14 Março 2022
"Esta partida nos afeta de perto. Não são justamente as ideias 'conservadoras' de Putin em matéria de família, sexualidade e religião que atraíram nas últimas duas décadas a admiração da ultradireita europeia e norte-americana?", escreve Giorgia Serughetti, pesquisadora em Filosofia Política na Universidade de Milão-Bococca, em artigo publicado por Domani, 13-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Existe um interesse não declarado e pouco reconhecido na guerra que a Rússia trouxe ao coração da Europa: é o conflito em torno dos modelos de gênero e sexualidade, o que Putin chama de “confusão de valores”, mas que nas democracias liberais se chamaria de pluralismo das escolhas de vida.
Na luta que o patriarca de Moscou Kirill I, fiel aliado do Kremlin, definiu como um embate “metafísico” entre “bem e mal”, o inimigo tem o rosto colorido das “paradas gays”, entendidas como a parte mais visível - e, nessa perspectiva, escandalosa - da transformação de costumes e sistemas promovidos pelos movimentos feminista e LGBT.
A “superioridade moral”
Vladimir Putin, por sua vez, costuma defender a superioridade moral da Rússia invocando os valores familiares, a vida religiosa e a paixão patriótica como base espiritual de um modelo alternativo de civilização a um Ocidente dissoluto. E seu ativismo ideológico não se limita a proclamações.
Sob seu poder, seguiram-se medidas abertamente reacionárias e autoritárias: restrições ao aborto, descriminalização da violência doméstica, perseguição a ativistas feministas, proibição de organizações antiviolência, lei contra a “propaganda homossexual”.
Fica claro, portanto, o que as ativistas russas da Resistência Feminista contra a Guerra querem dizer quando escrevem que a guerra atual está sendo travada sob a bandeira dos “valores tradicionais” declarados pelos “ideólogos do governo”, que incluem “a desigualdade entre homens e mulheres”, a exploração das mulheres e a repressão estatal contra aquelas cujo estilo de vida, autodeterminação e ações não estão em conformidade com as rígidas normas patriarcais”.
Parece necessário refinar as ferramentas críticas diante de uma guerra territorial em que a agressão externa aparece como a continuação com outros meios de uma política de identidade, repleta de chamamentos à “moral” e à “civilização”, que já amplamente desdobrou suas consequências dentro das fronteiras da Rússia.
Esta partida nos afeta de perto. Não são justamente as ideias “conservadoras” de Putin em matéria de família, sexualidade e religião que atraíram nas últimas duas décadas a admiração da ultradireita europeia e norte-americana?
Se hoje essas forças, face à invasão da Ucrânia, se desprendem e tentam fazer esquecer as suas antigas simpatias, estão igualmente dispostas a rever a sua posição naquela “guerra cultural” que as opõe a promotoras e promotores dos direitos das mulheres e das minorias sexuais?
As distinções que muitos tentarão não podem funcionar, porque os dois lados do projeto reacionário não são separáveis um do outro. É a mesma raiz identitária que produz o nacionalismo agressivo e os modelos tradicionais de gênero. Derrotar o primeiro significa rejeitar, em sua totalidade, a lógica que o alimenta.
Leia mais
- Kirill transforma a guerra de Putin em uma cruzada contra o “grande Satanás”. Artigo de Pasquale Annicchino
- “Não queremos imitar aqueles que nos violam”. Entrevista com Judith Butler
- Carta aberta a Sua Santidade Kirill Patriarca de Moscou
- Carta a Kirill, de Jean-Claude Hollerich
- O apocalipse pan-eslavo de Kirill a serviço de Putin. Artigo de Pasquale Annicchino
- Kirill, o fidelíssimo ao Kremlin que virou as costas ao Papa
- “Kirill estreitamente ligado ao Kremlin. É impensável um seu ‘não’ ao conflito”. Entrevista com Enrico Morini
- Kirill se contradiz?
- Teologia ‘ad usum Cyrilli’: formas de discurso eclesial em tempo de guerra. Artigo de Andrea Grillo
- Ucrânia, choque pelas palavras do Patriarca Kirill sobre os gays: a divergência com Francisco agora é total. Artigo de Marco Politi
- O patriarca de Moscou abençoa a “guerra anti-gay”
- Para o Patriarca Kirill, a guerra é moralmente justa e útil para parar o lobby gay ocidental
- Kirill vai romper com a unidade ortodoxa
- O sermão de Kirill talvez seja uma péssima pregação com uma teologia ainda pior – mas é o suprassumo da rejeição à democracia liberal
- Patriarca Kirill defende: a guerra metafísica contra o pecado sexual
- Guerra na Ucrânia está expondo crise da democracia nos EUA
- O que faz da Ucrânia diferente: democracia x império
- “Putin cometeu um erro histórico, não entende as democracias”. Entrevista com Romano Prodi
- Uma guerra real e os dividendos da guerra cultural. Artigo de Massimo Faggioli
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Rússia-Ucrânia, modelos de gênero e sexualidade estão em jogo na guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU