Racismo ambiental. A emergência climática pode ser enfrentada por todos, ricos e pobres. Ou todos enfrentaremos um desastre em escala bíblica. Entrevista especial com Henrique Cortez

Foto: Católica EAD

Por: Patricia Fachin | 20 Dezembro 2019

O fracasso da COP25 realizada em Madri no mês de dezembro não é uma novidade, apesar do crescimento de manifestações globais e da Greve Global pelo Clima, realizada em vários países em setembro deste ano. “Com exceção do Acordo de Paris, as COPs são marcadas pelos fracassos. Ao longo do tempo, a sociedade civil vem aumentando sua compreensão e engajamento pelas mudanças necessárias diante da emergência climática, mas os países e seus negociadores caminham na direção contrária”, diz o jornalista Henrique Cortez à IHU On-Line.

Na avaliação dele, a falta de avanço nas Conferências Climáticas indica que “descarbonizar a economia é um desafio que as lideranças políticas e econômicas dos países não querem enfrentar, por diversas razões”. Entre elas, porque o comprometimento com a redução das emissões de gás carbônico “abalaria o atual modelo e sua estrutura de poder e, em segundo, porque é algo inédito, que ninguém sabe como realmente seria”, afirma. Segundo ele, o negacionismo climático que predomina em alguns setores da sociedade e atores políticos “é um dos aspectos de um evidente movimento anticiência e anti-humanista”, que implica em “retrocessos civilizatórios”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Cortez também comenta a agenda ambiental do primeiro ano do governo Bolsonaro e a proposta de elaborar uma Constituição da Terra, que tem sido discutida na Itália. “A ideia de um constitucionalismo universal é a mais correta, porque vivemos em uma casa comum e compartilhamos o mesmo futuro. É uma proposta lúcida e avançada, mas ainda longe de uma compreensão global”, conclui.

Henrique Cortez (Foto: Arquivo pessoal)

Henrique Cortez é jornalista especializado em meio ambiente, consultor em comunicação ambiental e editor do sítio EcoDebate, um dos parceiros estratégicos do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação faz do ano de 2019 em termos ambientais?

Henrique Cortez - 2019 foi um ano dos mais trágicos em termos socioambientais nas últimas décadas.

IHU On-Line - Em 2019 assistimos ao desastre em Brumadinho, houve recordes de queimadas na Amazônia e vazamento de óleo no litoral brasileiro. Como o senhor interpreta esses desastres ambientais?

Henrique Cortez - As três tragédias a que se refere não estão diretamente associadas, mas têm em comum que nascem da lógica do desenvolvimentismo predatório e que deixarão sequelas por muito tempo. São três desastres amplamente conhecidos, então, não é necessário descrevê-los. Prefiro discutir a lógica do modelo de desenvolvimento que orienta e justifica terríveis danos socioambientais. O desenvolvimentismo a qualquer custo se esforça pelo maior lucro, mesmo com o maior dano possível. É um modelo predatório que favorece a poucos e prejudica a todos. É, na realidade, uma ganância estúpida, porque vivemos em um planeta finito, com recursos igualmente finitos, logo o desenvolvimento baseado na expansão infinita da economia não funcionará por muito tempo. Pena que reconhecer o óbvio nem sempre seja simples.

IHU On-Line - A agenda ambiental do governo Bolsonaro foi bastante criticada neste primeiro ano. Que balanço geral faz do modo como o governo conduziu a pauta ambiental e quais foram os erros e acertos na condução da política ambiental?

Henrique Cortez - Prefiro defini-la como agenda antiambiental do governo Bolsonaro. Este foi um ano marcado por retrocessos na legislação, na conservação e na agenda socioambiental. Bolsonaro, desde sempre, expressou seu desprezo pelas questões ambientais, não apenas pela sua notória ignorância no tema, mas porque possui uma visão de mundo da primeira metade do século XX.

É estranho, mas a atual versão tosca e bruta do desenvolvimentismo usa argumentos semelhantes aos que os capitães da indústria, mineradores, banqueiros e políticos populistas usavam na década de 30 do século passado. E já sabemos o que veio em seguida.

Mas é hora de parar com a desculpa esfarrapada de que o desenvolvimentismo a qualquer custo gera impostos, emprego e renda. O desenvolvimento predatório privatiza o lucro e socializa o prejuízo. Ou para quem precisa de desenho — poucos ganham e muitos perdem.

IHU On-Line - No Brasil e em alguns outros países têm havido um movimento político de contestação das mudanças climáticas e também de outras pautas ambientais no sentido de negá-las. Como o senhor compreende esse fenômeno e quais são os riscos ambientais, sociais e políticos desse tipo de postura?

Henrique Cortez - O negacionismo climático é um dos aspectos de um evidente movimento anticiência e anti-humanista, empenhado em diversos retrocessos civilizatórios, em alguns temas até antes do pré-iluminismo.

Negacionismo climático, terraplanismo, movimento antivacina, criacionismo, fundamentalismo religioso, supremacismo, messianismo político etc., que se acreditava superados, retornam com vigor e violência, em defesa de uma visão de mundo binária, maniqueísta, que, acima de tudo, é inimiga da diversidade biológica, etnocultural, ideológica, religiosa etc. Retrocessos civilizatórios são assustadores. Não importa se os retrocessos são justificados por razões políticas, ideológicas ou religiosas, porque eles nos fazem menos humanos do que poderíamos ser.

IHU On-Line - Muitos ambientalistas avaliam que a COP25 foi um fracasso. Compartilha desse diagnóstico? Se sim, a que atribui o resultado, num ano em que se intensificaram as manifestações sobre as mudanças climáticas?

Henrique Cortez - Com exceção do Acordo de Paris, as COPs são marcadas pelos fracassos. Ao longo do tempo, a sociedade civil vem aumentando sua compreensão e engajamento pelas mudanças necessárias diante da emergência climática, mas os países e seus negociadores caminham na direção contrária.

Em geral, os países são a favor de tudo, desde que o tudo se refira aos outros. Descarbonizar a economia significa uma imensa modificação no modelo econômico, ou seja, algo que nenhum líder político arriscará. Nada é mais importante para um político do que a sua própria sobrevivência política.

IHU On-Line - Neste ano, assistimos a algumas manifestações internacionais em prol do clima, denunciando os efeitos das mudanças climáticas e cobrando ações políticas dos governos. Figuras como o Papa Francisco e a ativista Greta têm sido tomados como referência na mobilização pela questão climática. Ao mesmo tempo, a Organização Mundial Meteorológica - OMM divulgou a informação de que os níveis de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso atingiram concentração recorde. Que efeito esse tipo de mobilização e de informação tem gerado? Qual é o impacto dessas figuras e dessas informações na luta pelo clima?

Henrique Cortez - Como disse, uma parcela da sociedade já compreendeu que caminhamos para o desastre e está se mobilizando, na tentativa de evitar o pior. Ainda é uma pequena parcela, mas luta para ser ouvida e ampliar a compreensão do que nos espera.

O Papa Francisco e Greta Thunberg são lideranças muito diferentes, mas compartilham a visão de futuro e a crítica de que estamos no caminho errado. Eles nos lembram de que a atitude ecocida também é suicida. E, exatamente por isto, enfrentam resistências e críticas desqualificadoras.

Espero que as manifestações aumentem e que mais e mais pessoas compreendam a dimensão da crise que se aproxima, permitindo, inclusive, que surjam novas lideranças políticas, realmente comprometidas com as mudanças necessárias, por mais difíceis que sejam. Não é possível discutir alternativas de futuro com lideranças políticas e econômicas presas ao passado.

IHU On-Line - Desde o Protocolo de Quioto, há uma dificuldade de os países chegarem a alternativas para enfrentar a crise climática. Por quê? Quais são as dificuldades de tratar essa questão?

Henrique Cortez - Descarbonizar a economia é um desafio que as lideranças políticas e econômicas dos países não querem enfrentar, por diversas razões. Em primeiro, porque abalaria o atual modelo e sua estrutura de poder e, em segundo, porque é algo inédito, que ninguém sabe como realmente seria.

Governos de países como EUA, Rússia, Austrália, Arábia Saudita, e agora o Brasil, são assumidamente negacionistas climáticos porque querem preservar a economia emissora de carbono. Descarbonizar a economia para estes governos é uma blasfêmia.

Apegar-se ao passado impede a compreensão do futuro e isto vale para governos e pessoas. No momento, poucos estão realmente comprometidos com um futuro minimamente aceitável. E não vejo que isto vá mudar na próxima década.

IHU On-Line - Qual a sua avaliação de movimentos como o Fridays for Future? Por que a Europa e os EUA aderiram às greves pelo clima com muito mais força que os países do Sul?

Henrique Cortez - Movimentos como o Fridays for Future são exemplos de uma sociedade civil cada vez mais consciente dos desafios e das necessidades de mudança, não apenas na questão climática, mas também por uma sociedade mais justa e igualitária. Os temas de fundo são variados, mas críticos ao modelo atual.

Não sei por que isto ainda é mais forte na Europa e nos EUA do que nos países do hemisfério Sul, mas acredito que seja pela grande disparidade nos problemas do cotidiano. Ainda estamos discutindo educação, saúde, saneamento, habitação, desigualdade, geração de emprego e renda, enquanto que vários desses temas já foram superados nos EUA e Europa.

Além da nossa histórica alienação, também estamos tentando melhorar a nossa vida hoje, sem conseguir como refletir no futuro. A sobrevivência do indivíduo ainda pesa mais do que a sobrevivência do coletivo.

IHU On-Line - A partir do resultado da COP25, quais são as expectativas em torno do anúncio das metas climáticas a serem anunciadas pelos países signatários do Acordo de Paris em 2020, na COP26 em Glasgow?

Henrique Cortez - Sinceramente, expectativa alguma. Ao contrário, com a crescente ascensão global do populismo, acho que os eventuais avanços serão milimétricos.

IHU On-Line - No atual cenário de crise migratória, crise econômica e tensões internas em vários países do mundo, qual a perspectiva de a pauta ambiental ganhar destaque no próximo ano?

Henrique Cortez - A sociedade aos poucos vai percebendo que a agenda socioambiental não é acessória e, por isto, deve estar no centro das discussões nacionais e internacionais. A distância entre a vontade da sociedade e as decisões de seus governos deve aumentar. Não sei se este distanciamento cada vez maior caminhará na direção de um rompimento, mas, cedo ou tarde, a sociedade se fará ouvir.

Não apenas no próximo ano, mas também na próxima década, não vejo mudanças significativas. As mudanças virão quando deixarem de ser consenso científico para tornarem-se consenso na sociedade, pouco importando se do hemisfério Sul ou Norte.

IHU On-Line - Em que medida a concepção de uma outra economia, como a que tenta inspirar o Papa Francisco, pode contribuir tanto para repensar a economia quanto a crise climática e social?

Henrique Cortez - Acho a reflexão proposta pelo Papa Francisco por uma 'economia que dá vida e não mata' importante e necessária, mas não acho que esteja sendo acolhida. Mesmo dentro da igreja e na maioria dos fiéis, as ideias do Papa Francisco ainda são relativizadas, quando não ignoradas.

A Encíclica Laudato Si’, por exemplo, é primorosa na defesa do cuidado da casa comum. Deveria ser pauta de discussão, mas é amplamente ignorada. Mudar é algo difícil para qualquer pessoa e, para sociedades e seus governos, é imensamente mais difícil. Mas acho importante que ele continue indicando novos caminhos. É o certo a fazer e ele parece comprometido com isto. “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”.

IHU On-Line - Quais são as perspectivas na pauta ambiental para o próximo ano do governo Bolsonaro?

Henrique Cortez - Trágicas, não apenas no próximo ano, mas em todo o mandato. Transtorno delirante persistente, suposições conspiracionistas, achismo militante, desenvolvimentismo predatório e o racismo ambiental agora são orientadores de políticas públicas.

Na melhor das hipóteses, a agenda antissocioambiental deve evoluir ao longo do mandato. Na pior, deve se acelerar, na lógica de “Après nous le déluge” (Depois de nós, o dilúvio).

IHU On-Line - Qual deve ser o peso da agenda ambiental nas eleições de 2020?

Henrique Cortez - A agenda ambiental sempre foi ignorada em eleições municipais. As pessoas, em geral, pensam nos prefeitos como ‘síndicos’ municipais, essencialmente responsáveis pela zeladoria das cidades. Além disso, com tantos desafios na saúde, educação, habitação, transportes urbanos, parece que a questão ambiental é irrelevante. Não é, ao contrário, a ecologia urbana é central nesses temas, mas isto não é percebido pela população e menos ainda pelos políticos. Sintetizando, creio que a agenda ambiental não terá peso nas eleições de 2020.

IHU On-Line - Na Itália, alguns têm proposto uma Constituição da Terra como um instrumento para "salvar" o Planeta. Como vê essa possibilidade? Um constitucionalismo universal seria uma via alternativa para resolvermos os problemas de hoje?

Henrique Cortez - A ideia de um constitucionalismo universal é a mais correta, porque vivemos em uma casa comum e compartilhamos o mesmo futuro. É uma proposta lúcida e avançada, mas ainda longe de uma compreensão global.

A crescente postura soberanista e antiglobalista, compartilhada pelo governo Bolsonaro, caminha na direção contrária e ainda é a visão dominante. Uma visão equivocada, porque as crises socioambientais não reconhecem fronteiras ou bandeiras. É uma grave tolice egocêntrica, desconectada da realidade.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Henrique Cortez - Para muitos, um aquecimento de 2°C até o final do século está dentro dos limites do aceitável e, por isto, quaisquer ações só se justificam para um aquecimento potencial maior do que isto.

Mas isto supõe um evidente racismo ambiental, que acredita que os maiores impactos serão nos países mais pobres, concentrados no hemisfério Sul. De fato, os países pobres sofrerão mais e mais rápido, mas os países ricos também serão afetados. Os ricos poderão morrer por último, mas também morrerão.

Então, a emergência climática pode ser enfrentada por todos, ricos e pobres. Ou todos enfrentaremos um desastre em escala bíblica.

 

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