"A rosa dos ventos que Francisco desdobrou de Malta é uma leitura profunda que nos convida a libertar-nos de autocracias e imperialismos, da agressividade e da cultura do descarte, ou seja, de tudo o que - perscrutando o horizonte do Mediterrâneo - a humanidade é chamada a se livrar de uma vez por todas. Caso contrário, será o fim. No maior dos pecados: o ódio", escreve Riccardo Cristiano, editor do livro Paolo Dall'Oglio. La profezia messa a tacere (San Paolo: 2017), vaticanista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, em artigo publicado por Settimana News, 07-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O discurso de Francisco em Malta foi ofuscado pelo horror de Bucha? Eu digo: longe disso! É precisamente a carnificina que agora destaca sua intensidade. Esta eu oponho à fraqueza da recepção.
Em Malta, Francisco mais uma vez propôs uma Igreja global, não mais apenas ocidental: uma Igreja que tem no Mediterrâneo o seu topos por excelência. Reconhecer o lugar mediterrâneo significa, de fato, apreender a natureza íntima de encontro de três continentes, de três religiões, de três ambientes culturais diferentes, assim como os espaços são diferentes, como o são os desertos, as grandes planícies e as cadeias montanhosas que correm para um encontro, para se refletirem no mesmo trecho de mar.
Ao contrário do oceano, este mar não divide irremediavelmente terras distantes, mas sim une-as num desenho multiforme ou poliédrico - termo caro a Francisco - que faz das diferenças entre a riqueza de todos.
Do Mediterrâneo - com a mesma linha seguida pelo olho - também é possível ver a Ucrânia: uma terra, como já escrevi várias vezes, zíper entre a Europa e a Rússia que nunca poderá se tornar um buraco no mapa.
A crise que vem do Mediterrâneo, evidentemente, sulcou as águas e as terras até agredir a Ucrânia, tornando-a a nova terra de eleição para o choque das visões integrais de supostas civilizações que não sabem o que fazer dos delicados zíperes, porque preferem as linhas de falha das catástrofes e dos eventos apocalípticos, banhados de sangue. São especialistas em muros, expropriações, expansionismos. Eles só sabem usar palavras duras.
A visão de Francisco comporta - muito pelo contrário - um cuidado delicado e paciente desses lugares emblemáticos do mundo. Palavras ternas. A Igreja global é aquela que conduz ao encontro gracioso das diferenças que, em vez de combaterem entre si, ensinam a viver precisamente a partir das dificuldades e da beleza de estar juntos. A Igreja nacionalista, por outro lado, é aquela que vê as fronteiras como ravinas, além das quais não pode haver nada além de hostilidade, inimizade, pecado; enquanto, deste lado, haveria apenas o bem, o mundo dos valores eternos e imaculados a serem preservados.
Agora está claro: esta última é a visão do Patriarca Kirill, que nem mesmo fala mais da Rússia, mas de um "mundo russo" que se estenderia de Moscou a todos os territórios onde os russos deveriam ir para o mundo para construir seus baluartes.
O discurso proferido por Francisco diante do corpo diplomático em La Valletta - do centro do Mediterrâneo - foi, portanto, traçado em todas as direções dos ventos, para chegar a todos os pontos de encontro do mundo, para falar - nas entrelinhas - realmente a todos. Teve sua inspiração, portanto, dos ventos que vêm de "noroeste", "sul" e "leste".
Falando de Malta de "ventos de noroeste" - ventos da Europa - Francisco pareceu dirigir-se justamente a Kirill - quase pessoalmente -, na minha opinião, mas para lhe dar uma mão para sair do muro cultural atrás do qual está se entrincheirando quando fala de "guerra metafísica" contra o Ocidente devorador - segundo ele – de valores e de tradições sagradas.
Mas outros ventos sopram - evidentemente - "do noroeste" sobre as ilhas maltesas. O norte representa a Europa, em particular a União Europeia, construída como uma casa para que as pessoas vivam ali como uma grande família unida e empenhada em salvaguardar a paz.
A Europa pensada por Francisco não é um mundo à parte, como é o "mundo russo" de Kirill, entre Rússia, Bielorrússia, Ucrânia e talvez Cazaquistão. A Europa sonhada por Francisco é outra coisa. É uma forma de unidade que não achata e não uniformiza.
De fato, pouco depois - em seu discurso - chegaram suas palavras sobre os “ventos do oeste”: “O vento do norte muitas vezes se mistura com o que sopra do oeste. Este país europeu, particularmente em sua juventude, de fato compartilha estilos de vida e pensamentos ocidentais. Disso derivam grandes bens - penso, por exemplo, nos valores da liberdade e da democracia -, mas também riscos sobre os quais é preciso vigiar, para que o anseio por progresso não leve a se desprender das raízes.
Malta é um maravilhoso laboratório de desenvolvimento orgânico, onde progredir não significa cortar as raízes com o passado em nome de uma falsa prosperidade ditada pelo lucro, pelas necessidades induzidas pelo consumismo, bem como do direito de ter qualquer direito. Para um desenvolvimento saudável, é importante salvaguardar a memória e tecer respeitosamente a harmonia entre as gerações, sem se deixar absorver por homologações artificiais e colonizações ideológicas, que muitas vezes ocorrem, por exemplo, no campo da vida, do princípio da vida. São colonizações ideológicas que vão contra o direito à vida do momento da concepção”.
Parece-me bastante evidente aqui que à visão em preto e branco do patriarca de Moscou, Francisco coloque ao lado a imagem feita de nuances - de méritos e progressos - que os ventos do oeste oferecem ao mundo, juntamente com riscos evidentes que - porém - ele não quis esconder: aliás, ele os recordou! Eis então: se em Moscou não se fechassem atrás de um muro, poderíamos nos juntar proveitosamente para melhorar a vida de todos!
Apareceram depois – nas palavras de Francisco – os “ventos do sul”: dirigidos aos cidadãos deste Ocidente, sobretudo quando eles se pensam em termos autorreferenciais.
De fato, do sul “muitos irmãos e irmãs chegam em busca de esperança. Gostaria de agradecer às autoridades e à população o acolhimento que lhes foi dado em nome do Evangelho, da humanidade e do sentido de hospitalidade típico dos malteses. De acordo com a etimologia fenícia, Malta significa porto seguro. No entanto, diante do afluxo crescente dos últimos anos, medos e inseguranças geraram desânimo e frustração. Para enfrentar adequadamente a complexa questão da migração, é preciso situá-la dentro de perspectivas mais amplas de tempo e de espaço.
De tempo: o fenômeno migratório não é uma circunstância do momento, mas marca a nossa época. Carrega consigo as dívidas de injustiças passadas, de muita exploração, de mudanças climáticas e de conflitos infelizes dos quais se pagam as consequências. Do sul pobre e povoado, massas de pessoas se deslocam para o norte mais rico: é um fato, que não pode ser rejeitado com fechamentos anacrônicos, porque não haverá prosperidade e integração no isolamento.
Depois, há a considerar o espaço: a expansão da emergência migratória - pensemos agora nos refugiados da atormentada Ucrânia - pede respostas amplas e compartilhadas. Alguns países não podem assumir todo o problema na indiferença de outros! E os países civilizados não podem estabelecer, para seu próprio interesse, acordos torpes com criminosos que escravizam pessoas. Infelizmente, isso acontece. O Mediterrâneo precisa da corresponsabilidade europeia, para voltar a ser um teatro de solidariedade e não ser o posto avançado de um trágico naufrágio da civilidade”.
Como já havia dito em Lesbos, Francisco nos alerta para o risco de um naufrágio da civilização em nossas costas. Este mundo que quer ser livre e democrático tem dificuldade para o explicitar. E precisamente o concomitante desastre no mar – o enésimo que custou a vida de mais de 90 migrantes afogados no silêncio europeu - nos diz o quanto Francisco está percebendo - na própria carne - o drama. Os sinais são evidentes.
Passando decisivamente para os "ventos do leste" geopolíticos, o papa destacou que, em vez de acompanhar o amanhecer, eles trouxeram - este ano – as trevas de mais uma guerra.
“Achávamos que invasões de outros países, brutais combates de rua e ameaças atômicas fossem lembranças sombrias de um passado distante. Mas o vento gélido da guerra, que traz apenas morte, destruição e ódio, se abateu com prepotência sobre a vida de tantos e sobre o dia a dia de todos. E, enquanto mais uma vez algum poderoso, tristemente preso às anacrônicas pretensões de interesses nacionalistas, provoca e fomenta conflitos, as pessoas comuns sentem a necessidade de construir um futuro que será juntos ou não será. Ora, na noite da guerra que caiu sobre a humanidade - por favor - não deixemos desvanecer o sonho da paz”.
Nessa passagem parece-me evidente o sentido da advertência: o problema mais grave que continua a abalar a árvore da vida e da comunhão é o nacionalismo.
O Mediterrâneo conhece a guerra em seus detalhes mais íntimos - infelizmente. Assim como conhece muito bem o nacionalismo em todas as suas variantes. Na citação de La Pira, Francisco encontrou uma resposta global, como global entende a sua Igreja. Em 1960, La Pira formulava assim: "A conjuntura histórica que vivemos, o choque de interesses e de ideologias que abalam a humanidade tomada por um incrível infantilismo, devolvem ao Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir novamente as normas de uma Medida onde o homem deixado ao delírio e ao excesso possa se reconhecer'.
É uma frase retomada para resumir o magistério papal do Mediterrâneo, que atingiu o ponto mais inesperado de sua redação com a assinatura aposta junto com o ímã de al-Azhar, al-Tayyeb, no Documento sobre a fraternidade humana.
“Como precisamos de uma medida humana diante da agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, diante do risco de uma guerra fria prolongada que pode sufocar a vida de povos inteiros e gerações! Infelizmente, aquele infantilismo não desapareceu. Reaparece com prepotência nas seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na agressividade generalizada, na incapacidade de construir pontes e partir dos mais pobres. Hoje é tão difícil pensar com a lógica da paz. Acostumamo-nos a pensar com a lógica da guerra. Daqui começa a soprar o vento gélido da guerra, que mais uma vez foi alimentado ao longo dos anos”.
Pensar que alguém possa ter lido essas últimas palavras em referência a ações específicas e não a uma cultura inteira que se fortalece na agressividade e no medo - palavras espelhadas como gotas d'água - é surpreendente. A rosa dos ventos que Francisco desdobrou de Malta é uma leitura profunda que nos convida a libertar-nos de autocracias e imperialismos, da agressividade e da cultura do descarte, ou seja, de tudo o que - perscrutando o horizonte do Mediterrâneo - a humanidade é chamada a se livrar de uma vez por todas. Caso contrário, será o fim. No maior dos pecados: o ódio.