30 Mai 2020
Desde finais de 2019, um livro percorre o mundo de modo silencioso. Sem estridências, diz que vivemos os tempos mais acirrados desta era que muitos querem batizar, mas não acertam em conferir a mesma o nome exato. Estamos vivendo um tempo nervoso? É, certamente, o tempo das emoções e paixões, em particular discussões, ódios, iras e tempestades diversas. A estas se refere o sociólogo e economista britânico William Davies (1976), autor do livro “Estados nerviosos. Cómo las emociones se han adueñado de la sociedad” (Ed. Sexto piso, tradução para o espanhol de Vanesa García Cazorla).
“Empresas e políticos sem escrúpulos exploram intensamente nossos instintos e emoções para nos convencer a acreditar ou comprar coisas que, com uma reflexão mais atenta, não acreditaríamos, nem compraríamos”, diz Davies, em seu livro. Além disso: “O medo da violência pode ser uma força tão disruptiva como a violência real, e pode se tornar difícil de amenizar, uma vez estendida”.
Sobre todos os estados nervosos da humanidade, e no contexto da pandemia, Davies conversou com a Revista Ñ, por telefone, de Londres, que busca reconquistar a si mesma, sem muita certeza sobre o real achatamento das curvas do coronavírus.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 28-05-2020. A tradução é do Cepat.
Começa o livro falando das emoções, nossa mais humana ocupação. No entanto, diz que a tecnologia digital captura a informação de nosso comportamento. O que diria Sigmund Freud a esse respeito?
Penso que Freud ficaria muito surpreso em ver como as coisas mudaram. Algumas das ideias da psicologia, que agora inspiram o Vale do Silício, já existiam na época de Freud. Por exemplo, o behaviorismo que sustenta que nossos estados mentais e emocionais são, na verdade, físicos, e parte de nosso corpo. O psicólogo e filósofo estadunidense William James foi muito influente em seu pensamento sobre as emoções, em particular, na ideia de que uma emoção é algo que começa em nossos corpos e depois chega a nossa mente.
Então, Freud não concordaria com a perspectiva do Vale do Silício, que é efetivamente que todos os estados – felicidade, ira, alegria, desespero – podem ser definidos em termos de movimentos faciais, usos de linguagem ou em certa maneira de deslizar o dedo pela tela. São coisas que podem ser conhecidas de maneira objetiva. Freud tinha esperanças científicas elevadas, mas não teria pensado que as síndromes que lhe interessavam pudessem ser compreendidas sobre a base de dados como estes.
Vamos aos casos concretos: O que acontece quando votamos? Qual é o papel das emoções? Como se chegou a optar por Trump, Bolsonaro e o Brexit?
Penso que certas emoções foram estimuladas e usadas nos último 10 anos, particularmente emoções de ressentimento, uma emoção interessante. É uma emoção em que desejo estar bem, mas fico irritado porque o outro está melhor e desejo fazer algo para deter isso. No caso de Trump, a maioria de seus simpatizantes são pessoas que estão relativamente bem, mas estão irritadas porque os afro-americanos ou as mulheres estão melhores, ou talvez existam pessoas mais ricas que eles, que estão melhores.
Há um tipo de emoção que foi interpelada. Existem emoções mais positivas que foram usadas no passado para influenciar o comportamento do voto. As ferramentas de persuasão ao público de massas são usadas desde que existe o voto geral. Nos casos de Bolsonaro e Trump, são formas de emoção que prosperaram em termos de uma crescente insegurança econômica, mas também em paranoia. E algo dessa paranoia vem de um particular clima onde as pessoas deixam de confiar nos principais meios de comunicação e no governo.
Também existem muito mais perspectivas com as quais podem lidar com o que está acontecendo, graças às redes sociais. Cada vez mais, as únicas orientações que possuem são suas próprias sensações de injustiça. Sentem que o mundo não está bem, que estão sendo maltratadas, que não são governadas por pessoas honestas, e que não existe justiça. Torna-se algo cada vez mais pessoal, sentem que não estão sendo respeitadas, que não recebem voz ou o reconhecimento que merecem.
São emoções que no passado poderíamos ter identificado com grupos objetivamente marginalizados, por razões raciais ou de classe. Mas, agora, vemos que é algo que as pessoas carregam consigo, é algo que as etnias e classes comparativamente privilegiadas também podem sentir. E isto é algo que os líderes políticos demagógicos fazem muito bem. O uso das fake news é muito poderoso para gerar estas coisas.
Que emoções despertam os movimentos antivacinas, que observamos, por exemplo, aqui, na Argentina, em tempos de pandemia?
O movimento antivacina prospera entre aqueles que sentem que não confiam no governo, nem nos meios de comunicação. Acreditam que foram ignorados e marginalizados e que vivem em um espaço onde a confiança é muito frágil, não acreditam nas perspectivas prevalecentes, o que prevalece é algo em que não se pode confiar. É claro, vacinar seu filho implica altos níveis de confiança, porque se permite que um estranho coloque um pedaço de metal no braço de seu filho, injetando uma droga. Isto implica um nível de confiança importante. E para que isto funcione deve haver confiança na profissão médica. As vacinas, diferente de outros modos de cuidado sanitário, operam em um nível societário, não em termos individuais.
Penso que os que suspeitam das vacinas são pessoas que tem emoções de querer segurança, de querer, obviamente, cuidar do próprio filho e da família. E por isso estas coisas são tão poderosas. As fake news sobre o coronavírus viajam pelo WhatsApp, porque dizem “por favor, você e sua família precisam saber que este tratamento é perigoso, precisam saber que é uma mentira. Alguém está mentindo para vocês”. E falam à emoção de que minha família e eu estamos em perigo, de que o governo não se importa e que esta informação é fornecida por alguém que sente o mesmo que eu. Porque percebo que neste vídeo sentem a angústia que eu sinto, e por isso posso confiar neles, porque sentem o mesmo que eu. Ao passo que este jornalista ou político não demonstra sentir interesse, só falam de dados o tempo todo e fazem anúncios formais.
Então, há uma mistura de medo, e o instinto de proteger a própria família, os próprios filhos. E isto é uma combinação muito poderosa. Há estudos na França que mostram que estes movimentos antivacinas se movem nos mesmos círculos que populistas como Marine Le Pen.
Qual é a sua opinião a respeito de redes como Facebook e Twitter? São dois monstros que provocam nossas emoções?
As redes possuem propriedade viciantes, nos geram angústia, prazer e ciúmes. Há um ciclo viciante de gratificação e insegurança. Mas fazem com que nos sintamos reconhecidos quando nos dão um feedback positivo. Falam a um aspecto primário de nossa estrutura emocional.
O Facebook tenta compreender as respostas emocionais das pessoas, porque vendem estas descobertas aos que fazem publicidade. Procuram traçar um perfil emocional de grandes grupos de pessoas. Isto faz parte do capitalismo, são dados que podem ter usos comerciais e também de segurança. Ao mesmo tempo, processam informação baseada em análises para ajudar os serviços de segurança a identificar ameaças e futuros perigos.
No livro, você destaca que a função do Google Maps não é retratar a realidade, mas executar um plano. Que plano?
Antes de ter smartphones, a maioria de nós tinha um mapa ou um atlas, que carregava na mochila, que nos dizia como andar pela cidade. Ao passo que agora vivemos em uma era de satélites. O GPS diz a você se vira à direita ou à esquerda, nos dá uma espécie de conhecimento, mas não é representacional.
A capacidade de usar um mapa tradicional é muito sofisticada, exigente, pois implica olhar para um pedaço de papel, com uma estranha imagem, e pensar como corresponde com esta situação confusa, tridimensional, na qual se está. E há um modo de abstração que ocorre nesse conhecimento. Já o Google Maps não requer essa capacidade de objetivar, nem de abstrair, só requer a habilidade de permanecer no fluxo de impressões, movimentos e instruções. O mapa se torna o executor do plano e não a imagem do mundo.
Por que acredita que a vigilância é o modelo de negócios da internet?
Acredito que se tornou o modelo de negócios da internet. Efetivamente, a internet entrou na sociedade “mainstream”, nos anos 1990. Durante muito tempo, não se sabia como fazer dinheiro com isso. Veio a bolha e depois houve um ponto de inflexão, em 2004, ou 2005, quando o Google percebeu que podia fazer dinheiro com os dados obtidos. Isto se tornou o início de uma nova fase de empresas muito grandes de tecnologia. Em vez de tentar fazer com que as pessoas pagassem pelos serviços, era preciso fazer com que usassem a infraestrutura para depois acumular grandes quantidades de dados. É assim que também funcionam o Facebook, a Airbnb, etc.
Neste sentido, usar a internet como uma ferramenta de vigilância é a maneira como a mesma se tornou parte do capitalismo. Nos anos 1990, nem sequer estava claro que fosse compatível com fazer dinheiro, o que as pessoas viam era esta rede de computadores que destruíam modelos de negócios. Não pareciam estar criando nenhum novo. Mas depois se descobriu com o Google e o Facebook que, sim, havia um modelo de negócios.
O propósito do ‘troll’ não é o poder, mas causar dor, sustenta no livro. Isto é igual para todas as estratégias desestabilizadoras dos ‘trolls’?
Há um instinto nas democracias liberais de buscar romper certas estruturas sem ter algo para substituir. Ser antiestrutura, anti-instituição. Acredito que foi disto que se tratou, em grande medida, o Brexit: o desejo de causar dano às elites que pareciam estar acima da democracia. Não quer dizer que todos os que votaram no Brexit são trolls, mas que existe uma lógica comum, que é a que nesta era, em que a representação política parece não funcionar, as pessoas não acreditam que a democracia representativa seja legítima.
A legitimidade, então, está na pessoa que chama a atenção para as mentiras, a pessoa que de uma maneira muito inflamada está disposta a entrar no debate “mainstream”, ou seja, algo escandaloso: “vocês são todos mentirosos, são todos tontos, são todos idiotas”. E de algum modo isso é o que Trump pôde fazer em 2016. Não parecia credível, não parecia dizer a verdade, não se interessa em representar as pessoas pelos canais normais da democracia institucional. Contudo, estava disposto a fazer explodir algo que parecia estar podre dentro de Washington.
Essa é a mesma lógica de atuação dos “trolls” online. O clássico comportamento deles é entrar em discussões “mainstream” e ser disruptivos, e torná-las impossíveis com comportamentos obscenos ou absurdos para conseguir fazer com que essa discussão termine. E fazem isso para ganhar o respeito e o riso de outros trolls, em certo sentido. É uma maneira de fazer naufragar a vida pública “mainstream”.
Por que acredita que a internet seja tão efetiva em minar as instituições democráticas, mas não tanto quando se trata de criar novas?
Enquanto as instituições funcionam entre o consentimento e o consenso, a internet é muito boa para criar dissenso. As instituições criam regras e normas. Ainda que as pessoas possam ter diferentes perspectivas do mundo, são capazes de reconhecer as decisões que podem ser tomadas em nome de milhares ou milhões de pessoas que poderiam não representar perfeitamente todos os pontos de vista, mas, em certo nível, deram o consentimento para isso, e existe um consenso aparente. E assim a democracia representativa, os parlamentos e os meios de comunicação funcionam. Não existe uma forma perfeita de contar a história do que ocorreu. Sempre é uma aproximação da informação que está ali, é uma aproximação que a maioria está disposta a aceitar como válida, mesmo que não seja perfeita.
A Internet permite que todas as perspectivas de dissenso apareçam. É um espaço no qual as pessoas que não estão de acordo, observadores de primeira mão, com uma perspectiva diferente, pessoas que tem um telefone com câmera, podem estar. E é muito boa para romper o consenso ou o consentimento e permitir que se expresse uma maior diversidade de pontos de vista. Isto tem efeitos positivos.
Nos primeiros dias de internet, pensava-se que todas as comunidades minoritárias iriam poder se expressar. Tudo isso ainda é verdade. A Internet tem a capacidade de denunciar a corrupção. Houve escândalos que foram expostos graças ao poder da publicação amadora e as redes sociais. É mais difícil poder se esconder. E, nesse sentido, deveríamos estar agradecidos.
O que se provou é que a internet é muito ruim para construir credibilidade para o consenso. Sempre confere o poder às pessoas que rompe o consenso. Isto porque é uma rede descentralizada, que sempre irá oferecer uma voz que se opõe. A Internet sempre oferecerá a descentralização e dará a voz aos de fora.
Como caracteriza o papel dos tecnocratas? Os governos os acusam por todas as crises, mas continuam sendo convocados...
Sempre há uma tensão entre o conhecimento especializado e a democracia. As comunidades de especialistas sempre envolvem esforços para se isolar da política e do público, para estabelecer um consenso sobre certas coisas. Quando há especialistas que buscam encontrar uma vacina para a covid-19, não costumam ser comunidades democráticas, não precisam responder ao público, estão dentro dos laboratórios, e todos devemos esperar que tenham êxito. A maioria das pessoas confia neles, mas seu poder, que provém de uma mistura de capital e governos, não responde ao público.
Penso que o termo “tecnocrata” tende a aparecer quando essa visão da autoridade dos especialistas passa dos limites, de certo modo, e se move para um espaço que deveria ser democrático. Durante a crise do euro, Mario Monti claramente foi inserido como primeiro-ministro da Itália, sem qualquer consenso democrático. Simplesmente porque o Banco Central Europeu insistiu.
Os bancos centrais são a forma icônica da tecnocracia dos últimos quarenta anos. A própria visão dos bancos centrais, que começou a surgir nos anos 1970, era a que tinha que ser um tipo de poder não democrático, mas antidemocrático. Para que o dinheiro continuasse tendo valor, deveria ser governado de modo impermeável às decisões do público. De certo modo, uma das razões pelas quais os bancos centrais continuam existindo é porque os mercados financeiros parecem insistir nisso, e os governos ainda temem os mercados financeiros, em certos sentidos.
A pandemia é um entre muitos outros problemas...
Há problemas e riscos como pandemias, também a mudança climática, que parece desafiar a possibilidade da democracia. Há certos problemas que tem uma complexidade e uma urgência que parece demandar soluções tecnocráticas. Houve um período particular, entre os anos 1980 até 2016, a era neoliberal, em que houve um esforço conjunto de empurrar algumas áreas das políticas públicas, especificamente na economia, mas não só na economia, para as mãos não democráticas. E acredito que se trata do que agora, em parte, provocou a emergência dos populismos.
E diante desta crítica aos tecnocratas, por acaso, podemos esperar dos políticos a solução para todos os problemas?
(Sorri) Isso responde a pergunta. Problemas como o movimento antivacina são muito difíceis de desarmar, porque as teorias conspiratórias tendem a envolver as pessoas. Alguns destes movimentos populistas têm alguns benefícios, porque começam a empurrar a democracia contra o poder dominante dos tecnocratas. Há uma necessidade de tentar pensar como algumas formas de políticas tecnocráticas podem ser reconectadas às vidas cotidianas das pessoas.
Existem certos modos de autoridade que não sofrem a perda da confiança, particularmente a profissão médica. Uma das razões pelas quais a profissão médica mantém sua autoridade é porque muda e melhora a vida das pessoas. As políticas econômicas e o conhecimento econômico se tornaram uma linguagem abstrata e completamente sem sentido, que parece seguir para outro rumo e com frequência parecem suprimir a democracia. E penso que isso foi um terrível fracasso dos últimos dez a quinze anos. Foi o que ocorreu na política econômica.
Acredito que muitos liberais e tecnocratas perceberam que estão com problemas. Emmanuel Macron foi populista pela forma como chegou ao poder, mas buscou defender o liberalismo de uma maneira nova e apaixonada. Pode ser que esta crise ofereça novas oportunidades para apresentar visões de democracia e de conhecimento especializado que façam uma diferença na vida das pessoas. Há muitos tipos de problemas, particularmente dentro dos partidos políticos.
Que outros atores decepcionam neste contexto? Jornalistas, juízes, intelectuais?
Sim, considero que os indivíduos que sofrem os piores níveis de confiança nas democracias liberais são os políticos e os jornalistas, o que é fatal, realmente, porque estas são figuras centrais da esfera pública. É muito daninho que exista esta perda de confiança na esfera pública. E ocorreu muitas vezes de uma forma não merecida. Há muitos excelentes jornalistas totalmente credíveis por aí, mas as pessoas não querem prestar atenção neles.
Pode-se ver a forma em que populistas como Trump e Viktor Orbán e, em menor medida, Boris Johnson, buscam aumentar os níveis de ressentimento e suspeita não somente em relação aos jornalistas e juízes, também contra os intelectuais, principalmente de humanidades. Orbán tornou ilegal ensinar estudos de gênero na Hungria: o antifeminismo ocupa um lugar importante. No coração desse tipo de bestá a ideia de uma ordem natural, uma ordem racial e de gênero natural, destruída pelo capitalismo global. Isto confere muita força à visão de mundo de pessoas como Marine Le Pen.
Acredita que o coronavírus possa deixar um transtorno do estresse pós-traumático?
Sem dúvida, deixará feridas. O estresse pós-traumático é uma categoria de diagnóstico muito específica. Uma das características centrais do transtorno do estresse pós-traumático é a que está associada à sensação de estar preso e de ter perdido totalmente o controle. Pode ser o produto de uma experiência de violência, um acidente, uma relação abusiva ou seja o que o for. Provavelmente, existem indivíduos que se sentem presos de maneira horrível por causa do coronavírus. Ficam presos em relações abusivas ou na sensação de terrível pobreza ou na sensação de absoluta impotência. Esse é o aspecto particularmente daninho de uma experiência traumática, essa sensação de aguda impotência.
Suponho que algo assim acontecerá com as pessoas, como resultado do coronavírus, mas não necessariamente com todos. O transtorno do estresse pós-traumático foi diagnosticado pela primeira vez nos soldados que voltavam do Vietnã, que pareciam reviver suas experiências nos Estados Unidos. Pode ser que existirão pessoas que se sentirão traumatizadas por terem sido confinadas. Talvez a sensação de estar preso deixe nelas uma cicatriz. Haverá uma exacerbação das desigualdades, desenvolvimentos emocionais que ainda não se deram nas sociedades. Ou feridas emocionais que precisarão ser tratadas com o tempo. Isto deixará cicatrizes.
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“As redes sociais nos geram angústia, prazer e ciúmes”. Entrevista com William Davies - Instituto Humanitas Unisinos - IHU