18 Abril 2020
Quando o mundo sair da crise devido à pandemia, terá mudado, sim, mas não tanto. É o que acredita o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, que se atreve a contradizer aqueles que entoam o recorrente “nada será igual”: “Se algo esse período fizer, será reforçar a desconfiança dos cidadãos, e é compreensível”.
Refugiado em sua casa, em Grenoble [França], Lipovetsky (Paris, 1944) repassa nesta entrevista as palavras com as quais atualmente analisa a situação: prudência, desconfiança, desigualdade... Suas opiniões não são tão categóricas como há 40 anos, quando afirmava em sua obra que havíamos entrado em “A era do vazio”.
“Acredito que as coisas mudarão, mas não brutalmente motivadas por um único acontecimento, mesmo que pareça dramático em nosso presente. A não ser que a crise se eternize”, reflete.
A entrevista é de María Valderrama, publicada por Infobae, 16-04-2020. A tradução é do Cepat.
E se, como apontam alguns especialistas, o confinamento se prolongar de maneira intermitente até 2021?
Quando estamos diante de cenários catastróficos, é fácil prever e dizer frases espetaculares. Isso será suficiente para provocar uma mudança das consciências? Não acredito. Isso significaria que a história avança a golpe de milagres da consciência.
Não acredito nos efeitos concretos, mas, sim, nas mudanças reais e efetivas que podemos fazer, por exemplo, com as novas tecnologias. A conscientização das pessoas é forte... mas com a condição de que as mudanças não afetem a elas mesmas.
Isso acontece também com a crise climática. Todo mundo está de acordo em baixar a pressão sobre a natureza, mas isso não basta. Continuamos no velho caminho idealista de que basta julgar bem para agir bem, como dizia Descartes. Acredito que não seja assim. É necessário algo a mais que pensar bem para agir bem.
A crise da saúde também evidenciou as desigualdades sociais.
Devemos relativizar. A exigência por justiça social não vem da crise de saúde. Na Europa, esse fenômeno é recorrente há séculos e as revoluções não acabaram com a desigualdade. Assistimos provavelmente aos danos dessas desigualdades excessivas e pode ser que, aqui, acabe o ciclo que começou em 1980.
O capitalismo criou, nos últimos 40 anos, populações cada vez mais isoladas do desenvolvimento, não ultrapobres, mas que se sentem marginalizadas. É uma das razões do sucesso do populismo. Os serviços públicos recuam, a presença do Estado é menor.
Essa crise devolverá a importância do Estado, dos serviços públicos como a saúde?
Acredito que sim. O exemplo da saúde é interessante. O fato de não termos máscaras, sistemas para fazer testes, aparelhos de respiração, é o resultado de uma política que consiste em dizer “isso custa muito caro” e, “na Europa, não teremos grandes epidemias”. Houve erros de avaliação.
A crise é também o sinal de que será necessário modelar a globalização e devolver um papel para a Europa, por exemplo, de garantir nossa segurança sanitária. Não é normal que não tenhamos meios para fazer máscaras, nem um certo número de dispositivos de proteção.
De onde vêm esses erros?
Não vêm do capitalismo, mas da política. Temos em certos países, como na França, regiões onde não há médicos. Mesmo nas grandes cidades, você precisa esperar seis meses para ter uma consulta, se tiver problemas de audição ou de visão, porque não há especialistas. Enquanto isso, se reduzem o número de estudantes nas universidades. É inconcebível.
Os erros não recaem sobre um único governo, mas sobre uma sucessão de decisões de diferentes Estados. Durante 40 anos, tivemos um movimento que privilegiou o mercado em detrimento do Estado, (sendo assim) não é inconcebível que agora o Estado assuma um papel maior, não totalitário, mas com maiores responsabilidades sobre o elementar, sobretudo a saúde, a segurança e a educação.
Não teme que a pandemia ameace ainda mais as democracias liberais e dê um novo impulso aos populistas?
Certamente, o movimento de desconfiança em relação às autoridades será ampliado, e é compreensível porque houve erros. O ceticismo hoje atinge os políticos, o Estado, os meios de comunicação e inclusive a ciência.
Haverá um reforço do soberanismo? Acredito que sim, mas não acho que ganhe. Sou europeu e desejo que a Europa continue nesse caminho, mas não estou seguro. Pode ser que a força da opinião conduza a medidas cada vez mais egoístas das nações. A solidariedade europeia não tem estado à altura e a Europa caminha mal.
A China parece aproveitar a oportunidade para presumir que seus cidadãos foram mais cívicos. Essa situação poderia comprometer as bases de nossas democracias?
Penso que não, a vinculação das liberdades privadas e públicas na Europa é muito forte. Não vejo que as pessoas contestem a legitimidade das medidas. É muito mais a gestão receosa dos Estados, que temeram a reação dos cidadãos. Na Espanha, por exemplo, permitindo a manifestação do Dia da Mulher, com milhões de pessoas, quando o vírus estava circulando.
Quando se toca o botão da segurança sanitária, as exigências loucas do individualismo diminuem. Ninguém protesta em um hospital ou em um aeroporto, sabem que é para o seu bem. As pessoas não são tão irresponsáveis como dizem.
No caso da China, isso será visto mais tarde, mas é provável que as autoridades mentiram sobre o número de mortos. Por outro lado, Taiwan e Coreia do Sul foram eficazes e não são estados totalitários.
Lá, impuseram medidas como a localização dos cidadãos graças a seus telefones, ideias que são debatidas na Europa. Não pode se tornar um ataque às liberdades individuais?
'Voilà', a grande questão. Os observadores contemporâneos anunciam que o estado de exceção se tornou a regra em nossas democracias. Não compartilho dessa análise apocalíptica.
Quando os ataques à liberdade são feitos dentro de uma estrutura de proteção vital, as pessoas colocam sua vida à frente da liberdade, o que me parece normal, porque sabem que quando esse período terminar, a recuperarão.
Acredita que as cicatrizes do distanciamento social, a nostalgia do contato físico, contribuirão para colocar fim ao hiperconsumismo das últimas décadas?
"Voltar a se centrar nas coisas profundas”, dizia Emmanuel Macron em seu discurso. Isso cabe muito bem para os intelectuais, mas são palavras evangélicas. Depois da crise, as pessoas precisarão respirar, sentir-se leves, e já sabemos que ser leve hoje significa sair de férias, fazer compras, ir ao cabeleireiro, assistir a uma série. Não que seja muito elevado, mas é o que existe.
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“Não é inconcebível que agora o Estado assuma um papel maior, não totalitário, mas com mais responsabilidades sobre o elementar”. Entrevista com Gilles Lipovetsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU