06 Dezembro 2019
"Nem todos, é claro. Mas agora, o hipercapitalismo busca desprestigiar as Humanidades e financiar apenas a ciência que gera lucros. Para fazê-lo, já aceita aliar-se a projetos e personagens grotescos – como Weintraub e o Future-se", escreve Marcos Barbosa de Oliveira, doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Londres e livre-docente pela USP, em artigo publicado por OutrasPalavras, 04-12-2019.
Em Universidade: por trás do projeto Weintraub, publicado em Outras Palavras em 26/7/2019, discuti o processo de mercantilização da ciência e da Universidade enquanto um aspecto do neoliberalismo, com foco no inovacionismo. Este foi definido como o movimento, no campo das políticas científicas e tecnológicas, que promove a produção de inovações como objetivo primordial da pesquisa científica, sendo uma inovação definida como uma invenção rentável seguramente e a curto prazo. Como a instância que determina o que é e o que não é rentável é o mercado, o inovacionismo faz com que a definição dos rumos da pesquisa – ou, em outras palavras, a decisão sobre quais projetos de pesquisa devem ser financiados – fique nas mãos do mercado. A presente contribuição versa sobre a mesma temática, e divide-se em duas partes: a primeira parte é mais geral, envolve uma interpretação e uma crítica do inovacionismo; a segunda diz respeito à conjuntura, mas precisamente, ao status do inovacionismo nos dias de hoje.
Ainda no texto em pauta, expus duas críticas ao inovacionismo: uma mais geral, aplicável ao inovacionismo no mundo todo, outra mais particular, referente ao Brasil – e a outras ex-colônias, como p. ex. a Argentina. Essa segunda crítica é irrelevante para o que tenho a dizer agora, e pode ser deixada de lado. A primeira crítica é a de que, ao supervalorizar as inovações, definidas como invenções rentáveis, o inovacionismo acarreta a desvalorização de áreas do conhecimento desprovidas de potencial gerador de lucros, embora proporcionem benefícios cruciais para a sociedade. Há pelo menos três domínios de pesquisa dessa natureza. O primeiro é das pesquisas básicas, que não satisfazem o requisito de rentabilidade segura e a curto prazo; o segundo é o das pesquisas na chamada “área de humanas”, especialmente as humanidades; e o terceiro é o da ciência do interesse público, que engloba pesquisas voltadas para a solução de problemas sociais cujos benefícios chegam à população sem passar pelo mercado.
Sem entrar por enquanto em mais detalhes, eu diria que essa interpretação e essa crítica implicam, no limite, uma tomada de posição em prol da eliminação do conceito de inovação do discurso e das políticas científicas e tecnológicas. É bom lembrar que, ao longo de séculos, a ciência e a tecnologia desenvolveram-se sem que o conceito de inovação tivesse a centralidade e a importância que tem hoje. O objetivo da pesquisa era concebido não em termos de inovações, mas de avanços no conhecimento, descobertas, aplicações, invenções, etc. Aparentemente, o conceito de inovação não fazia falta. É bom lembrar então, para ter claro o significado do inovacionismo, que foi apenas na década de 70 do século passado – não por coincidência, época em que o ideário neoliberal começa a se fortalecer – que a palavra entrou em voga, e só depois conquistou o papel central que desempenha atualmente. É bom lembrar também que nem tudo o que é novo é bom, e nem tudo o que é velho é ruim.
Por outro lado, mesmo para quem subscreve uma visão crítica do inovacionismo, a tese de que o conceito de inovação deve ser banido do discurso das políticas científicas e tecnológicas pode ser considerada demasiado radical. Ela implicaria, entre outras, mudanças em artigos da Constituição, nos nomes do ministério responsável pela ciência e a tecnologia, de secretarias estaduais, de agências e outros órgãos universitários, do marco legal promulgado em 2016, etc. Por excesso de radicalidade, a tese seria assim ineficaz enquanto estratégia política. É inútil remar contra a corrente, quando esta é avassaladora.
Mas felizmente existe uma alternativa, que incorpora a crítica do inovacionismo, mas não peca por excesso de radicalidade. Ela consiste em preservar a produção de inovações como objetivo da pesquisa, rejeitando porém, enfaticamente, a definição inovacionista de inovação, restrita a invenções rentáveis seguramente e a curto prazo. Em outras palavras, ampliar o âmbito do conceito de inovação, de modo que se aplique a qualquer avanço em qualquer área do conhecimento, incluindo a da ciência básica – não só por seu potencial gerador de inovações (no sentido estrito), ainda que não seguramente e a curto prazo, mas também por seu valor cultural –, bem como a área de humanas e a da ciência do interesse público. É esta a posição adotada, por exemplo, pelo Instituto de Saúde do Estado de São Paulo.
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Com isso passo à segunda parte desta contribuição que, como dito no início, diz respeito ao status, ao vigor do ideário inovacionista nos dias de hoje. A tese que vou defender é a de que existem atualmente dois movimentos, dois processos de mudança na situação que apontam em direções opostas, e são impulsionados por diferentes setores da sociedade. O primeiro consiste numa exacerbação do ideário inovacionista, e das correspondentes políticas científicas e tecnológicas; o segundo representa um recuo, envolve implicitamente uma autocrítica do inovacionismo.
Para explicar o primeiro movimento, vou me valer de uma ideia que Pierre Dardot & Christian Laval expõem no prefácio da tradução para o inglês de Ce cauchemar que n’en finit pas: comment le néoliberalisme défait la démocracie [2]. A tese é a de que o neoliberalismo entrou numa nova fase, passou por uma metamorfose, transformando-se no que os autores propõem denominar novo neoliberalismo. O nome pode ser outro; o importante é o reconhecimento da transformação, da existência de um ponto de inflexão. Para designar a forma anterior, eles usam o termo neoliberalismo clássico. A primeira pergunta é cronológica: em que momento se dá a mudança? Embora tenha havido alguns episódios históricos precursores, um marco muito adequado são dois eventos ocorridos em 2016: o brexit no Reino Unido e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. É curioso que o que normalmente se adota como marco do início da ascensão do neoliberalismo também são dois eventos – o primeiro ocorrido no Reino Unido; o segundo nos Estados Unidos – a saber, a chegada ao poder da primeira-ministra Margaret Thatcher em 1979, e do presidente Ronald Reagan em 1980.
Os países em que o novo neoliberalismo se manifesta com mais intensidade, graças à ascensão de governos de direita ou extrema-direita, são os Estados Unidos, a Hungria, Polônia, Turquia e – de forma particularmente drástica, o Brasil no governo Bolsonaro.
A segunda pergunta é: quais são as características do novo neoliberalismo? Em que difere do neoliberalismo clássico? Como resposta a essa pergunta, Dardot & Laval desenvolvem uma sofisticada análise, apontando as diferenças e estudando as forças sociais responsáveis por seu aparecimento. Seria difícil tentar resumir aqui essa análise. Para o que tenho a dizer, é suficiente uma ideia geral – a de que em vários aspectos o novo neoliberalismo é uma radicalização do neoliberalismo, da mesma forma como o neoliberalismo é uma radicalização do capitalismo.
Abordando agora nosso tema, o inovacionismo, vou argumentar que, em relação às políticas científicas e universitárias, os pronunciamentos e medidas tomadas pelo governo Bolsonaro representam uma radicalização dos princípios do inovacionismo, podendo assim ser vistos como faceta do novo neoliberalismo.
Como já mencionei, uma característica do inovacionismo é a desvalorização dos domínios de pesquisa desprovidos de potencial gerador de inovações: o da pesquisa básica, o da área de humanas, e o da ciência do interesse público. Essa desvalorização, com seu impacto na distribuição de verbas públicas, se dava entretanto de forma relativamente não declarada, não explícita. É nítido o contraste com a atuação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do presidente, que configuram uma guerra declarada a esses domínios. À ciência básica, por conta de um instrumentalismo grosseiro, que propõe para a Universidade o modelo do rapaz que vai do campo à cidade para estudar veterinária, voltando depois para trabalhar na empresa rural da família. Guerra à área de humanas, envolvendo críticas disparatadas, dirigidas especialmente à Filosofia e à Sociologia. E guerra à ciência do interesse público, pela ofensiva contra ONGs, muitas das quais têm a pesquisa entre suas atividades, e contra órgãos públicos de pesquisa, como o INPE.
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Retomando o raciocínio, a tese em pauta é a de que na presente conjuntura, com referência às políticas científicas, existem dois movimentos, cada um apontando numa direção. O primeiro é esse, que consiste na radicalização do inovacionismo – podendo por isso ser entendido como uma faceta do novo neoliberalismo – e é impulsionado pelo governo. A base de sustentação do outro não é o governo, mas sim o establishment científico, ou seja, a camada da comunidade científica envolvida diretamente com a implementação das políticas.
Esse setor ultimamente vem dando mostras de recuo, de questionamento das diretrizes inovacionistas – talvez em parte enquanto reação ao movimento radicalizador. Como evidência para essa afirmação, vou expor sucintamente os sinais que emergem de um episódio, o 8º Encontro do Global Research Council, realizado em São Paulo em princípios de maio deste ano. O GRC é essencialmente um fórum de debates e troca de experiências entre dirigentes de agências de fomento à pesquisa no mundo todo. Foi criado em 2012, por iniciativa da National Science Foundation, dos Estados Unidos, e desde então realiza encontros anuais, uma vez em cada cidade, divulgando ao final de cada um uma Declaração de Princípios (Statement of Principles). O 8º Encontro contou com a participação de 50 dirigentes de agências de fomento, de 45 países.
A Declaração de Princípios deste ano, logo nos dois primeiros parágrafos introduz um tema relevante para nossos propósitos. Acompanhando iniciativas já em curso em alguns países, o documento propõe uma visão da pesquisa científica enquanto responsável por vários tipos de impacto, entre os quais o científico, o social, e o econômico, referentes respectivamente ao avanço do conhecimento, ao desenvolvimento das sociedades, e à inovação. É evidente nessa visão a diferença relativa ao inovacionismo que, ao atribuir à produção de inovações o papel de objetivo primordial da pesquisa, em termos de impacto limita-se ao econômico – mais precisamente ao setor da economia inserido no mercado.
O segundo aspecto do recuo diz respeito à ciência básica. Contrariando a diretriz inovacionista, a Declaração defende enfaticamente a ciência básica – embora tendo o cuidado de preservar o lugar da ciência aplicada. Nos termos da Declaração:
“Os membros do GRC reafirmam enfaticamente o valor tanto do investimento em pesquisa que avança e transcende as fronteiras do conhecimento quanto do apoio à pesquisa capaz de proporcionar impacto social e econômico mais imediato e mensurável. Portanto, embora necessitem considerar as expectativas de seus financiadores, eles têm a responsabilidade de assegurar uma abordagem equilibrada do apoio às diferentes formas de pesquisa no interior dos sistemas nacionais.”
Outro setor da pesquisa prejudicado pelo inovacionismo por carecer de potencial gerador de inovações, como vimos, é o da área de humanas, especialmente as humanidades. Embora não sejam explicitamente mencionadas na Declaração, as humanidades foram defendidas em pronunciamentos de um dos mais influentes participantes do 8º Encontro, Peter Strohschneider, presidente da principal agência de fomento da Alemanha. Em suas palavras:
“Compartilho da ideia de que as sociedades seriam simplesmente incapazes de se desenvolver e prosperar sem as humanidades. Sem elas, estaríamos condenados a uma visão ingênua e limitada acerca das sociedades e suas estruturas, dinâmicas e desafios.” [3]
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Até este ponto, focalizamos o impacto no novo neoliberalismo sobre as políticas inovacionistas. Para concluir, abrindo o foco, vamos tratar conjuntamente, do mesmo ponto de vista, das políticas científicas, tecnológicas e universitárias – ou, adotando o termo introduzido por Renato Dagnino, as políticas cognitivas, que incluem os três setores [4]. Nesse terreno, alguns aspectos constituem radicalizações das políticas do neoliberalismo clássico. Um deles são os contingenciamentos e cortes de verbas para as universidades e institutos federais, bem como para as agências de fomento (CNPq, Capes e Finep), que têm por trás o princípio do Estado mínimo. A radicalização aí consiste, de um lado, na desmesurada dimensão dos cortes e contingenciamentos, justificada como parte da política de “austeridade”, por sua vez postulada como a única capaz de superar a crise fiscal; significa, de outro lado, a mobilização mais intensa da crise como modo de governo, na expressão de Dardot & Laval.
É do mesmo tipo o projeto Future-se, uma tentativa de impulsionar o movimento de mercantilização, especialmente no que se refere ao processo de empresariamento, que transforma as universidades públicas simulacros de empresa. O processo já vinha ocorrendo antes; o objetivo do projeto é levá-lo adiante, por meio do modelo em que gestão das universidades fica mas mãos de Organizações Sociais [5].
Outros aspectos da política cognitiva do governo Bolsonaro incluem elementos relativamente novos, e não apenas radicalizações. Um deles é o ataque visando a desqualificação da universidade pública, ora como palco de “balbúrdia” e de doutrinação de esquerda, ora como torre de marfim, indiferente aos problemas do povo, além de socialmente injusta, ou ainda, mais recentemente, como plantadora de maconha e fabricante de drogas sintéticas. O obscurantismo e anti-intelectualismo que motivam tal ataque é em certa medida uma novidade, ausente no período do neoliberalismo clássico.
Outra faceta da mesma natureza é a que diz respeito à área de humanas. No inovacionismo neoliberal clássico, a desvalorização da área de humanas, decorrente de sua deficiência enquanto geradora de inovações, colocava-a em desvantagem na distribuição de verbas, em relação às ciências duras. Porém isso se dava de uma maneira difusa. Agora, no novo neoliberalismo, esse impacto vem associado a um ataque frontal, dirigido particularmente à filosofia e à sociologia, denunciadas como as principais responsáveis pela suposta doutrinação de esquerda, associada à teoria conspiratória do marxismo cultural – a qual tem uma história anterior, mas só adquire proeminência no contexto do novo neoliberalismo. O objetivo último, está claro, é sufocar a dimensão crítica do papel da Universidade.
E, para concluir, de uma perspectiva mais geral, vamos considerar uma faceta do novo neoliberalismo que, curiosamente, Dardot & Laval não mencionam no prefácio em pauta. Trata-se do espírito da pós-verdade, definida como a postura de não levar em conta a veracidade, a concordância com as evidências no processo de adoção de crenças. Ela vem acompanhada da subversão do conceito de fato, admitindo a existência de “fatos alternativos”, e fomenta a propagação de fake news e teorias da conspiração [6].
No campo da ciência, a pós-verdade estimula a rejeição de conhecimentos científicos bem estabelecidos. Um exemplo folclórico é o do terraplanismo. Há porém casos muitíssimo mais importantes, na forma das várias modalidades de negacionismo: o do aquecimento global, o dos efeitos deletérios dos agrotóxicos para a saúde humana e o meio ambiente, etc. A negação aí evidentemente não fica restrita ao plano do discurso: tem efeitos práticos, levando ao estrangulamento de órgãos de pesquisa no campo da ciência do interesse público, com frequência envolvendo a demissão ou a destituição de cargos de pesquisadores, como no caso emblemático de Ricardo Galvão, agora ex-diretor do INPE.
Notas:
[1] O presente texto — título original: é uma versão adaptada e ampliada de minha contribuição para a mesa “Inovação: conceitos e abordagens”, parte do “Seminário de Inovação Social e Pesquisa de Implementação”, promovido pelo Instituto de Saúde (do Estado de São Paulo), em 18 de novembro de 2019.
[2] O título em inglês é Never ending nightmare: the neoliberal assault on democracy (Londres e Nova York: Verso, 2019). Uma tradução do prefácio, com o título ‘Dardot e Laval: a “nova” fase do neoliberalismo’, foi publicada aqui em Outras Palavras em 29/7/2019.
[3] R. de Oliveira Andrade. Liberdade para buscar o desconhecido. Pesquisa Fapesp 20(280), p. 32-35, 2019.
[4] R. Dagnino, Tecnociência solidária: um manual estratégico (Marília: Lutas Anticapital, 2019, p. 109 ss.)
[5] Cf., de minha autoria, Empresariamento da Universidade: consequências nefastas do produtivismo. Revista Adusp, nº 63: 59-72, novembro de 2019.
[6] Cf. de minha autoria, Pós-verdade: filha do relativismo científico? (Outras Palavras, 15/01/2018), e Andam dizendo por aí que a ciência não é neutra (Outras Palavras, 6/5/2019).
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Seriam os neoliberais terraplanistas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU