23 Março 2022
Por que medicamos as pessoas que sofrem e não nos aprofundamos nas causas dessa infelicidade? O professor de antropologia social e psicoterapia da Universidade de Roehampton (Reino Unido), James Davies, crítico das “intervenções materialistas e lucrativas geradas pelo sistema” para enfrentar o mal-estar que o próprio modo de viver nos causa, questiona em seu último livro, Sedados. Cómo el capitalismo moderno creó la crisis de salud mental (Capitán Swing Libros), o fato de que os diagnósticos de doenças mentais aumentaram em número e gravidade, apesar do aumento da prescrição de psicotrópicos. “Nos países onde a prescrição de antidepressivos dobrou, as declarações de incapacidade por motivos de saúde mental também dobraram ao mesmo tempo”, explica.
Isso, afirma, mostra que a abordagem da saúde mental nas últimas décadas fracassou, diferentemente de outros campos da medicina, nos quais as pesquisas conseguiram avançar no tratamento e até curar outras doenças.
Davies critica o fato de as terapias psicológicas serem deixadas de lado e as soluções estruturais serem ignoradas para tratar doenças mentais para as quais não foram encontrados fatores biológicos e que ele considera que são “reações compreensíveis” do nosso corpo em circunstâncias difíceis. Em vez disso, o tratamento do sofrimento humano tem se concentrado na medicalização com medicamentos que, além disso, resultam de ensaios clínicos que não duram nem a metade do tempo médio que são administrados aos pacientes na vida real, diz o também cofundador do Conselho de Psiquiatria Baseada em Evidências.
A entrevista é de Lolita Belenguer, publicada por 20 Minutos, 17-03-2022. A tradução é do Cepat.
A pandemia da Covid e agora a guerra na Ucrânia; a realidade põe obstáculos para a saúde mental. O que você recomenda aos leitores para lidar com esses acontecimentos?
Parece que já estamos saindo da Covid, embora ainda haja problemas econômicos por vir. Uma das coisas que me preocupa tem sido a medicalização das respostas à Covid e aos acontecimentos difíceis. Em vez de ver essas respostas como uma reação compreensível a eventos difíceis, nós as medicalizamos e sugerimos que elas deveriam ser tratadas com intervenções médicas, em vez de permitir intervenções sociais, como, por exemplo, ajuda para encontrar trabalho para pessoas que perderam seus empregos. As respostas de que precisamos devem ser induzidas a partir de uma perspectiva social, psicológica e relacional, não psicofarmacológica. Mas não vimos esse tipo de tratamento durante a pandemia, mas sim um aumento de medicamentos psiquiátricos, algo que particularmente me preocupa.
Você diz que estamos lidando mal com a saúde mental, que o sistema de saúde mental está em crise. Por quê? Em que está falhando?
Desde os anos 80, ao contrário de outros medicamentos, na saúde mental temos visto que os resultados estagnaram. Mas, segundo alguns dados, os resultados pioraram, apesar da cobertura ter aumentado enormemente, aproximando-se de um quarto da população adulta que recebe algum tipo de medicamento psiquiátrico por ano. Algo similar acontece na Espanha. No Reino Unido, gastamos cerca de um quarto de trilhão de libras em pesquisa e intervenção em saúde mental desde a década de 1980, mas não estamos conseguindo um retorno do valor desse dinheiro. A principal razão pela qual estamos fazendo errado é porque não estamos abordando corretamente o problema. Desde a década de 1980 temos colocado o foco na medicalização, no fato de que se sofremos de algum tipo de transtorno mental é porque precisamos de intervenção médica ao invés de pensar que o seu sofrimento é um protesto compreensível às difíceis circunstâncias sociais para as quais temos que voltar nossa atenção. Como não estamos atacando a raiz do problema, não estamos melhorando nesse campo e não estamos vendo resultados porque adotamos a abordagem errada do problema.
E que mudanças propõe?
Acho que precisamos de uma profunda desmedicalização da maneira como entendemos e respondemos aos sofrimentos emocionais. Aliás, não sou "antimedicamentos" ou antipsicotrópicos, que funcionam para a maioria das doenças incapacitantes. Eu entendo isso, mas não é isso que temos. Temos um grande número de psicotrópicos com indicações para as quais não apresentam evidências de eficácia e, em vez disso, demonstraram causar danos e efeitos colaterais adversos. Então, precisamos de uma desmedicalização drástica, reduzindo a prescrição a números razoáveis, visando apenas pessoas para quem há evidências de que funcionam melhor do que o placebo; começar a reinfundir nosso sistema com alternativas sociais e psicológicas, com serviços e recursos baseados na comunidade. Essa seria a direção que acho que devemos seguir no futuro se tivermos alguma esperança de gerar os bons resultados que todos esperamos e merecemos.
Talvez um equilíbrio entre medicalização e terapia, entre as necessidades sociais e econômicas...
Sim, claro. Vejamos os fatores sociais: o que acontece na própria sociedade está levando cada vez mais pessoas a apresentar esses problemas, há problemas econômicos óbvios, as pessoas estão passando por dificuldades, há precariedade, grandes desigualdades na economia, discriminação, racismo... Sua localização social vai ditar como se sente em relação ao mundo, mas infelizmente os serviços de saúde mental não levam em consideração essas situações ou gatilhos de angústia. Em vez disso, qualquer reação humana compreensível a eventos difíceis é medicalizada. Medicaliza-se e espera-se que isso resolva o problema, mas não está corrigindo o problema e os dados mostram isso. Temos que ser mais criativos para avançar na solução dos problemas de saúde mental.
Você acredita que falar abertamente sobre problemas de saúde mental ajuda a não rotular?
Depende de com quem você fala e do sistema que você usa para falar sobre seus problemas. No Reino Unido, dizemos: "se você tiver um problema, vá falar com alguém". Se entre seus amigos ou familiares houver alguém que lhe dê uma ajuda valiosa, perfeito. Mas essas mensagens estão realmente querendo dizer às pessoas para buscarem ajuda profissional e, quando vamos, o que conseguimos? Segundo dados do Reino Unido – e na Espanha acontece algo similar –, cerca de oito milhões de pessoas receberam a prescrição de antidepressivos no ano passado e um milhão, terapia psicológica. Não é porque as pessoas preferem os medicamentos. As pessoas preferem a terapia, mas não contam com esse recurso, porque não o encontraram em seus serviços médicos ou sociais nos últimos 30 anos. É um modelo falido.
Qual é a diferença entre estar triste e estar deprimido? Estamos invertendo esses termos?
Existem pessoas que estão realmente angustiadas e podem ter pensamentos suicidas, mas essa é a minoria das pessoas, aquela que pode ser agrupada sob o guarda-chuva do que definimos como depressão. O que você precisa entender é que, para a grande maioria das pessoas que estão passando por momentos difíceis, a angústia é uma resposta significativa a eventos difíceis da vida, é um chamado à mudança. Sua tristeza, sua infelicidade, não é um distúrbio que você precisa corrigir em si mesmo, mas uma reação a algo que está acontecendo em sua vida e na qual você deve concentrar sua atenção, para o que você pode precisar de ajuda. Independente de como você queira chamar, é a relação que temos com a angústia. Ao invés de pensar "oh, meu Deus, eu tenho depressão, preciso ir ao médico", vamos pensar: "estou reagindo ao meu mundo. Algo não está bem, meu relacionamento, meu trabalho, meu passado está voltando...". Precisamos passar de uma forma simplista para uma forma mais exploratória e reflexiva.
Tomar remédio é para fracos ou perdedores?
Não, não, não. Não é correto dizer isso. Buscar ajuda é atitude de pessoas mentalmente corajosas. Eu sou crítico com a ajuda que encontramos, mas se olhar no espelho e admitir que estamos sofrendo e buscar ajuda é uma ótima e corajosa maneira de resolver as coisas. Estamos decepcionando as pessoas que corajosamente procuram ajuda, dando-lhes apenas um comprimido e levando-as a acreditar que vai resolver, quando as evidências mostram que provavelmente não vai ajudar muito. Eu nunca estigmatizaria as pessoas por tomarem psicotrópicos e, a propósito, algumas pessoas se beneficiam muito com os psicotrópicos e estou muito feliz por elas. Eu mesmo, quando estava com vinte e poucos anos, passei por um momento muito difícil, fui ao médico e pedi antidepressivos. Ele me aconselhou terapia e isso foi obviamente o que eu fiz. Eu entendo o que é sofrer e a maioria de nós sofre. Admiro as pessoas que procuram ajuda. Mas acho que estamos falhando com elas e os dados mostram isso. Este é o alvo da minha análise, não as pessoas que merecem mais do que estão recebendo.
Você acha que atualmente está na moda dizer que se toma antidepressivos, que o estigma foi eliminado? Nas redes sociais comenta-se sobre isso muito abertamente.
Isto é complicado. Estou mais preocupado com as campanhas de desestigmatização, que estão enviando a mensagem de que não há problema em tomar antidepressivos. Não tenho certeza se muitas pessoas têm ou não a ideia de que, se você toma algum medicamento, é fraco. Não acho que o estigma seja um impedimento porque um quarto da população toma antidepressivos, o que é inclusive mais do que as pessoas afetadas. O problema é que as pessoas estão tomando grandes quantidades de medicamentos. Eu não acho que as pessoas tomam remédios porque está na moda; elas tomam antidepressivos porque acham que vai ajudar. E, repito, os dados dizem que alguns se beneficiarão com isso, mas muitas pessoas serão prejudicadas. São essas as que me preocupam. A comunidade médica não as apoiou o suficiente, não lhes deu voz. Precisamos falar mais em nome desse grupo de pacientes.
Se não há anormalidades biológicas – como você sustenta em seu livro –, quais são as causas das doenças mentais, por exemplo, a depressão?
É preciso se perguntar se sentir-se deprimido é um transtorno. Eu entendo que isso afeta seu funcionamento e pode ser uma reação emocional. A causa do sofrimento de cada pessoa é muito circunstancial e específica: pode ser por ter um emprego instável ou precário, um relacionamento ruim, ter sofrido abusos... Se nos detemos na pandemia da Covid, quem mais sofreu não foram as pessoas da classe média com suas casas com jardim e empregos seguros, mas as mães solteiras que moram na cidade, pessoas que não têm opções. Quando investigamos o sofrimento, o sensato é olhar para as circunstâncias da pessoa e ver como elas estão contribuindo para seus problemas, e também não perguntar: "o que você está fazendo de errado?" ou "que doença você tem?", mas "o que está acontecendo com você?" e "o que lhe aconteceu no passado?".
Há pessoas que se dizem sobreviventes dos comprimidos e lhe agradecem pelo seu trabalho. Por que você acha que isso acontece?
Há muitas pessoas que se identificam como sobreviventes. Isso significa que elas sobreviveram ao sistema, e não apenas aos aspectos que as fizeram se sentir mal. O sistema, de fato, fez com que elas se sentissem pior porque não ouviu suas histórias e, em vez disso, as medicou, não lhes ofereceu terapia, as estigmatizou, as fez pensar que eram doentes crônicos. Percebi que essa comunidade é grande e está afirmando que precisa ser cuidada e amada.
O que melhora mais a saúde: conversar com amigos, praticar esportes ou ter uma área verde perto de casa?
Tudo isso é bom. Você tem que pensar em suas próprias circunstâncias, onde você precisa de mais equilíbrio em sua vida. Você pode estar trabalhando demais, não se exercitando o suficiente, comendo mal, não dormindo bem ou, talvez, esteja passando muito tempo nas redes sociais e não vendo amigos. Para cada pessoa é diferente, mas não deveríamos subestimar o efeito das mudanças com efeitos positivos em nosso estilo de vida. Se você não tiver a maioria dessas coisas, pode levar à depressão leve ou moderada.
Que consequências o abuso de psicotrópicos pode ter na saúde?
Quanto mais tempo você tomar antidepressivos, maior a probabilidade de ser prejudicado, seus problemas se tornarem crônicos e menor a probabilidade de se recuperar, de voltar ao trabalho... As evidências são bastante claras sobre isso. Existem muitas complicações que acompanham o uso prolongado dos psicotrópicos. Não apenas o número de prescrições está aumentando, mas também o tempo de uso dos comprimidos, que vem aumentando ano após ano. Quando você analisa os dados, vê que o uso prolongado desses medicamentos está correlacionado com questões preocupantes como o aumento das incapacidades de saúde mental, isso é o que mais me preocupa. Este é um grande problema para um sistema de saúde baseado na medicação.
Descreva-me, por favor, o processo desde a identificação e a definição de um novo transtorno mental até a descrição dos sintomas e do tratamento.
A construção de um novo transtorno mental é realizada por uma comissão por consenso e votação. Há documentação relevante disponível que mostra como, historicamente, esse processo tem sido altamente arbitrário e não guiado por evidências robustas. As causas biológicas nunca foram encontradas para a grande maioria dos transtornos, o que explica por que não existem testes biológicos que possam verificar qualquer diagnóstico psiquiátrico. Os diagnósticos são constructos que traçam as linhas entre normalidade e anormalidade de forma arbitrária.
O que você mudaria nos ensaios clínicos dos psicotrópicos? Quanto tempo eles duram? E qual o tempo médio que os pacientes tomam psicotrópicos?
Precisamos de ensaios clínicos que durem mais tempo. Eles são projetados para avaliar os efeitos adversos dos medicamentos. Infelizmente, nossos testes de eficácia são de curta duração (dois a três meses), mas a maioria das pessoas toma esses remédios por cerca de dois anos. De fato, 50% dos pacientes tomam antidepressivos durante mais de dois anos. A duração média do tratamento antidepressivo dobrou nos últimos dez anos.
O que você recomendaria a uma pessoa que acabou de perder um familiar muito próximo fazer para lidar e superar uma experiência tão dolorosa?
O básico e mais necessário para as pessoas que estão em luto é tempo, espaço, amor, apoio, ser cuidado, sentir que é normal se sentir perdido, cheio de dor, que é uma forma totalmente natural de responder ao que a vida nos coloca no caminho. Tem que tratar bem e cuidar das pessoas que passam por essa experiência com muita atenção e carinho. Não deveríamos medicalizar essas respostas, mesmo que durem muito tempo. No DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, editado pela Associação Estadunidense de Psiquiatria] houve mudanças sobre o luto: nesta semana, foi introduzido um novo termo chamado ‘transtorno do luto prolongado’ para quando se prolonga por mais de um ano. Ou seja, se isso acontecer com você, significa que algo ruim está acontecendo com você. O sofrimento pode ser patologizado, mas isso não ajuda. Nos últimos 40 anos, sobretudo, o catálogo de doenças mentais sem critérios diagnósticos vem se ampliando. Isso não é fantástico para a indústria farmacêutica? Quanto maior o mercado de doenças, maior o número de pessoas que precisam ser tratadas. É um mercado enorme que movimenta 80 bilhões de dólares por ano.
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“Precisamos desmedicalizar o sofrimento”. Entrevista com James Davies - Instituto Humanitas Unisinos - IHU