30 Setembro 2021
O cardeal apresentou seu livro em Pordenone sobre os mais de 400 dias de prisão sob a acusação de abusos, do qual foi absolvido. O que eu mais sentia falta? De celebrar a missa.
Diario di prigionia
O cardeal George Pell é uma das grandes figuras da Igreja. E não apenas por seu imponente físico de jogador de rúgbi. São João Paulo II o escolheu como pastor de Melbourne e depois de Sydney e então o nomeou cardeal. Bento XVI homenageou sua diocese com uma viagem apostólica pela JMJ. O Papa Francisco o escolheu para fazer parte do Conselho de Cardeais e depois o chamou a Roma como prefeito da Secretaria para a Economia. Mas, justamente no final de seu mandato, teve que retornar à Austrália para enfrentar um processo com a acusação de abusar de dois coristas na sacristia.
Condenado em primeira instância, no recurso foi absolvido - por unanimidade - pelos juízes do Supremo Tribunal Federal. Nesse ínterim, passou mais de 400 dias na prisão. Fato único para um cardeal em um país democrático. Pell contou essa experiência ruim com um final feliz em um Diário, cujo primeiro volume foi publicado na Itália pela Cantagalli. No fim de semana passado, a obra foi apresentada em Pordenone no âmbito da 15ª edição de “Ascoltare, leggere, crescere”. O evento foi realizado na área do Seminário episcopal que celebra este ano o centenário da sua fundação.
A entrevista é de Gianni Cardinale, publicada por Avvenire, 29-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eminência, como nasceu a ideia de escrever um diário?
É raro um cardeal ser preso, por isso achei que um diário seria interessante para os leitores. Além disso, escrever na prisão é uma boa terapia. Muitos o fizeram, a começar por São Paulo.
Este é o primeiro volume. Quantos mais iremos esperar?
O segundo já está disponível em inglês, o terceiro está prestes a ser publicado nos Estados Unidos e na Austrália. Quando entreguei o texto ao editor - padre Joseph Fessio - sugeri fazer uma antologia com as passagens mais interessantes. Mas ele quis publicá-lo na íntegra.
O senhor alguma vez imaginou enfrentar um processo desse tipo e passar mais de 400 dias na prisão?
Não, nunca imaginei. Foram acusações francamente inacreditáveis. Fazer coisas tão feias em uma sacristia depois de uma missa solene com centenas de fiéis. Inconcebível, para quem costuma frequentar as igrejas. Talvez tenha contribuído para minha condenação em primeira e segunda instância o fato de os juízes e jurados nunca terem participado de uma missa católica e realmente acreditarem que as igrejas e até mesmo as sacristias são lugares escuros e despovoados onde pode ser cometida toda abominação...
Por que essas acusações tão infames? O que o senhor pensou sobre isso?
Acredito que fui alvo por minha defesa da visão tradicional judaico-cristã de família, vida, sexualidade. O fator decisivo, porém, foi a crise dos abusos. Infelizmente, na Austrália, houve muitos casos, muitas vítimas, muitos sofrimentos. Muitos ficaram genuinamente escandalizados com isso e com a forma como os bispos abordaram a questão. Houve e há muita fúria contra a Igreja. Depois da primeira condenação disseram-me que ouviram este tipo de comentário: é possível, talvez provável que ele seja inocente, mas a Igreja Católica fez tantas coisas ruins e é justo que alguns deles sofram. Infelizmente, coube a mim.
No final, o senhor foi absolvido. E se eles a tivessem condenado em vez disso?
Eu teria continuado minha vida na prisão. Orando, comendo e bebendo - mas não muito - saboreando a hora ao ar livre. E talvez atualizando o Diário.
Que humanidade o senhor encontrou na prisão?
Na prisão há muitos criminosos, mas também muita humanidade.
Como o trataram?
Basicamente bem. Mas deve sempre ter presente que você está na prisão e existem regras que devem ser respeitadas. Existem muitas pequenas humilhações. Mas quando se entende e se aceita isso, é possível viver. Os guardas foram quase sempre cordiais e corretos. Além disso, foi o diretor que me convenceu a recorrer à Corte Suprema. Eu estava desanimado, mas ele me convenceu a continuar.
Do que mais sentiu falta?
Não podia ver lá fora e não podia celebrar missa.
Por quê?
Os alcoólicos são proibidos na prisão. E na Austrália são rigorosos: nem um pouco de vinho para a Eucaristia é permitido. Felizmente havia uma boa freira, uma mulher forte e simpática, que todas as semanas me trazia o Santíssimo Sacramento.
Qual é a sua opinião sobre a forma como os meios de comunicação de massa trataram a sua história?
Tive muitos amigos no mundo jornalístico. Eles me defenderam. Mas a maioria foi hostil por minhas posições nas chamadas culture wars, as batalhas culturais que marcam o mundo anglo-saxão. Eu era um alvo perfeito para eles.
Quem esteve mais próximo do senhor nesta Via Crucis?
Muitos. Eles me escreveram milhares de cartas. Do mundo todo. Muitos vieram me visitar. Muitos oraram por mim. Eu não perdi nenhum amigo.
Recebeu a mesma solidariedade de seus coirmãos cardeais?
Sim. E recebi mensagens do Papa Francisco e do Papa Emérito Bento XVI. Sou muito grato pelo seu apoio.
A decisão de deixar Roma para enfrentar o processo foi sua livre escolha?
Para mim, era a única via. Talvez tecnicamente eu pudesse decidir não ir, mas essa não era uma possibilidade séria para um homem que é inocente e que se preocupa com a reputação da Igreja. A única via certa era voltar e me defender no processo.
Acredita que a questão dos abusos seja o principal problema que a Igreja enfrenta hoje?
No mundo ocidental, essa grande tragédia não é o problema número um. O principal problema é o enfraquecimento da fé e o fato de muitos jovens não acreditarem mais. Esse é o grande desafio. Paralelamente, existe a crise moral da família e a enorme ameaça da pornografia, não só para a Igreja, mas para toda a humanidade.
O senhor iniciou as reformas econômicas e financeiras da Santa Sé no Vaticano. Que lembrança tem daquele período?
Foi um período interessante e difícil. Mas fizemos alguns progressos. Agora podemos saber onde estão as finanças do Vaticano. Antes era um mistério. O principal problema é que por tantos anos o Vaticano gastou muito mais do que arrecadava. Não se podia continuar assim.
O senhor era considerado um "inimigo" dos italianos na Cúria Romana ...
Não. Para mim não havia diferenças entre italianos e não italianos. Mas entre honesto e não.
E como vê a situação hoje?
Erros graves foram cometidos, como - na minha opinião - a destituição do auditor geral Libero Milone. Mas agora, parece-me que estamos no caminho certo.
Em poucos dias, vai entrar em sua fase mais decisiva o processo que inclui entre os acusados também o cardeal Angelo Becciu.
É um momento importante. Porque assim o Vaticano pode ser visto como um lugar onde a lei é respeitada. No entanto, é importante que a todos seja garantido um processo justo.
Como seguirá o caminho sinodal indicado pelo Papa Francisco?
Não sou um especialista em sinodalidade e não vejo muitos que entendam claramente o que significa. Eu o seguirei com grande interesse.
Como australiano, como avalia o acordo estratégico de seu país com os Estados Unidos e o Reino Unido?
Eu concordo. Assim como a grande maioria dos meus concidadãos e as forças políticas do governo e da oposição. Esperemos que nada dramático aconteça. Mas é necessária mais colaboração entre as democracias na Ásia e no Pacífico para equilibrar o grande poder da China, que não é democrática. Isso talvez não seja bem compreendido na Europa, mas é assim.
George Pell, 80, é natural de Ballarat, no sul da Austrália. Formou-se em Roma, onde foi ordenado sacerdote em 1966. Realizou estudos históricos em Oxford, depois trabalhou em sua cidade natal também como redator do semanário diocesano. Auxiliar de 1987 e de 1996 ordinário de Melbourne, em 2001 tornou-se arcebispo de Sydney e em 2003 João Paulo II o nomeou cardeal. Em 2008 hospedou Bento XVI para a primeira JMJ na Oceania. Francisco em 2013 nomeou-o para o C9 e em 2014 prefeito para a Secretaria para a Economia.
Considerado culpado de abusos em dezembro de 2018 com uma sentença de seis anos confirmada em recurso, ele passou 404 dias na prisão, até 7 de abril de 2020, quando foi absolvido pela Suprema Corte. O primeiro volume de seu "Diário da prisão" foi publicado na Itália pela Cantagalli (páginas 448, 25 euros). O livro foi apresentado sábado no Seminário episcopal de Pordenone no âmbito da XV edição do "Ascoltare, leggere, crescere", a histórica resenha da editora religiosa promovida pela Euro92 Events em colaboração com a Libreria editora vaticana.
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Cardeal Pell: virei alvo por minhas ideias “tradicionais” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU