentação, é fruto de uma parceria firmada em 2022 entre o Banco Mundial e a prefeitura de Porto Alegre (PMPA). Com financiamento do City Climate Finance Gap Fund e acompanhamento da Prefeitura, o PLAC foi elaborado por um consórcio reunindo WayCarbon, ICLEI América do Sul, Ludovino Lopes Advogados e Ecofinance Negócios.

Uma das bases do PLAC, tanto em termos de diagnóstico dos problemas da cidade quanto em termos das soluções propostas, é um conjunto de dezenove planos municipais e estudos preexistentes elaborados pela PMPA, como por exemplo: Plano de Mobilidade Urbana de Porto Alegre (2022), Plano Municipal de Saneamento Básico (2015) e relatórios da revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (2023-2024).

O PLAC se apresenta como “o instrumento de base para a cidade firmar seus compromissos de alcançar a neutralidade em 2050 e adaptar a cidade para os impactos dos eventos climáticos” (p.18). Nesse sentido, o PLAC “traz um conjunto de estratégias que o município irá adotar para enfrentar as alterações do clima, reduzindo impactos negativos sobre a população, a economia e o meio ambiente” (p.21). O objetivo geral do PLAC é sintetizado pela Visão: alcançar em 2050 “uma Porto Alegre de baixo carbono, adaptada aos impactos climáticos, justa e que proporciona conexão entre a população e os ecossistemas naturais e urbanos” (p.49).

A concretização dessa Visão do PLAC se dá por meio de um conjunto de metas a serem alcançadas com a realização de ações prioritárias em três grandes eixos estratégicos: POA Baixo Carbono; POA Resiliente; POA Verde e Azul.

Como se observa, ele tem o objetivo de orientar as ações dos diferentes agentes presentes e atuantes na cidade, da sociedade e do Estado, com vistas a responder aos problemas e desafios relacionados ao contexto de crise climática. Especificamente no caso da Prefeitura de Porto Alegre, o PLAC deveria ser uma referência para a definição das ações e políticas governamentais em todas as áreas que apresentam interface com a crise climática e seus efeitos na cidade.

IHU - Que ações concretas o PLAC propõe enfrentar os problemas evidenciados na enchente de maio do ano passado, por exemplo?

Marcelo Kunrath Silva - Conforme colocado na resposta anterior, o objetivo geral e as metas do PLAC deverão ser atingidos pela realização de um conjunto de ações prioritárias. O Plano apresenta trinta ações prioritárias, distribuídas nos três eixos estratégicos citados acima. Essas ações cobrem uma grande diversidade de áreas atendidas por políticas públicas municipais: transporte, educação, saneamento, saúde, assistência, limpeza urbana, habitação, entre outras.

Tais ações são apresentadas de forma detalhada por meio de fichas de ação. Cada ficha, além de diversas informações relevantes sobre a ação proposta e sua justificativa, apresenta o desdobramento em subações, possibilitando maior concretude na apresentação da proposta.

IHU - Por que, na sua avaliação, o PLAC pode ser considerado um greenwashing?

Marcelo Kunrath Silva - Não considero que o PLAC, em si, seria um greenwashing ou, como coloca a definição deste termo, algo que utiliza o discurso da sustentabilidade de forma enganosa, visando ocultar a manutenção de práticas que contribuem para a manutenção ou o aprofundamento dos problemas ambientais. Avalio que o Plano traz uma série de avaliações e proposições pertinentes para o enfrentamento da crise ambiental e climática. Ou seja, a análise realizada não questiona a competência técnica ou a honestidade intelectual da equipe que elaborou o PLAC.

O que é questionado é a forma como o PLAC é apropriado e usado pelo governo municipal. Aqui sim parece haver fortes evidências de um uso enganoso, que representaria um greenwashing. Vejamos no que se baseia essa avaliação. O PLAC é apresentado publicamente no site da prefeitura da seguinte forma: “O Plano de Ação Climática tem como objetivo identificar e estabelecer medidas prioritárias concretas de redução de emissões de Gases de Efeito Estufa, de mitigação e de adaptação (social, econômica, ambiental e territorial). O PLAC irá propor mecanismos e instrumentos que possibilitem a implementação pelo município das metas estabelecidas, como zerar as emissões até 2050”. 

Aparentemente, o governo municipal está expressando um comprometimento público com as “medidas prioritárias” definidas pelo PLAC. Mas quando se observam as ações concretas tomadas pelo governo municipal, a realidade é outra. E isto é evidenciado pela proposta de Parceria Público Privada (PPP) para a gestão de resíduos da cidade, apresentada pela Prefeitura de Porto Alegre em dezembro de 2024; ou seja, apenas três meses depois de apresentar o PLAC.

IHU - Quais pontos da PPP sobre a gestão de resíduos, lançada pela prefeitura de Porto Alegre, estão em desacordo com o PLAC?

Marcelo Kunrath Silva - O PLAC identifica diversos desafios (ou, em outras palavras, problemas) no atual modelo de gestão de resíduos sólidos de Porto Alegre, com destaque para o baixo aproveitamento dos resíduos orgânicos e secos por meio de compostagem e reciclagem, além do grande volume de descartes irregulares de resíduos. Para responder a esses desafios, o PLAC (p.62) aponta para a necessidade de uma ampliação da coleta seletiva, com a valorização das cooperativas e associações de catadores.

A ação 10 do PLAC se intitula “Qualificar a estrutura das Unidades de Triagem e de Cooperativas de catadores, visando reduzir a vulnerabilidade desta população”. Essa Ação parte de um reconhecimento da existência de uma série de problemas na forma atual de inserção das cooperativas e associações de catadores na política de resíduos da cidade, propondo uma revisão do modelo existente.

Entre as mudanças propostas pelo PLAC

Realizar “um diagnóstico completo da atividade de coleta informal servirá como base para contratação direta de cooperativas para realização da coleta seletiva em determinadas regiões da cidade. A partir deste diagnóstico, visando ampliar a capacidade produtiva, condições de trabalho e integração dos catadores de material reciclável na economia formal, será implantado projeto piloto de coleta seletiva por meio das cooperativas.

Em conjunto, a criação de um programa de apoio técnico para esta população visa ampliar a renda das cooperativas e associações, contribuindo também com a redução da sua vulnerabilidade. Na mesma linha, um programa de incentivo à logística reversa em parceria com as cooperativas pode contribuir para aumentar a geração de valor dos produtos reciclados” (PLAC, 2024, p. 98 – destaques nossos).

Na prática é diferente

Além de ações objetivas para rever o modelo atual, o PLAC também estabelece como esse processo de revisão deverá ser realizado: “Destaca-se que a revisão dos processos de gestão, de contratação e de operacionalização dos trabalhos nas UTs deverá ser conduzida com a efetiva participação dos trabalhadores das cooperativas nos processos decisórios” (PLAC, 2024, p. 98 – destaque nosso).

No entanto, quando se analisa a proposta de PPP o que se identifica é algo completamente diferente. Em primeiro lugar, foi elaborada sem nenhuma participação social e, mais especificamente, sem nenhuma participação de catadores.

Em segundo lugar, define que a coleta seletiva é um dos serviços concedidos que será realizado exclusivamente pela empresa concessionária.

Em terceiro lugar, reduz a participação dos catadores ao processo de triagem dos resíduos coletados pela coleta seletiva. Como se vê, a proposta de PPP ignora as definições do PLAC. Destaque-se novamente que a elaboração da proposta de PPP e do PLAC ocorreram simultaneamente, com a primeira desconsiderando o segundo.

IHU - De que modo a PPP sobre a gestão de resíduos afeta ou altera a atuação dos catadores na coleta dos resíduos sólidos?

Marcelo Kunrath Silva - A dificuldade para responder a essa pergunta de forma aprofundada é que a proposta de PPP é bastante vaga em vários aspectos, entre eles aqueles relacionados aos catadores. Isso ocorre, entre outros motivos, pelo fato de que a concessionária terá seis meses após o início do contrato para apresentar uma série de Planos específicos, entre os quais o denominado “Plano de Inclusão e Proteção Social dos Catadores”.

Mas algumas das definições presentes na proposta de PPP já apontam para um modelo que tende a reproduzir a precariedade e a superexploração atualmente vivenciadas pelos catadores de Porto Alegre. Por exemplo, como apontado acima, pela não incorporação de propostas, como as do PLAC, voltadas a ampliar e qualificar o trabalho dos catadores e, assim, oportunizar maiores rendas e melhores condições de vida.

Outro aspecto, também já apontado acima, pela exclusão dos catadores dos processos de elaboração, discussão e decisão sobre a proposta de PPP. Na medida em que não são ouvidos nem valorizados, a tendência é que os interesses dos catadores sejam desconsiderados.

Incertezas sobre o sustento dos trabalhadores

Uma ação proposta de PPP na qual essa desconsideração pode ter implicações bastante negativas é a de realocação de nove unidades de triagem (UTs) atualmente existentes. Uma vez que os processos de realocação espacial das UTs terão impactos profundos nos trabalhadores, nas cooperativas e nas comunidades nas quais as UTs estão inseridas e naquelas onde serão localizadas as novas UTS, tais processos dependeriam de estudos aprofundados e de mecanismos de participação social para sua definição e implementação. No entanto, nada disso consta na proposta apresentada.

Mas também o que não é dito na proposta sobre os catadores causa preocupação. A proposta tende simplesmente a desconsiderar os milhares de catadores autônomos que coletam materiais recicláveis na cidade e são responsáveis pela maior parte da reciclagem atualmente.

O que vai ocorrer com esses catadores, uma vez que a concessionária vai poder vender materiais recicláveis e, assim, terá interesse em evitar que os catadores autônomos acessem esses materiais? Quais as propostas para esses trabalhadores frente à tendência de inviabilização dos seus meios de vida tradicionais? Mais uma vez a proposta da PPP não traz respostas.

IHU - Em que consiste o Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Porto Alegre (PMGIRS)?

Marcelo Kunrath Silva - O PMGIRS é uma demanda da Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei Federal nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. O primeiro PMGIRS de Porto Alegre foi instituído em 2013 e o segundo foi instituído em 2023.

O PMGIRS é o documento que estabelece diretrizes, metas e ações para orientar a política municipal de resíduos sólidos.

IHU - Quais são as contradições entre o PMGIRS e a PPP sobre a gestão de resíduo?

Marcelo Kunrath Silva - O PMGIRS, conforme consta no documento do PLAC, foi um dos dezenove documentos da PMPA preexistentes que foi utilizado como referência para a construção do PLAC. No caso, foi utilizado como referência para o diagnóstico da situação dos resíduos sólidos em Porto Alegre e a proposição de ações. Assim, como seria esperado, há uma grande convergência entre as propostas do PLAC e do PMGIRS. Em vista disso, diversas contradições já apontadas entre o PLAC e a proposta da PPP se reproduzem quando se compara a proposta ao PMGIRS.

Aqui, cabe destacar que o PMGIRS de 2023 também foi produzido em um processo paralelo ao processo de formulação da proposta de PPP. Esse padrão observado em relação ao PLAC e ao PMGIRS indicando que os planos tendem a ser desconsiderados pelos governantes municipais no desenho de suas políticas, reforçando o argumento de que aqui há efetivamente um processo de greenwashing.

IHU - Que balanço faz da situação ambiental de Porto Alegre, oito meses após as enchentes?

Marcelo Kunrath Silva - Infelizmente e assustadoramente, o balanço é de manutenção de práticas de atores governamentais e do mercado que contribuíram para agravar os efeitos desastrosos das enchentes. A continuidade da primazia dos interesses econômicos de curto prazo de um conjunto de empresas e empresários sobre qualquer outra consideração parece indicar que nada foi aprendido com a tragédia das enchentes.

E, obviamente, a vitória eleitoral do representante político desses interesses e atores sociais forneceu a legitimidade para essa continuidade. A PPP dos resíduos urbanos é mais uma iniciativa que tem como fundamento um projeto de desmonte do Estado, das políticas públicas e dos direitos sociais.

IHU - No âmbito sociológico, diversas pautas novas surgiram nas últimas décadas, enquanto outras bandeiras foram arrefecidas. As mudanças climáticas e a justiça socioambiental têm potencial de unificar o engajamento de novas e antigas pautas sociais coletivas? Quais, por exemplo? Como tem observado isso na prática?

Marcelo Kunrath Silva - As enchentes colocaram o problema sócio-climático-ambiental no centro do debate público e das agendas governamentais. Pesquisas de opinião indicam que a maior parte da população, especialmente no Rio Grande do Sul, reconhece a existência do problema e, mais, reconhece que tal problema é em grande medida um problema gerado pelos seres humanos (ou seja, não é “natural”). Esse reconhecimento é um elemento importante para a produção de engajamento social no seu enfrentamento. Mas isso não basta.

Os esforços de organização e mobilização social para enfrentar a emergência sócio-climático-ambiental se deparam com obstáculos poderosos. De um lado, há a ação de atores políticos e econômicos que se contrapõem a essas tentativas de organização e mobilização social, buscando defender seus interesses contra as demandas e propostas que possam significar aumentos de custos, maiores controles ou restrições de atividades em prol da proteção ambiental ou da prevenção de desastres. Tais atores usam diversas táticas nesse sentido: financiamento de campanhas eleitorais de aliados, campanhas de desinformação, deslegitimação de adversários etc.

De outro lado, os esforços de organização e mobilização social para enfrentar a emergência sócio-climático-ambiental precisam enfrentar a dificuldade de traduzir em linguagem simples e direta conhecimentos, ideias e argumentos que tendem a ser bastante complexos e, aparentemente, desconectados do cotidiano da população. Esse, aliás, tem sido um desafio do movimento ambientalista ao longo de sua história, limitando sua popularização.

IHU - Deseja acrescentar algo?

Marcelo Kunrath Silva - Por fim, outro obstáculo é um fatalismo que crescentemente se dissemina na sociedade e bloqueia qualquer expectativa de mudança positiva. E sem esperança na possibilidade de construir mudanças positivas através da organização e mobilização social, tais processos tendem a não ocorrer, por pior que seja a realidade vivida.

A luta por justiça socioambiental tem um grande potencial para se constituir em um dos grandes movimentos sociais do período atual. E isso seria fundamental para o efetivo enfrentamento da emergência sócio-climático-ambiental que vivemos. Se isso irá ocorrer ou não é o que está no centro de diversos conflitos contemporâneos. Inclusive na mobilização social atualmente em curso para barrar a imposição antidemocrática da proposta de PPP dos resíduos em Porto Alegre.

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