23 Setembro 2023
"A teologia tem sua linguagem específica, obviamente, mas lida com palavras comuns. A linguagem específica que desenvolvemos serve precisamente para dar sentido e profundidade às palavras que os seres humanos usam, na sua linguagem comum, para dar voz à profundidade que essas palavras contêm".
O artigo é de Roberto Maier, teólogo, publicado por Settimana News, 20-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
No contexto do debate aberto pela contribuição de Paolo Cattorini sobre a formação teológica e os seus destinatários, creio que também possa ser incluída uma reflexão sobre o que está sendo feito dentro da Universidade Católica do Sagrado Coração em termos de pesquisa, ensino e formação teológica.
Há alguns anos, o trabalho comum tem se centrado no nó conhecimento-sabedoria – como forma teórica e retórica escolhida para dar sentido à presença da teologia na Universidade Católica. A escolha feita explicitamente foi abrir a disciplina de teologia à transdisciplinaridade, antecipando assim tanto as aberturas da introdução da Veritatis gaudium, quanto a importância que a transdisciplinaridade assumiu recentemente no âmbito geral do conhecimento.
O que foi feito nos últimos anos está resumido e apresentado na publicação Ordo sapientiae. Per un dialogo fecondo fra teologia e saperi (2017). Nesse volume, complexo em seus temas, o papel da teologia na Católica aparecia ligado à superação da fragmentação dos conhecimentos acadêmicos e à redução do pensamento à figura unilateral da racionalidade científico-econômica. A escolha do termo sabedoria já anunciava que, para favorecer essa superação, não seria suficiente um vago apelo a uma racionalidade plural. Em vez disso, a própria ideia de racionalidade deveria ser trazida de volta ao jogo.
Tratava-se, em primeiro lugar, dentro da teologia, de retornar à figura do logos cristão na sua diferença, sem negar a sua continuidade, do logos dos gregos. De fato, o logos cristão não se esgota na justaposição das diferentes formas de racionalidade, porque se apresenta como aquilo que gera a própria pluralidade do pensamento (uma realidade diante da qual a teologia católica muitas vezes se vê sofrendo, porque a chama a abdicar do papel tanto de pensamento em uma forma mais elevada, quanto de pensamento organizador ao qual compete a primazia da síntese entre os conhecimentos).
Em outras palavras: pronunciar a palavra sabedoria não significa apenas dar um nome ao resultado do trabalho do pensamento, mas também apelar para aquele encanto misterioso que gera no ser humano o desejo de conhecer. A sabedoria bíblica apresenta-se como aquela que “antecipa-se aos que a desejam (…), procura os que são dignos dela” (Sabedoria 6,13.16) – onde quer que estejam. O trabalho transdisciplinar aparece para a teologia, portanto, como a possibilidade de redescobrir a própria origem do conhecimento – que é afetuosamente colocado na manifestação geradora da verdade encarnada de Deus.
Não poderemos partilhar com todas as disciplinas a figura da Sabedoria que no início do mundo brincava com Deus e a sua fantasia; não podemos partilhar com o conjunto dos conhecimentos o vínculo que a teologia tem com aquele que é “o mais belo dos filhos do homem”, mas podemos partilhar uma figura da dívida que toda inteligência tem para com a verdade, no assombro de sua aparência, na exultação de ter gerado um conhecimento no outro. Acima de tudo, podemos partilhar com todos um desejo tão original que parece, para quem pesquisa, uma injunção: aquela de não mentir, de dizer a verdade.
Chegou a hora de se despedir definitivamente da antiga polêmica e de seus muitos corolários que ainda alimentam a relação entre os conhecimentos: a questão, de fato, não é mais perguntar se Galileu estava certo, sugerindo que a realidade está escrita em linguagem matemática e contrapor a ela outra escrita. Deve ser abandonada não por tolerância, mas porque a questão hoje é se a realidade realmente seria um texto, um livro já escrito. Não seria, antes, um ventre que gera tudo incessantemente, inclusive os nossos códigos?
Ao redefinirmos a própria ideia de conhecimento, tocamos na relacionalidade ligada à sua produção. Repensamentos desse tipo não aconteceram com tanta frequência na história da cultura; e cada vez que ocorreram causaram tensões geradoras. Penso no nascimento das escolas teológicas, com a saída da teologia dos estudos monásticos, do qual temos vestígios no intenso debate entre Bernardo de Claraval e Abelardo. Acredito que a virada transdisciplinar não seja de envergadura menor que aquela.
Talvez a última grande elaboração teórica do conhecimento tenha sido o nascimento da figura do laboratório (típico da ciência experimental, mas que aos poucos foi também assumido pela teologia). A ela devemos o imaginário de uma comunidade de conhecimento, uma comunidade de pares, movida pelo amor à verdade. Dali nasceram os processos do saber e da sua verificação - como a dinâmica da revisão por pares que todos conhecemos.
As obras que tentaram compreender essa grande passagem especificam que o nascimento do laboratório não foi propriamente um acontecimento de racionalidade, mas de sociabilidade. Boyle fundou seu primeiro laboratório em torno de uma bomba que criava o vácuo, alegando que esse vácuo era a condição para a repetibilidade do experimento.
Mas não foi o laboratório que conquistou para a ciência experimental a confiança da comunidade científica, nem o vácuo (que, obviamente, ele nunca criou), mas sim o consenso da sociedade pela confiabilidade do diálogo entre os pesquisadores, pela correção se seu debate, pela figura (mítica, como toda representação) de uma comunidade na qual seria possível manter afastadas a competição, a discórdia das opiniões e os interesses partidários, em nome de uma única grande paixão pela verdade. Foi isso – e não o voto – que rendeu à ciência experimental o crédito do mundo moderno.
Agora, ao ir além desse modelo, devemos lembrar que, para além de todas as críticas que a reflexão filosófica ou teológica trouxe ao mundo científico e tecnológico, aquela passagem foi decisiva, teve algo de prodigioso, nos permitiu passar por alguns séculos muito complicados, propiciou um crescimento exponencial do conhecimento. Não podemos superá-lo sem reconhecer o que nele não pode de modo algum ser abandonado: não podemos retroceder e, certamente, a desconfiança de alguns cidadãos em relação à comunidade científica não pode ser saudada como o momento para sair dos nossos esconderijos e exibir os nossos truques.
Sem retroceder, porém, penso que a transdisciplinaridade nos pede para superar alguns paradigmas específicos dessa última grande elaboração do conhecimento. Acredito, em particular, que nos pede para deixarmos de pensar o lugar da verdade como um lugar vazio.
Se quisermos estar à altura de uma mudança que acreditamos decisiva, é necessário que os lugares da transdisciplinaridade possam credenciar-se com a mesma força a partir do fato de serem, justamente, lugares, não apenas espaços, mas lugares humanos, com todas as implicações simbólicas e relacionais que aprendemos a reconhecer, também graças à filosofia contemporânea - sem a qual, é preciso dizer, teríamos ficado anos-luz para trás.
A repetibilidade dos percursos foi um dos paradigmas da ciência experimental. Deve-se reconhecer que a repetibilidade da abordagem transdisciplinar é muito mais complexa, porque a cada repetição o contexto faz diferença; aliás, eu diria que alguns percursos de transdisciplinaridade são irrepetíveis. Não acredito que se deva renunciar à cientificidade, mas acredito que não se possa mais buscar a repetibilidade em virtude do vazio. Não adianta se esconder atrás de requintes epistemológicos: no momento em que o laboratório se abre, ocorre uma contaminação. Isso torna o método de pesquisa cada vez mais parte integrante da própria pesquisa.
A epistemologia da transdisciplinaridade coloca outra questão a todas as disciplinas, incluindo a teologia: aquela da conflitualidade interna. Qualquer um que se aproxime de um percurso transdisciplinar faz essa descoberta, qualquer que seja o ambiente com que se depara: todas as disciplinas são atravessadas por conflitos, por contraposições e as linhas de ruptura são muitas vezes as mesmas que perpassam a teologia.
A última revolução que precisa ser trazida para o laboratório é a abertura para o exterior: aquela que chamamos de terceira missão, para a teologia, é indissociável da primeira (a pesquisa) e da segunda (a didática). Isso significa que a relação entre a teologia e o sensus fidei fidelium, uma das pedras angulares do caminho sinodal, é constitutivo. O mundo acadêmico deve permanecer como tal, com toda a seriedade possível, mas talvez a teologia seja a primeira que se pode permitir recordar-lhe a sua profunda continuidade com a experiência de todos, mesmo dos mais esquecidos ou marginais. A figura do acadêmico que se aproveita de sua própria incapacidade de viver no mundo é boa para os filmes de Verdone, não para a universidade contemporânea.
A teologia tem sua linguagem específica, obviamente, mas lida com palavras comuns. A linguagem específica que desenvolvemos serve precisamente para dar sentido e profundidade às palavras que os seres humanos usam, na sua linguagem comum, para dar voz à profundidade que essas palavras contêm.
Liberdade, justiça, felicidade, salvação. Pode ser verdade que algumas palavras com conotações mais religiosa estejam lentamente desaparecendo, mas a linguagem dos homens e das mulheres do nosso tempo ainda está repleta de referências ao mundo cristão e, em todo caso, será sempre o principal interlocutor do trabalho teológico. Não só porque a teologia não pode se deixar transformar em gnose (cuja tentação recorrente é a construção de uma linguagem de iniciados), mas sobretudo porque a sua tarefa não é produzir a fé, mas sim reconhecê-la, onde ela acontece.
E além disso porque, quando confrontados com algumas questões que hoje são definidas como determinantes (a Inteligência Artificial, a crise ecológica, as grandes migrações), por vezes o bom senso partilhado é a ferramenta mais eficaz para resistir às ideologias e às teorias mais bizarras.
Talvez, no âmbito da transdisciplinaridade, devêssemos lembrar a nós mesmos, teólogos (em primeiro lugar) e aos nossos colegas (depois), que todos os nossos irmãos e as nossas irmãs têm acesso à verdade, como seres humanos. Imaginar uma nova forma de laboratório significa também libertar-se, tanto quanto possível, do pesado legado do mito platónico, que vê todos encerrados na doxa enquanto alguns poucos eleitos podem aspirar à episteme.
Essa figura de logos, por mais convincente que seja, não é aquela do Evangelho, em que o primeiro a sair da caverna e a ver a verdadeira luz é um ladrão pregado numa cruz, graças àquele último resquício de humaníssima compaixão de que até ele é ainda capaz.
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A formação teológica | 2. Artigo de Roberto Maier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU