22 Mai 2020
Filósofo e ensaísta especializado em hipermodernidade, Gilles Lipovetsky, autor de Plaire et toucher. Essai sur la société de séduction (Agradar e tocar. Ensaio sobre a sociedade da sedução, Gallimard, 2017, Prêmio Montyon da Academia Francesa), analisa para La Vie as consequências da Covid-19 na cultura individualista e consumista.
A entrevista é de Marie-Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 18-05-2020. A tradução é de André Langer.
A epidemia de Covid-19 impôs um congelamento de imagem ao nosso mundo, mergulhado há vários anos na velocidade da hipermodernidade, uma oportunidade inédita para fazer um balanço: o que este episódio revela?
Fico impressionado com a falta de preparação dos nossos Estados para enfrentar esse tipo de crise. Vivíamos com a ideia de que o flagelo de uma pandemia era algo que poderia provocar estragos na África ou na Ásia, mas que estávamos protegidos contra ela em nossos países. Eu vejo nisso, em primeiro lugar, uma falência, sem que seja a do nosso governo em particular, porque muitos Estados se encontraram na mesma situação e não deram provas de clarividência, prisioneiros da mesma lógica de curto prazo...
Mais profundamente, o que é colocado em questão é um modelo de gestão no campo da saúde, baseado em critérios empresariais, sustentado na ideia de que é preciso economizar constantemente e no pensamento de que a globalização pode resolver os problemas, como se houvesse uma mão invisível do mercado – o raciocínio que leva, por exemplo, a considerar que, mesmo que não tenhamos máscaras, no caso de um problema, poderíamos comprá-las em outro lugar.
“Governar é prever”, diz o ditado político e, a esse respeito, a pandemia da Covid-19 revela deficiências. Este é praticamente um princípio básico do Estado: ele deve garantir a segurança da população, e não o fez. Nós temos estatísticas, especialistas, um exército de dados... e, ao final, nos falta tudo. Isso revela a irracionalidade de uma administração que se pretende racional.
Existe aqui um grande paradoxo!
Esse é apenas um aspecto entre muitos, mas todos nos lembramos que, na década de 1980, não tivemos problemas para conseguir uma consulta com um oftalmologista. Hoje, leva seis meses. Temos até uma expressão para isso: o “deserto médico francês”. Como tivemos que economizar, formamos menos médicos, mesmo com o envelhecimento da população. É uma contradição absoluta. Tínhamos que ter formado mais profissionais na área da saúde e os reduzimos. Parece que o bom senso não é a coisa melhor compartilhada. O alarme foi disparado e, desta vez, espera-se que de fato provoque uma reação.
Você está entre aqueles que pensam que o mundo pós-pandemia será necessariamente diferente?
Quanto ao futuro, no momento é difícil fazer previsões claras, porque tudo dependerá da crise econômica que bate às nossas portas, cuja extensão ainda não dimensionamos. Penso que surgirão demandas legítimas para levar em conta nossos sistemas produtivos, pelo menos no que diz respeito aos equipamentos de saúde, e podemos esperar que a Europa encontre uma solução, para que não cheguemos a esse ponto dependentes do exterior.
O Estado moderno é um sistema que se constrói e que deve garantir sua autonomia e sua própria segurança, o que não conseguimos fazer. Portanto, teremos que garantir isso da mesma maneira que garantimos nossa segurança militar. Isso implica controle e intervenção adicionais por parte das autoridades públicas; mas o problema é: até onde?
Ninguém pode responder hoje, porque tudo vai depender da escala da crise. Mas é claro que em certas áreas ligadas à saúde, a Europa e os Estados devem recuperar o controle, e não podemos abandonar o jogo apenas ao mercado. Se houvesse máscaras, testes e aparelhos respiratórios, como aconteceu na Coreia ou em Taiwan, não teríamos passado por essa crise. Pagamos terrivelmente caro por esse gerenciamento just-in-time que é o nosso há dez anos.
Como a Europa pode sair desta crise?
A Europa não está indo muito bem, entre o Brexit e a ascensão dos populismos em todos os lugares... A crise mostrou uma falta de solidariedade, mas não integral – houve ações de solidariedade entre os Estados, e não devemos sobrecarregar o barco. Mas será que a crise fortalecerá a Europa ou a descartará? É impossível responder a esse tipo de coisa, porque dependerá muito dos governos. A Europa não é uma entidade abstrata! Entre a Europa de Orban e a Europa de Macron, não é a mesma visão que está presente, por isso é muito difícil falar da Europa como tal.
O certo é que devemos trabalhar para tirar a Europa dessa crise e entender que ela deve assumir o controle para se governar de forma mais autônoma. A crise continuará por muito tempo, principalmente por causa do endividamento, e a ideia de produzir tudo em outros lugares, nos países em desenvolvimento, corre o risco de ser questionada. De resto, é preciso ter muito cuidado antes de bancar o profeta: é uma postura tão fácil quanto perigosa.
Você fala da crise econômica que já começou e cuja extensão ainda ignoramos... É o fim ou a reconfiguração do modelo consumista como o conhecemos?
Nos últimos dois meses, uma parte da população economizou – as pessoas não foram a restaurantes ou ao cinema, interromperam suas atividades de lazer e limitaram seu consumo a necessidades básicas –, constituindo uma economia maior. O que elas farão com essas economias? Guardar esse capital por precaução ou procurar se divertir com um efeito de recuperação? No curto prazo, não sabemos como elas vão reagir, e isso será muito importante para a recuperação da economia.
Mas, na minha opinião, a ideia de que existiria uma crise do consumismo precisa ser relativizada: certamente existem novas aspirações – um consumo verde, menos poluição –, mas isso não se traduz concretamente em atos de consumo. As pessoas estão começando a preferir produtos orgânicos, mas, como são caros, isso não traz grandes mudanças. Elas continuam a pegar o carro e os engarrafamentos persistem. O turismo internacional sofreu um golpe terrível com a crise da Covid-19, mas está em constante expansão. Antes da crise, havia 1,4 bilhão de turistas e há estimativas de que serão 5 ou 6 bilhões em 20 anos.
Em suma, não acredito que, pela reflexão ética, as pessoas limitem suas viagens. A crise acentuará as desigualdades, mas a aspiração pelo consumo continuará. A fortiori porque o consumo cumpre hoje em dia uma função terapêutica: com exceção de uma parte da população – em particular aquela que tem uma prática religiosa –, as pessoas não consomem apenas para ter coisas, mas para mudar o moral e esquecer seus infortúnios, etc. Isso apresenta problemas, eu não discordo. Assim, a ideia de que o modelo consumista está desaparecendo em benefício de uma feliz frugalidade parece-me uma visão muito retórica, praticada por pequenos grupos militantes, sem efeito em escala planetária. Em escala planetária, o que está emergindo é um desejo de consumo e de conforto material.
Mas a crise ecológica pode muito bem nos colocar contra a parede, mais cedo ou mais tarde...
Tudo depende do que se entende por ecologia: uma ecologia radical que se refere ao desconsumo ou então uma outra opção que reconcilie inovação tecnológica e ecologia, permitindo um modo de mobilidade com a redução das emissões de CO2 e, portanto, a busca da modernização e do consumo... Eu penso que é esse caminho, denunciado por ambientalistas radicais como um beco sem saída, que se fortalecerá.
No que me diz respeito, penso que a tecnologia apresenta problemas, mas que também traz sua parcela de soluções, e que o pensamento ecológico não deve levar à desqualificação do desenvolvimento econômico sem o qual não resolveremos os problemas. Considerar que o crescimento seria um veneno parece-me um erro fundamental. Os grandes desafios – sanitários em particular – requerem desenvolvimento. O que devemos buscar é um crescimento responsável que leve em conta os imperativos planetários: habitações que consomem menos, carros e eletrodomésticos recicláveis, há muito a fazer.
Há cinco anos, o Papa Francisco publicou a Laudato Si’, um texto que teve ressonância para além dos círculos católicos. Após a busca do “livre” e do “light”, estamos caminhando para uma busca de profundidade e de sentido?
Penso que os dois caminhos são compatíveis. O materialismo consumista continua nas práticas, mas, ao mesmo tempo, as pessoas consideram que não é suficiente. Nossa época não é aquela do “ou”, mas do “e”. Queremos melhorar nosso conforto, fazer viagens, ter um computador – poucas pessoas renunciam a isso –, mas isso não significa o esgotamento das buscas espirituais ou éticas. Não é verdade que nossa humanidade tenha se tornado egocêntrica ou narcísica a ponto de atropelar todos os valores humanos ou a elevação pessoal, e não há menos espiritualidade hoje do que no passado; simplesmente ela se concretiza de diferentes maneiras.
As pessoas realizam sua busca em um nível mais individualista. A ponta dessa liberdade encontra-se no fenômeno das conversões, que no passado costumavam estar ligadas a episódios de guerras e epidemias e que hoje decorrem de processos estritamente individuais. Observo que quanto mais o materialismo domina objetivamente a organização do mundo, mais as buscas individuais aumentam. A desinstitucionalização não significa desaparecimento. Ao contrário do que um marxismo poderia avançar, as pessoas continuam a acreditar em um princípio superior. O materialismo individualista não significa o naufrágio de todos os valores.
Você está dizendo que o individualismo não rima com egoísmo: é audacioso!
O egoísmo é uma possível inclinação do individualismo. Mas existem outras. A multiplicação das associações e dos voluntários em nossa sociedade contemporânea é prova disso. A ideia de que antes tudo era melhor e de que vivíamos de maneira mais solidária é um mito. Hoje, milhões de pessoas estão lutando pelos outros. Se o consumismo e o individualismo significam o desaparecimento do que é humano no homem, como explicar esses voluntários?
Os fatos levam a retificar a imagem demonizadora do individualismo. E nos regimes em que o indivíduo é apagado em benefício do coletivo por decisão política, o individualismo explode ainda mais no nível pessoal, para um consumismo obsceno! Por outro lado, pensar que o consumismo seria o novo caminho da salvação é um excesso e é claro que não satisfaz inteiramente o ser humano. Os voluntários demonstram que o consumo não pode proporcionar essa felicidade essencial de ser útil aos outros.
Em 1983, você publicou seu famoso ensaio A Era do Vazio. Hoje, em que era entramos?
A era da insegurança ou a era do medo! Esse sentimento de insegurança generalizada pode ser observado em toda parte. No plano privado, a instabilidade familiar, os divórcios, as separações afetam profundamente as pessoas... No plano político e cultural, os fenômenos são uma legião: preocupação ligada à globalização, insegurança relacionada à imigração e ao clima, insegurança alimentar – a alimentação tornou-se ansiogênica –, insegurança ligada à situação econômica, ao desemprego, aos filhos – diz-se que nossos filhos viverão pior do que nós! Estamos em um estado de insegurança generalizada, do qual o populismo é uma expressão. É a grande marca da época.
O medo paralisa. Como podemos reagir?
Precisamos investir na educação. A razão não resolve todos os problemas, mas penso que o melhor investimento que podemos fazer é nessa área, porque é a mobilização da inteligência de homens e mulheres nesta terra que trará soluções coletivas para a sociedade em escala planetária. Precisamos munir as pessoas. Isso pode passar pela fé, mas é difícil ordenar a fé. A educação, a pesquisa científica, por outro lado, dependem de decisões políticas, e penso que o político deve investir nesta parte.
Não compartilho a ideia niilista de que não temos mais valores. Não é a falta de valores que nos caracteriza, mas a de ferramentas que nos permitem implementá-los. Sem educação, como criar empregos, futuro, como fazer retroagir as “fake news”? É aumentando o nível da população que vamos parar com esse aumento. A educação é um campo gigantesco.
Que não é consenso! Basta observar os debates sobre o papel da escola...
Além da ciência, a criação artística é um componente importante de expressão individual. Os americanos falam de revolução dos amadores. Esse desejo de expressão é a prova de que o consumismo não é suficiente e que as próprias pessoas querem fazer as coisas, e a escola deve seguir nessa direção: não se trata apenas de formar para um emprego, mas desenvolver o ser humano, dar-lhe a capacidade de ele mesmo fazer as coisas. Fazer as coisas que gosta de fazer! O amor não é nada...
No mundo de hoje, fazemos muitas coisas sob a pressão da lucratividade, e o trabalho nem sempre é muito gratificante. Essa questão de encontrar lugares de realização ultrapassa as classes sociais e a questão dos meios financeiros: pessoas muito simples investem em corais, por exemplo. Acredito que subestimamos essa necessidade, porque o hiperconsumo superestima o gesto da compra: certamente, você “compra” um momento de satisfação, mas entre as coisas que o consumismo nunca pode lhe dar, está o sentimento de ser útil para os outros e o prazer de ser criativo.
A escola também deve nos dar os meios para cultivar nossa riqueza interior. Caso contrário, nos restará o shopping e a TV e nosso horizonte será definido pela possibilidade de comprar um carro novo. Se ninguém lhe dá as ferramentas, por que você iria ao museu ou tocaria um instrumento musical? Não é o individualismo e o capitalismo que são responsáveis por todos os nossos males: é a sociedade que não faz jus à ambição educacional que deveria ser a sua.
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“Entramos na era da insegurança ou na era do medo”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU