23 Março 2021
“A depressão, a neurose e o transtorno de personalidade limítrofe, caracterizados pela forma como a pessoa pensa e sente em relação a si mesma e aos outros, são sintomas de uma realidade própria do século XXI e o capitalismo digital”, escreve Marcos Roitman Rosenmann, analista político e ensaísta chileno-espanhol, em artigo publicado por La Jornada, 21-03-2021. A tradução é do Cepat.
Vivemos em uma sociedade doente. As manifestações são muitas. O uso de antidepressivos, ansiolíticos, e os derivados do ópio demonstram um comportamento pouco habitual. A crise da oxicodona nos Estados Unidos converteu a dor em um negócio para os laboratórios farmacêuticos. Além disso, tornou-se uma epidemia na qual se somam comportamentos autolíticos.
Automutilar-se é uma rota de fuga para milhões de pessoas no mundo. O medo do fracasso é uma de suas causas mais comuns. Os jovens e adolescentes fazem parte da população mais vulnerável. Provocar um dano a si mesmo se transforma em um modo de se sentir livre, de romper amarras.
Não são as dores do corpo que provocam o desejo de automutilação. Ao contrário, são as dores sociais, aquelas dependentes das estruturas de exploração, domínio e desigualdade. A perda de confiança e a solidão agem como catalisadores de uma dor cuja forma de ser combatida consiste em violentar o próprio corpo. A depressão, a neurose e o transtorno de personalidade limítrofe, caracterizados pela forma como a pessoa pensa e sente em relação a si mesma e aos outros, são sintomas de uma realidade própria do século XXI e o capitalismo digital.
Richard Wilkinson e Kate Pickett, em seu ensaio Igualdad: cómo las sociedades más igualitarias mejoran el bienestar colectivo, alertam: “Na Grã-Bretanha, 22% dos adolescentes de 15 anos provocaram danos a si mesmos, ao menos uma vez, e 43% desse grupo afirmaram fazer isto uma vez por mês. Na Austrália, um estudo com adolescentes destaca que 2 milhões de jovens se automutilam, em algum momento de suas vidas. Nos Estados Unidos e Canadá, os dados apontam que entre 13 e 24% dos estudantes se mutilam voluntariamente e crianças de apenas 7 anos se cortam, se arranham, se queimam, puxam seus cabelos, se ferem e quebram seus ossos deliberadamente”.
Estes comportamentos têm suas raízes em uma mudança no modo de perceber a dor. “É difícil imaginar que a angústia mental possa transformar a vida em uma experiência tão dolorosa que a dor física se torne libertadora e proporcione uma sensação de controle (...), mas são muitas as crianças, jovens e adultos que afirmam se mutilar ao sentir vergonha, cobrar-se ou acreditar que não estão à altura”.
A dor se constrói e se articula. Assim, entramos em outra dimensão na qual os comportamentos em relação à dor podem ser induzidos e recriados. Segundo o coronel estadunidense Richard Szafranski, “trata-se de influenciar a consciência, as percepções e a vontade do indivíduo, entrar no sistema neocortical (...), de paralisar o ciclo da observação, da orientação, da decisão e da ação. Em suma, de anular a capacidade de compreender”.
Medo e dor, uma combinação perfeita. O medo se orienta para objetivos políticos. Suas reivindicações podem ser o desemprego, a insegurança, a fome, a exclusão ou a pobreza. Neste aspecto, a dor entra com força na articulação da vida cotidiana, transforma-se em um mecanismo de controle. E, aqui, o conceito se extravia.
William Davies, em seu estudo Estados nerviosos, cómo las emociones se han adueñado de la sociedad, destaca: “Até a segunda metade do século XX, a capacidade do corpo em experimentar a dor em geral era considerada um sinal de saúde e não algo que precisava ser alterado, empregando analgésicos e anestésicos (...). O paciente que simplesmente pede acabe com a dor ou faça-me feliz, não está exigindo uma explicação, mas a mera paralisação do sofrimento (...) A fronteira que separa o interior do corpo começa a ficar menos clara (...). Em essência, retira do sofrimento qualquer sentido ou contexto mais amplo. Coloca a dor em uma posição de fenômeno irrelevante e completamente pessoal”.
A dor social, o sofrimento coletivo, a consciência do sofrimento, se desvanece em uma experiência impossível de ser comunicada. Perde toda a sua força. Ser feliz, eliminar a dor ou a conduzir para uma vivência pessoal, desativa a crítica social e política, unindo-se a comportamentos antissistêmicos.
Ao mesmo tempo, a dor é instrumentalizada. Neste contexto, é uma arma eficaz. Busca-se criar dor, potencializar seus efeitos nas pessoas. Fazer com que se torne parte de um comportamento flexível e submisso, onde a dor paralisa. Neste sentido, a construção de comportamentos baseados na manipulação da dor se vê favorecida pelo desenvolvimento do Big Data e a interconexão de dispositivos capazes de penetrar no mais profundo da mente-cérebro.
A realidade aumentada sob a inteligência artificial possibilita expandir o mundo da dor em todas as direções. A chamada Internet das coisas se torna uma fonte inesgotável de emoções e sentimentos, forjando estados de ânimo capazes de curvar a vontade sob o controle político da dor social. E o mais preocupante, está nas mãos de empresas privadas.
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A dor social, arma política do capitalismo digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU