Não deveria, mas é comum, com a troca de governos, haver uma série de realinhamentos de prioridades e rupturas. Entretanto, no Governo Bolsonaro, essas rupturas e mudanças de rotas têm sido radicais. O campo da Educação é mais um que vem sendo atingido em cheio por esses reveses. Além dos ataques e críticas às universidades públicas, o governo lança agora um programa: o Future-se, que, para muitos especialistas, fere a liberdade e autonomia e compromete o financiamento das instituições públicas. O ex-ministro da Educação, professor Renato Janine Ribeiro, é um dos que teme essas mudanças. “Essa proposta revela um desconhecimento da realidade universitária”, destaca, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. “Fala-se muito, é um discurso mais ou menos automático de quem não conhece a universidade, de que a universidade não quer cooperar. Mas não é essa a realidade. Já existe uma série de mecanismos que podem ser bem utilizados”, acrescenta.
Segundo o professor, o desconhecimento da realidade das instituições se revela por duas formas. Na primeira, por essa insistência da necessidade de cooperação com o setor privado. O Future-se aponta uma outra fórmula, desconsiderando as parcerias que já ocorrem, em outros moldes, dentro das universidades. Como exemplo, cita as bolsas de estudos via CNPQ e leis e regulamentações, que colocam estudantes e pesquisadores em conexão com a realidade do mercado. “Já existem essas cooperações. É um problema delicado, mas nem sempre as empresas querem utilizar esse recurso”, aponta. E completa: “Às vezes, as empresas preferem já comprar a tecnologia pronta, vinda de fora. E, com isso, fica bem complicado para o país, pois se tem uma tecnologia que já foi testada em outros lugares, é boa, mas que nem sempre é a melhor para o Brasil”.
Além disso, descolar o financiamento das universidades dos orçamentos estatais e associar a fundos de investimentos gera instabilidade. Para Renato, com instabilidade não se pode assegurar o desenvolvimento de ensino e pesquisa nas universidades. “Educação em qualquer nível, seja na educação das crianças, que é um direito humano, seja em nível de pós-graduação, que é algo extremamente importante para o desenvolvimento econômico e social do país, precisa ter uma estabilidade”, reforça.
Por fim, ainda destaca: “esse governo se elege sem ter um projeto educacional, a não ser o Escola sem Partido, um projeto de certa forma repressivo. Temos um governo que anunciou que a prioridade seria a Educação Básica, e para isso iria tirar dinheiro do Ensino Superior, mas que não tem proposta para as principais pautas da Educação Básica”. Para Renato, o emprego dessas lógicas que inspiram o Future-se impacta a Educação, o Ensino Superior, em especial, como um todo. “Se o governo deixar de financiar a pesquisa e a boa formação do aluno, haverá um sofrimento geral no sistema de ensino. Todo o sistema superior vai ser prejudicado, porque passamos de três milhões de alunos, no tempo do Governo Fernando Henrique Cardoso, para oito milhões de alunos nos últimos anos. Esse aumento muito grande exige um cuidado constante das garantias para que os cursos sejam realmente bons”, analisa.
Janine Ribeiro (Foto: USP)
Renato Janine Ribeiro é professor de Filosofia, escritor e colunista. Foi ministro da Educação, entre abril e setembro de 2015. Atua como professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP. Entre os seus livros recentemente publicados, destacamos A Pátria Educadora em colapso - reflexões de um ex-ministro sobre a derrocada de Dilma Rousseff e o futuro da educação no Brasil (São Paulo: Três Estrelas, 2018), A boa política - Ensaios sobre a democracia na era da Internet (São Paulo: Companhia das Letras, 2017) e A imprensa entre Antígona e Maquiavel: a ética jornalística na vida real das redações (São Paulo: ESPM, 2015).
IHU On-Line — Qual sua avaliação sobre o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras - Future-se, recém-lançado pelo Ministério da Educação - MEC?
Renato Janine Ribeiro — Esse programa é preocupante, primeiro, porque sabemos poucos detalhes sobre ele; segundo, porque cria formas de regulação como, por exemplo, um comitê gestor. Não sabemos como vai ser composto esse comitê, se será uma autoridade sobre as universidades federais que poderá inibir a autonomia delas. Assim como este, há vários pontos sobre os quais não sabemos o que vai ser feito.
O terceiro ponto — e talvez o principal —, é que na hora em que o financiamento da educação passa a depender de aplicações de fundos, que são de natureza especulativa, fica complicado dar a estabilidade necessária para o financiamento da educação. Educação em qualquer nível, seja na educação das crianças, que é um direito humano, seja em nível de pós-graduação, que é algo extremamente importante para o desenvolvimento econômico e social do país, precisa ter uma estabilidade. O problema desse projeto é que ele deixa uma instabilidade muito grande no sistema educacional. Esse é o ponto que assinalo como o mais preocupante no projeto do governo.
IHU On-Line — O senhor quer destacar que um dos riscos de vincular o financiamento da educação aos fundos é que se os fundos não vão bem, não tem rendimento, não há recursos para a educação?
Renato Janine Ribeiro — Sim. Isto é, há certos tipos de atuação em que é preciso ter uma estabilidade, por exemplo, quando lidamos com crianças, idosos, educação e saúde. Esses quatro setores necessitam ter uma estabilidade muito grande.
Não podemos, de um ano para o outro, fechar um, dois ou três anos do curso de graduação porque não houve financiamento. É preciso ter uma garantia de financiamento que estabilize tudo isso. Necessitamos ter certeza de que algo que vai começar terá continuidade. E isso vale para todas as ações de governo.
IHU On-Line — É nesse financiamento empregado a partir de fundos que se manifesta a lógica do mercado na educação? E que outros riscos podem emergir dessa perspectiva?
Renato Janine Ribeiro — Podemos ter muita cooperação de mercado na área da educação, não tem a menor dúvida. Hoje, cada vez mais se considera que a educação é um dos principais insumos para melhorar a produtividade do trabalhador, a competitividade da economia e a remuneração das pessoas. Então, educação passa a ser algo que é muito positivo do ponto de vista econômico, até por isso ela tem que ser resguardada de intempéries. Assim, não podemos, de um ano para o outro, tirar a criança da creche ou cortar a sequência de uma graduação ou de uma pós-graduação.
Aí fica o receio que muita gente tem, a partir da proposta de que a questão do financiamento iria depender só das universidades, da capacidade delas de tirar recursos mediante seu vínculo com o setor privado e pagando um preço alto caso ocorram equívocos. Se isso der errado, como vamos fazer? Se não se conseguir o rendimento esperado, se os fundos caírem, vão demitir professores? Vão dar calote nas contas de luz e água? Vão parar de comprar reagentes? Vão deixar de assinar os periódicos internacionais que são fundamentais às pesquisas mais desenvolvidas? Isso tudo é um risco muito grande.
Temos que ter, dentro do governo, certas áreas mais preservadas do que outras porque elas têm um papel fundamental para podermos ter todo o resto. Se não tivermos uma boa formação de mão de obra, teremos muita dificuldade em desenvolver a economia. Assistindo a um programa de televisão, me chamou atenção a explicação de que, para muitos empregos, atualmente, se requer o Ensino Médio. Então, se não tiver um bom Ensino Médio, se limita a capacidade da pessoa de subir na vida.
Não quer dizer que a universidade deva apenas entregar a conta para o governo, que a universidade seja irresponsável. Ela tem que ser avaliada e temos que saber se está fazendo bem seu trabalho. E isso tanto as universidades públicas quanto as privadas. A universidade privada tem que ser avaliada, porque os alunos pagam – eventualmente até entram bolsas do setor público, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes na pós-graduação ou o Programa Universidade para Todos - ProUni na graduação – e também para sabermos se estão fazendo um bom trabalho. E as universidades públicas têm que ser avaliadas também para ver se estão usando bem o dinheiro da sociedade.
Uma coisa não exclui a outra, ou seja, não se trata de dizer que as universidades não devam ser responsáveis pelos seus gastos, mas elas têm que demonstrar que são capazes de ter um bom desempenho. E como vemos isso? Pelos resultados que elas apontam. O que uma universidade tem que entregar? Pessoas bem formadas nos cursos de graduação e, sobretudo nas melhores universidades, pesquisa de qualidade. Isso é avaliado há muito tempo, pois a Capes e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq fazem esse trabalho.
Com isso, entramos em outro problema: o projeto todo, o Future-se, está muito ligado à ideia de uma universidade que seja vinculada com o setor empresarial e não prevê o que ocorrerá com áreas que não sejam de tanto interesse empresarial. Ora, nesse ponto há vários problemas: veja o caso da Sociologia, por exemplo, tão criticada pelo presidente [Jair] Bolsonaro. A Sociologia é a ciência que estuda a sociedade. Como alguém quer governar um país, um estado, sem ter elementos científicos? Assim como precisamos ter elementos científicos para, por exemplo, melhorar a produção agrícola, precisamos de elementos científicos para saber como se governa um país, e a Sociologia permite que se tenham esses elementos.
A Sociologia se ocupa muito da desigualdade social. Com isso, ela dá contribuições importantes de como se pode aumentar as oportunidades das pessoas, como se pode tornar mais justa a competição profissional e como se pode aproveitar talentos em uma sociedade desigual em que eles são desperdiçados. A sociedade brasileira, com a dimensão da miséria e da pobreza que tem, é uma sociedade que desperdiça muitos talentos que nem descobrimos que existem, é uma quantidade grande de crianças pobres e miseráveis ou de adultos pobres e miseráveis que poderiam ser profissionais bons e rentáveis em várias áreas, só que não tiveram a oportunidade. Quem descobre, quem faz o estudo científico de como a pobreza atrasa um país? É a Sociologia, eventualmente em cooperação com a Economia.
Se hoje olharmos, por exemplo, a área de educação, veremos que há um bom número de economistas que estão debruçados sobre essa área, estão interessados em ver como a educação melhora a economia – Ricardo Paes de Barros talvez seja o mais conhecido deles no Brasil. Agora, se olharmos as publicações internacionais de fonte liberal, como a revista The Economist ou o Financial Times e mesmo os relatórios do Banco Mundial, veremos que todos – que não têm nada de esquerdistas, muito ao contrário – vão dar uma importância muito grande à educação. Essa importância faz com ela precise ser valorizada.
Quando estive no Ministério da Educação, tive três encontros com o ministro da Educação da Coreia do Sul, que era também vice-primeiro ministro, o que mostra a importância que a Coreia do Sul dá à educação. Ele me contou que quando tiveram uma crise séria, alguns anos atrás, eles cortaram verbas em muitas áreas, mas a área mais preservada foi a da educação.
Educação é futuro, mas não de uma forma muito elementar, quando se investe só nas áreas que aumentam a produção. Se for feito um bom trabalho na educação, todas as áreas serão impactadas positivamente.
IHU On-Line — Quais os riscos do desenvolvimento apenas de pesquisas que visem atender ao mercado, como o senhor referiu anteriormente?
Renato Janine Ribeiro — Lembro de um amigo, um empresário, que infelizmente teve uma morte trágica, Nei de Bittencourt Araújo, que nos anos 1990 costumava dar um exemplo: a cola usada no calçado brasileiro era uma que não tinha sido testada para as condições do couro do gado brasileiro. Esse gado tem suas particularidades, em razão de solo, de clima e cruzamento de raças de outras nações. Então, essa cola era boa, mas não era 100% para a realidade da produção brasileira. E do que precisávamos? De pesquisa científica para ter uma cola melhor e que reduzisse o desperdício, que era da ordem de 5% desse produto. Esse é um exemplo importante, porque precisamos de uma pesquisa que ajuste as questões aos interesses e realidades brasileiros.
Outro exemplo, na área das Ciências Agrárias: o Brasil tem pouca produção de trigo e muita produção de soja por razões climáticas. Se olharmos as pesquisas internacionais, elas são mais voltadas para o trigo. Logo, não precisamos tanto das pesquisas sobre trigo, mas de pesquisas sobre soja. E quem faz essas pesquisas? Nós, somos nós os bons pesquisadores de soja.
Quando se realiza pesquisa, em qualquer área ou ramo, sempre há riscos. Às vezes, quanto maior é o risco, mais profunda e promissora é a pesquisa. Mas é grande o risco de ela dar errado, pois está se entrando em caminhos não trilhados. Então, para fazer uma pesquisa de boa qualidade, é preciso entender que há chances tanto de ela dar certo como de dar errado. Mas se ela prosperar, pode fazer o país crescer, ficar melhor economicamente etc. Esse é um dos pontos cruciais da pesquisa que precisa ser compreendido.
IHU On-Line – De que forma o programa Future-se pode impactar a autonomia da universidade pública, tanto no sentido do ensino como na pesquisa?
Renato Janine Ribeiro — O estado de São Paulo adotou um bom método, já faz 30 anos, que foi destinar às universidades estaduais um percentual levemente abaixo de 10% da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, que é um imposto que reflete muito bem a inflação e, portanto, dá uma certa estabilidade financeira. E veja que as três universidades estaduais estão entre as melhores do Brasil: Universidade de São Paulo - USP, Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e Universidade Estadual Paulista - Unesp. Quando se emprega esse tipo de ação numa universidade que tem uma cultura de qualidade forte, funciona bem, pois a universidade não tem que ir ao MEC quando precisa consertar algo ou construir um prédio novo, por exemplo.
É o contrário do que ocorre no setor federal. E isso não é de agora. Por exemplo: pegou fogo num prédio da Universidade Federal da Bahia, há mais de dez anos, e reconstruir o prédio dependia de uma alocação de verbas do MEC. Em São Paulo, o reitor teria de ver como ele tiraria recurso para essa obra do orçamento dele. Poderia até eventualmente pedir um aporte adicional, mas ele teria que gerir isso.
Entretanto, isso funciona muito bem quando está associado com uma cultura da avaliação, quando se sabe que a universidade está cumprindo bem sua tríplice missão. Primeiro, formação de aluno; segundo, nas melhores universidades, a pesquisa; e terceiro, a extensão, a transmissão de conhecimento à sociedade. É nesse terceiro aspecto que se pode incluir toda a cooperação com empresas. Na medida em que essa extensão vai se desenvolvendo bem, vai havendo maior possibilidade de cooperação.
E já existe essa cooperação com empresas. Desde os anos 1980, o CNPQ tem as bolsas RHAE [Programa de Formação de Recursos Humanos em Áreas Estratégicas]. Esse programa foi criado, em 1987, para a inserção de mestres e doutores na iniciativa privada, essencialmente em empresas de micro, médio e pequeno porte. Ou seja, já existe um sistema que, há tempos, prestigia essa cooperação entre a iniciativa privada e as universidades. No governo Lula, houve a chamada Lei do Bem, nº. 11.196/05, que já permitia que os pesquisadores tivessem instrumentos para cooperar com o setor privado. A Lei é do Ministério de Ciência e Tecnologia, mas afeta também o MEC e outras áreas.
Trago isso tudo para demonstrar que já existem essas cooperações. É um problema delicado, mas nem sempre as empresas querem utilizar esse recurso. Às vezes, as empresas preferem já comprar a tecnologia pronta, vinda de fora. E, com isso, fica bem complicado para o país, pois se tem uma tecnologia que já foi testada em outros lugares, é boa, mas que nem sempre é a melhor para o Brasil, o que, às vezes, pode trazer algum problema.
Fala-se muito, é um discurso mais ou menos automático de quem não conhece a universidade, de que a universidade não quer cooperar. Mas não é essa a realidade. Já existe uma série de mecanismos que podem ser bem utilizados.
IHU On-Line – O programa é centrado em três eixos: governança, gestão e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização. Mas, até pelo que o senhor nos trouxe até agora, isso já existe nas universidades federais. Afinal, o que o Future-se traz de novidade nesses aspectos?
Renato Janine Ribeiro — A proposta traz de novidade o fato de que, aparentemente, pelo que foi dito até agora, desresponsabiliza o governo pelos recursos da universidade. Eu acho que esse é o ponto preocupante. Como fazer para lidar com uma desresponsabilização dessa ordem? Isso é muito complicado.
IHU On-Line – Mas, nesses três aspectos, nos três eixos, não há nada de novo?
Renato Janine Ribeiro — Sim, e essas perspectivas que já estão presentes, sempre podem ser ampliadas. Se a intenção do governo é ampliar, tudo bem. Agora, o que não pode fazer é ignorar tudo que foi feito, todo o conhecimento já existente, desrespeitar as pessoas que trabalharam e trabalham nisso e também propor uma única saída para toda a complexidade da vida universitária.
Há algo que praticamente não temos no Brasil, mas é presente na Inglaterra e na França: os principais museus têm área de pesquisa sobre a Mesopotâmia, sobre os países onde se dão os primórdios da escrita, sobre países como Babilônia, Assíria. No Brasil, há um trabalho, que até deveria ter mais envergadura, que é o de conhecer as línguas indígenas. São coisas mais recentes, mas muito importantes, porque muitas dessas línguas estão em extinção, outras já se extinguiram. E isso é importante porque é conhecimento sobre o ser humano. Não temos apenas a biodiversidade amazônica, temos a “humanodiversidade”, por assim dizer.
Algumas dessas áreas têm um processo muito demorado até que haja um impacto, um retorno econômico. Mesmo na área científica isso pode ocorrer. Por exemplo: pegando a taxonomia, que designa a classificação das espécies, pode-se descobrir uma nova espécie de uma planta, mas se demora muito tempo para trabalhar essa planta, identificá-la, verificar se é uma espécie nova ou não. É um processo muito lento e isso tem um custo, e nós, que temos essa biodiversidade incrível na Amazônia, precisamos constantemente identificar novos seres vivos. Como se faz tudo isso? Dificilmente uma área empresarial vai querer financiar uma pesquisa desse tipo, é uma pesquisa típica de governo. Mas que pode, depois, ter efeitos ótimos para a economia.
IHU On-Line – Qual deve ser o impacto do Future-se nas universidades privadas, especialmente as privadas com fins públicos?
Renato Janine Ribeiro — É interessante fazer essa distinção, pois nem todas as pessoas conhecem a diferença entre privada e particular. De um lado temos universidades com finalidade lucrativa que, no termo técnico, são as particulares, e, de outro, as universidades privadas sem fins lucrativos, como a própria Unisinos. De modo geral, são as universidades confessionais e as comunitárias. Há muitas universidades comunitárias no sul do país, mas também em São Paulo. O que encontramos nessas universidades que têm espírito público é que elas sempre tiveram um compromisso educativo forte.
Uma das coisas positivas que vejo em várias universidades particulares é que elas foram se preocupando mais com a qualidade de ensino. Isso até pelas medidas adotadas por sucessivos governos, pois começaram a fazer avaliações, a dar vantagens para universidades que têm boa qualidade e, claro, também acompanhar mais de perto universidades e instituições de ensino superior que tem má qualidade.
Agora, o impacto dessas medidas para o setor privado sem fins lucrativos pode ser também delicado, pois se o governo deixar de financiar a pesquisa e a boa formação do aluno, haverá um sofrimento geral no sistema de ensino. Todo o sistema superior vai ser prejudicado, porque passamos de três milhões de alunos, no tempo do Governo Fernando Henrique Cardoso, para oito milhões de alunos nos últimos anos. Esse aumento muito grande exige um cuidado constante das garantias para que os cursos sejam realmente bons. Se já naquela época, muitos cursos ruins eram ministrados, hoje, com oito milhões, a situação exige mais controle. Tanto que, quando eu estava no MEC, havia o projeto de transformar a Secretaria de Regulação do Ensino superior privado em instituto, bem mais forte e numeroso. Isso iria permitir que se analisassem mais rapidamente os pedidos de cursos novos e também uma avaliação mais rápida no que diz respeito à qualidade.
IHU On-Line – Como o Future-se tem repercutido entre quem atua nas universidades federais ou estuda o tema?
Renato Janine Ribeiro — Há muita preocupação, mais ou menos nos termos que procurei desenvolver. E há ainda fatores como a instabilidade de financiamento e uma redução da autonomia das universidades, que passariam a ter cada vez mais seus horizontes ditados a partir de Brasília, ou seja, Brasília demais e Brasil de menos. Essas são algumas das preocupações que as pessoas têm. Inclusive, saiu um decreto de que a nomeação de pró-reitor agora competirá ao governo federal e não mais ao reitor ou reitora. Isso tudo deixa as pessoas preocupadas, pois se um reitor não puder montar a equipe dele, se essa equipe foi escolhida em Brasília, como vai fazer funcionar? Como vai haver harmonia de administração numa universidade em que o pró-reitor não obedece ao reitor?
IHU On-Line – O que a proposta do Future-se revela acerca do entendimento do atual governo sobre o trabalho do professor e do pesquisador universitários?
Renato Janine Ribeiro — Essa proposta revela um desconhecimento da realidade universitária. É normalmente quando ocorrem esses processos de mudanças e rupturas. As pessoas que entram acham que tudo que estava sendo feito é errado e que elas sabem tudo. E não é assim, pois há toda uma construção laboriosa pelo próprio mundo acadêmico ao longo dos anos, muita coisa de positivo foi construída e foram feitas tentativas, às vezes na direção mesma do que está sendo proposto, e que não deram certo. Não por falha da universidade, mas porque outros lados não quiseram as mudanças.
Veja, também, que o presidente da República fez sua campanha eleitoral sem, em nenhum momento, apontar a educação como algo positivo. Ele apresentava a educação como algo preocupante, era crítico com relação a ela e dizia que a educação era responsável, e Paulo Freire em especial, por uma espécie de perda da moralidade no Brasil. Você pode achar o que quiser do PSDB, do PT, dos partidos que disputaram há anos a hegemonia no Brasil, mas todos eles tinham um projeto educacional nas campanhas. E esse governo se elege sem ter um projeto educacional, a não ser o Escola sem Partido, um projeto de certa forma repressivo.
Quer dizer: vamos tirar da escola a capacidade de atuar. Isso aparecia em algumas faixas e cartazes do então candidato, que veio a ser eleito, em dizeres como: família educa, professor ensina. Demonstra assim um grande desconhecimento sobre o papel da educação, pois uma parte é a socialização da pessoa para lidar com o mundo. A família é ótima, tem um papel insubstituível, mas a família ensina você a lidar com as pessoas que estão muito próximas. Ela não ensina a lidar com uma sociedade complexa. E é por isso que a criança sai de casa e vai ter amiguinhos, coleguinhas, professores, isso tudo é um microcosmos da sociedade, a criança está aprendendo a viver em sociedade.
Aliás, esse é o erro do homeschooling, a educação domiciliar. Aparentemente existem cinco mil demandas no Brasil para que isso seja autorizado – há quem diga 20 mil –, mas, de qualquer forma, é muito pouco se comparado a 40 milhões de alunos do Ensino Básico. A ideia de homeschooling poderia até funcionar para ensinar matérias, mas ela não socializa, não faz a pessoa aprender a lidar com quem está fora da família. Além do fato de que é muito difícil uma família ter condição de ensinar tudo que está no Ensino Fundamental II [de 6º a 9º ano], em que já tem uma divisão de matérias bastante grande. E será que uma família vai ser capaz de dar aula, ao mesmo tempo, de Ciências, História, Geografia, Português, Matemática? É muito difícil.
Então, é um governo que assumiu com uma agenda precária sobre educação. Se for para dizer o que é prioridade zero na educação, destaco duas coisas: a primeira é a alfabetização na idade certa. Há um projeto que o Ceará emplacou, no Governo Cid Gomes, em 2007, e que o Brasil tentou, através do MEC, nacionalizar, mas foi muito mais difícil em escala nacional. O que o Ceará introduziu basicamente? Avaliações permanentes do aprendizado de leitura, escrita e operações matemáticas, que é o conjunto que chamamos hoje de alfabetização, e recompensa no ICMS para os municípios que atingirem melhores resultados. Além disso, investe na formação de professores como alfabetizadores, que é algo que os cursos de Pedagogia nem sempre dão, e acompanhamento atento e enfático dos atrasos, para ver onde está atrasando, porque está atrasando e como corrigir isso. Essa é a prioridade absoluta e até agora não tivemos proposta concreta do governo nesse sentido.
A segunda coisa é o Fundeb, que ajuda a remunerar melhor os professores da Educação Básica dos estados mais pobres e, sobretudo, dos municípios. O Fundo vence no ano que vem e não há proposta do governo para ele. Há propostas, no Congresso, de emenda constitucional para reconduzir o Fundeb, mas o governo nem sequer se posicionou a respeito. Temos um governo que anunciou que a prioridade seria a Educação Básica, e para isso iria tirar dinheiro do Ensino Superior, mas que não tem proposta para as principais pautas da Educação Básica.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Renato Janine Ribeiro — O Brasil construiu, desde o Governo Itamar Franco, uma aproximação muito grande entre as pessoas que se ocupam de educação, pessoas que vêm mais da direita e pessoas que vêm mais da esquerda foram convergindo. Sobre o quê? A prioridade absoluta da Educação Básica Pública, a importância dos mecanismos de avaliação para detectar falhas e ver onde ela pode ser melhorada, a melhora na formação do professor, a valorização da carreira e do prestígio do professor, a melhora do material didático. Ou seja, houve uma convergência para além das questões políticas. É importante que essa convergência, que talvez não tenha paralelo em nenhum outro setor da administração pública, seja respeitada. Ela é um trunfo, um patrimônio, que não pode ser destruído.