Francisco, Malta, o Mediterrâneo. Artigo de Riccardo Cristiano

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08 Abril 2022

 

"A rosa dos ventos que Francisco desdobrou de Malta é uma leitura profunda que nos convida a libertar-nos de autocracias e imperialismos, da agressividade e da cultura do descarte, ou seja, de tudo o que - perscrutando o horizonte do Mediterrâneo - a humanidade é chamada a se livrar de uma vez por todas. Caso contrário, será o fim. No maior dos pecados: o ódio", escreve Riccardo Cristiano, editor do livro Paolo Dall'Oglio. La profezia messa a tacere (San Paolo: 2017), vaticanista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, em artigo publicado por Settimana News, 07-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

O discurso de Francisco em Malta foi ofuscado pelo horror de Bucha? Eu digo: longe disso! É precisamente a carnificina que agora destaca sua intensidade. Esta eu oponho à fraqueza da recepção.

 

Em Malta, Francisco mais uma vez propôs uma Igreja global, não mais apenas ocidental: uma Igreja que tem no Mediterrâneo o seu topos por excelência. Reconhecer o lugar mediterrâneo significa, de fato, apreender a natureza íntima de encontro de três continentes, de três religiões, de três ambientes culturais diferentes, assim como os espaços são diferentes, como o são os desertos, as grandes planícies e as cadeias montanhosas que correm para um encontro, para se refletirem no mesmo trecho de mar.

 

Um mar que une

 

Ao contrário do oceano, este mar não divide irremediavelmente terras distantes, mas sim une-as num desenho multiforme ou poliédrico - termo caro a Francisco - que faz das diferenças entre a riqueza de todos.

Do Mediterrâneo - com a mesma linha seguida pelo olho - também é possível ver a Ucrânia: uma terra, como já escrevi várias vezes, zíper entre a Europa e a Rússia que nunca poderá se tornar um buraco no mapa.

A crise que vem do Mediterrâneo, evidentemente, sulcou as águas e as terras até agredir a Ucrânia, tornando-a a nova terra de eleição para o choque das visões integrais de supostas civilizações que não sabem o que fazer dos delicados zíperes, porque preferem as linhas de falha das catástrofes e dos eventos apocalípticos, banhados de sangue. São especialistas em muros, expropriações, expansionismos. Eles só sabem usar palavras duras.

A visão de Francisco comporta - muito pelo contrário - um cuidado delicado e paciente desses lugares emblemáticos do mundo. Palavras ternas. A Igreja global é aquela que conduz ao encontro gracioso das diferenças que, em vez de combaterem entre si, ensinam a viver precisamente a partir das dificuldades e da beleza de estar juntos. A Igreja nacionalista, por outro lado, é aquela que vê as fronteiras como ravinas, além das quais não pode haver nada além de hostilidade, inimizade, pecado; enquanto, deste lado, haveria apenas o bem, o mundo dos valores eternos e imaculados a serem preservados.

 

Francisco e Kirill

 

Agora está claro: esta última é a visão do Patriarca Kirill, que nem mesmo fala mais da Rússia, mas de um "mundo russo" que se estenderia de Moscou a todos os territórios onde os russos deveriam ir para o mundo para construir seus baluartes.

O discurso proferido por Francisco diante do corpo diplomático em La Valletta - do centro do Mediterrâneo - foi, portanto, traçado em todas as direções dos ventos, para chegar a todos os pontos de encontro do mundo, para falar - nas entrelinhas - realmente a todos. Teve sua inspiração, portanto, dos ventos que vêm de "noroeste", "sul" e "leste".

Falando de Malta de "ventos de noroeste" - ventos da Europa - Francisco pareceu dirigir-se justamente a Kirill - quase pessoalmente -, na minha opinião, mas para lhe dar uma mão para sair do muro cultural atrás do qual está se entrincheirando quando fala de "guerra metafísica" contra o Ocidente devorador - segundo ele – de valores e de tradições sagradas.

Mas outros ventos sopram - evidentemente - "do noroeste" sobre as ilhas maltesas. O norte representa a Europa, em particular a União Europeia, construída como uma casa para que as pessoas vivam ali como uma grande família unida e empenhada em salvaguardar a paz.

A Europa pensada por Francisco não é um mundo à parte, como é o "mundo russo" de Kirill, entre Rússia, Bielorrússia, Ucrânia e talvez Cazaquistão. A Europa sonhada por Francisco é outra coisa. É uma forma de unidade que não achata e não uniformiza.

De fato, pouco depois - em seu discurso - chegaram suas palavras sobre os “ventos do oeste”: “O vento do norte muitas vezes se mistura com o que sopra do oeste. Este país europeu, particularmente em sua juventude, de fato compartilha estilos de vida e pensamentos ocidentais. Disso derivam grandes bens - penso, por exemplo, nos valores da liberdade e da democracia -, mas também riscos sobre os quais é preciso vigiar, para que o anseio por progresso não leve a se desprender das raízes.

Malta é um maravilhoso laboratório de desenvolvimento orgânico, onde progredir não significa cortar as raízes com o passado em nome de uma falsa prosperidade ditada pelo lucro, pelas necessidades induzidas pelo consumismo, bem como do direito de ter qualquer direito. Para um desenvolvimento saudável, é importante salvaguardar a memória e tecer respeitosamente a harmonia entre as gerações, sem se deixar absorver por homologações artificiais e colonizações ideológicas, que muitas vezes ocorrem, por exemplo, no campo da vida, do princípio da vida. São colonizações ideológicas que vão contra o direito à vida do momento da concepção”.

Parece-me bastante evidente aqui que à visão em preto e branco do patriarca de Moscou, Francisco coloque ao lado a imagem feita de nuances - de méritos e progressos - que os ventos do oeste oferecem ao mundo, juntamente com riscos evidentes que - porém - ele não quis esconder: aliás, ele os recordou! Eis então: se em Moscou não se fechassem atrás de um muro, poderíamos nos juntar proveitosamente para melhorar a vida de todos!

 

A Europa “segura”

 

Apareceram depois – nas palavras de Francisco – os “ventos do sul”: dirigidos aos cidadãos deste Ocidente, sobretudo quando eles se pensam em termos autorreferenciais.

De fato, do sul “muitos irmãos e irmãs chegam em busca de esperança. Gostaria de agradecer às autoridades e à população o acolhimento que lhes foi dado em nome do Evangelho, da humanidade e do sentido de hospitalidade típico dos malteses. De acordo com a etimologia fenícia, Malta significa porto seguro. No entanto, diante do afluxo crescente dos últimos anos, medos e inseguranças geraram desânimo e frustração. Para enfrentar adequadamente a complexa questão da migração, é preciso situá-la dentro de perspectivas mais amplas de tempo e de espaço.

De tempo: o fenômeno migratório não é uma circunstância do momento, mas marca a nossa época. Carrega consigo as dívidas de injustiças passadas, de muita exploração, de mudanças climáticas e de conflitos infelizes dos quais se pagam as consequências. Do sul pobre e povoado, massas de pessoas se deslocam para o norte mais rico: é um fato, que não pode ser rejeitado com fechamentos anacrônicos, porque não haverá prosperidade e integração no isolamento.

Depois, há a considerar o espaço: a expansão da emergência migratória - pensemos agora nos refugiados da atormentada Ucrânia - pede respostas amplas e compartilhadas. Alguns países não podem assumir todo o problema na indiferença de outros! E os países civilizados não podem estabelecer, para seu próprio interesse, acordos torpes com criminosos que escravizam pessoas. Infelizmente, isso acontece. O Mediterrâneo precisa da corresponsabilidade europeia, para voltar a ser um teatro de solidariedade e não ser o posto avançado de um trágico naufrágio da civilidade”.

Como já havia dito em Lesbos, Francisco nos alerta para o risco de um naufrágio da civilização em nossas costas. Este mundo que quer ser livre e democrático tem dificuldade para o explicitar. E precisamente o concomitante desastre no mar – o enésimo que custou a vida de mais de 90 migrantes afogados no silêncio europeu - nos diz o quanto Francisco está percebendo - na própria carne - o drama. Os sinais são evidentes.

 

Oriente: onde surgem as trevas

 

Passando decisivamente para os "ventos do leste" geopolíticos, o papa destacou que, em vez de acompanhar o amanhecer, eles trouxeram - este ano – as trevas de mais uma guerra.

Achávamos que invasões de outros países, brutais combates de rua e ameaças atômicas fossem lembranças sombrias de um passado distante. Mas o vento gélido da guerra, que traz apenas morte, destruição e ódio, se abateu com prepotência sobre a vida de tantos e sobre o dia a dia de todos. E, enquanto mais uma vez algum poderoso, tristemente preso às anacrônicas pretensões de interesses nacionalistas, provoca e fomenta conflitos, as pessoas comuns sentem a necessidade de construir um futuro que será juntos ou não será. Ora, na noite da guerra que caiu sobre a humanidade - por favor - não deixemos desvanecer o sonho da paz”.

Nessa passagem parece-me evidente o sentido da advertência: o problema mais grave que continua a abalar a árvore da vida e da comunhão é o nacionalismo.

O Mediterrâneo conhece a guerra em seus detalhes mais íntimos - infelizmente. Assim como conhece muito bem o nacionalismo em todas as suas variantes. Na citação de La Pira, Francisco encontrou uma resposta global, como global entende a sua Igreja. Em 1960, La Pira formulava assim: "A conjuntura histórica que vivemos, o choque de interesses e de ideologias que abalam a humanidade tomada por um incrível infantilismo, devolvem ao Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir novamente as normas de uma Medida onde o homem deixado ao delírio e ao excesso possa se reconhecer'.

 

Magistério mediterrâneo

 

É uma frase retomada para resumir o magistério papal do Mediterrâneo, que atingiu o ponto mais inesperado de sua redação com a assinatura aposta junto com o ímã de al-Azhar, al-Tayyeb, no Documento sobre a fraternidade humana.

Como precisamos de uma medida humana diante da agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, diante do risco de uma guerra fria prolongada que pode sufocar a vida de povos inteiros e gerações! Infelizmente, aquele infantilismo não desapareceu. Reaparece com prepotência nas seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na agressividade generalizada, na incapacidade de construir pontes e partir dos mais pobres. Hoje é tão difícil pensar com a lógica da paz. Acostumamo-nos a pensar com a lógica da guerra. Daqui começa a soprar o vento gélido da guerra, que mais uma vez foi alimentado ao longo dos anos”.

Pensar que alguém possa ter lido essas últimas palavras em referência a ações específicas e não a uma cultura inteira que se fortalece na agressividade e no medo - palavras espelhadas como gotas d'água - é surpreendente. A rosa dos ventos que Francisco desdobrou de Malta é uma leitura profunda que nos convida a libertar-nos de autocracias e imperialismos, da agressividade e da cultura do descarte, ou seja, de tudo o que - perscrutando o horizonte do Mediterrâneo - a humanidade é chamada a se livrar de uma vez por todas. Caso contrário, será o fim. No maior dos pecados: o ódio.

 

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