07 Junho 2018
“Movimento das praças” ou “novos novos movimentos sociais”. Seja qual for o nome que se lhe dê, algo de novo aconteceu nesta década, um novo ciclo de protestos herdeiro do Maio de 68, mas distinto dele. Sistemas partidários foram estilhaçados, novas soluções governativas encontradas. “O Manifestante” veio para ficar?
A reportagem é de Sofia Lorena, publicada por Público, 13-05-2018.
Maio de 1968, Paris: “Sejam realistas, exijam o impossível.” Março de 2011, Lisboa: “Inevitável é a tua tia.” O Maio de 68 morreu ou está mais presente do que nunca como referência? Nunca teve a importância que muitos lhe atribuíram? Hoje, revoltamo-nos mais ou menos? Há 50 anos exigíamos direitos cívicos e agora só nos manifestamos por questões materiais? O que nos revolta faz-nos sair à rua ou grande parte do ativismo social acontece online?
As respostas não são consensuais. Se ainda há muitos que na academia se dedicam aos “longos anos 60” e ao ciclo de protestos que começou na década anterior e só terminou na seguinte, do México ao Paquistão, também já há quem publique investigações sobre a década em que vivemos e a vaga de movimentos sociais e ativismo a que assistimos. Movimentos que começaram por responder a uma crise da banca e da dívida e acabaram a pôr em causa a democracia representativa, o capitalismo ultraliberal e a forma como nos organizamos em comunidade, comunicamos, nos movimentamos ou comemos.
Era de novo Primavera e 40 anos depois de 68 voltou a ser exigido o impossível. Da Avenida Habib Bourguiba de Tunes às Portas do Sol de Madrid, da Tahrir do Cairo ao Occupy Wall Street, passando pela Avenida da Liberdade e pelo Rossio. Em 2008, falia o banco de investimentos Lehman Brothers. As consequências que muitos recusaram antecipar não demoraram. Bolhas imobiliárias resultaram em casas abandonadas, hipotecas por pagar; um sistema de bolsa com demasiada imaginação e ganância e instituições financeiras foram resgatados com o dinheiro que os governos passaram a dizer não dispor para manter as garantias de um Estado social.
Revoltas contra ditaduras desencadeadas pela mistura explosiva de desfavorecidos desesperados e classe média politizada e mantida à margem das decisões políticas. Tudo ajudado pela rapidez com que as redes sociais permitem comunicar, mobilizar e difundir imagens de repressão ou protesto.
Uma e outra vez a mesma descrição: “Saí à rua a medo, primeiro não vi quase ninguém, pensei que era um fracasso, depois começaram a aparecer pessoas vindas de todos os lados…”
A frase é de Lina ben Mhenni, ativista tunisina, mas podia ser do português João Labrincha ou de um dos primeiros espanhóis a acampar no centro de Madrid. É quase igual à que ouvimos em conversa com Alaa al-Aswany, um dos grandes cronistas da revolta egípcia, roubada uma e outra vez pelos militares. Aswany falava do dia em que um milhão fez transbordar a Praça Tahrir do Cairo. Labrincha tem na cabeça o 12 de Março de 2011, data da primeira de várias manifestações, as maiores em Portugal desde o 1º de Maio de 1974.
Para alguns, este ciclo está terminado – outros, como a filósofa Marina Garcés, nascida em Barcelona e a ensinar em Saragoça, olham para o mundo “em insurreição permanente”. Graeme Hayes, investigador na Universidade de Aston, Reino Unido, especialista em movimentos sociais e desobediência civil, acredita pelo menos que os movimentos nascidos do combate às políticas a que chamamos de austeridade se transformou mas permanece de boa saúde e pode ser “remobilizado” assim que for preciso. E esse momento chegará, inevitavelmente.
“As contradições do capitalismo não foram resolvidas, as políticas de austeridade não acabaram com os problemas e a crise ainda cá está, latente. Em breve, voltaremos a ser pressionados”, defende Hayes em conversa com o P2. “As críticas à natureza da democracia representativa deixaram marca e foram importantes.” Hayes já publicou vários artigos sobre os “regimes de austeridade” e o “movimento das praças”. Em agosto, chegará às bancas o livro Breaking Laws: Violence and Civil Disobedience in Protest, de que é co-autor com as francesas Isabelle Sommier e Sylvie Ollitrault.
Se o sociólogo Alain Touraine descreveu aquilo a que se assistiu nos “longos anos 60” – e de que 68 se tornou símbolo – como “novos movimentos sociais”, já há quem chame “novos novos movimentos sociais” ao que vivemos desde o fim da década passada, início da atual, explica Guya Accornero, especialista em sociologia dos movimentos sociais do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE que não gosta especialmente deste termo.
“Maio destruiu a hipocrisia moral”, sentenciou um dos líderes da insurreição original, na Universidade de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit, que chegou a líder do Grupo dos Verdes no Parlamento Europeu. Para o pai de Antoine Guégan, Gérard, que sem ser estudante acabou quase por acaso a ocupar o campus de Sorbonne-Nouvelle, Censier, foram semanas a falar de “sonhos” e “utopias”, com “toda a gente convencida de que estava a acontecer algo impressionante”.
Antoine, 27 anos, a mesma idade que o pai tinha em 68, acaba de passar três semanas no mesmo campus, atrás de barricadas, numa ocupação em protesto contra a nova lei do ensino superior que a polícia antimotim interrompeu a 30 de Abril, um dia antes de Maio. Para este professor em Censier, aluno de doutoramento noutra universidade, pelo menos em França, “a maioria dos estudantes rejeita a aproximação ao Maio de 68”.
Acima de tudo, diz, trata-se “da incompreensão face a figuras essenciais do Maio de 68, como Daniel Cohn-Bendit ou Romain Goupil, que se tornaram cães de guarda de [Emmanuel] Macron”. E da convicção de que “a geração de 68 é incapaz de compreender o mal-estar e o descontentamento que atravessa a nossa juventude”. Os jovens que hoje ocupam universidades em Paris inspiraram-se “em alguns dos seus modelos de ação”, tentando, ao mesmo tempo, “afastar-se desta herança pesada”.
Quais eram os gritos de 68? Liberdade face a uma sociedade autoritária e conservadora, combate contra as desigualdades e um mundo onde o consumo se impunha como objetivo último, crítica da democracia representativa (com o ideal da democracia permanente ou participativa) e desconfiança face ao poder, a afirmação da autonomia do indivíduo… Solidariedade também, com os operários que em Janeiro tinham erguido as primeiras barricadas e que acabariam por ultrapassaram os nove milhões em greve. E igualdade, não só entre classes mas entre povos.
“Somos todos judeus alemães”, gritou-se numa das maiores manifestações de Maio, em Paris, a fazer lembrar o “Somos todos refugiados” dos últimos anos. “Ninguém se apaixona por uma taxa de crescimento”, foi outro dos slogans de 68, a lembrar que os que o fizeram, como os que saíram à rua e ocuparam as praças na presente década, se inscrevem numa história da mobilização social. Que por mais que alguns queiram, o presente bebe do passado e aprende com ele, nem que seja para fazer diferente, para tentar ser mais consequente.
Entre uma e outra década, desenvolveu-se o Movimento Anti-globalização ou Movimento de Justiça Global, o combate dos ambientalistas, reanimou-se o Movimento contra a Guerra e o cooperativismo, começaram a surgir iniciativas de economia social.
O Maio de 68 também foi uma festa. No pico da crise, as ocupações de praças e as enormes manifestações, os movimentos anti-despejo em Espanha ou as revoltas árabes tiveram mais de deprimente do que de festivo, com medidas frequentes a obrigar a um estado de reação permanente, cargas policiais... Mas entre muitas lágrimas e mortos também houve fogo-de-artifício na Tahrir, entre perda de direitos e de qualidade vida, viram-se risos no 12 de Março e ateliers de dança no acampamento dos Indignados.
Agora, pelo menos em Portugal, “respira-se melhor”, diz Labrincha. “Há menos fome, menos precariedade, existe uma janela de esperança. Continuamos a ter um desemprego enorme (mascarado) e muita precariedade, mas os pequenos avanços, como a atual solução governativa, ajudam a que haja um espírito menos pesado. Há mais alegria e as dinâmicas são mais de construção do que de contestação”, diz o ativista que continua na Academia Cidadã, que co-fundou na sequência do protesto da “geração à rasca”, e se mantém envolvido em diferentes movimentos.
Portugal, Espanha, Itália ou Grécia mudaram de forma fundamental nos últimos anos. Em Espanha, o Democracia Real Já! (“o futuro é agora”, gritava-se em 68) e os Indignados deram origem ao que hoje é o terceiro partido do país, o Podemos, de Pablo Iglesias, e as dezenas de movimentos cidadãos que lideram e participam em governos municipais e autônomos – a eleição de Ada Colau, uma das mais conhecidas figuras da PAH, a Plataforma Anti-Hipotecas que paralisou centenas e centenas de despejos, para a Câmara de Barcelona, foi o expoente desta passagem do ativismo à política.
Ao mesmo tempo, o renascer da dinâmica de associações de bairros (criadas durante a ditadura) que a crise e o 15-M provocaram não morreu; independentemente do que se possa pensar do processo independentista catalão, sem essa dinâmica de civismo, o referendo ilegal de 1 de Outubro, fortemente reprimido pela polícia, não teria sido possível.
Enquanto na Islândia se derrubaram governos e prenderam banqueiros, na Grécia, que sofreu como nenhum outro país europeu a dureza da austeridade, o sistema partidário entrou em colapso, mas o partido que foi farol de toda a esquerda anti-austeritária, o Syriza, rapidamente se vergou perante a intransigência da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional).
Na Itália, depois de uma série de primeiros-ministros não eleitos – com o afastamento de Silvio Berlusconi por pressão de Bruxelas e a sua substituição por Mario Monti, no final de 2011, a representar o grau zero da democracia – caminha-se agora para um governo formado pelos mais votados e liderado por um partido populista e fascista, a Liga, em coligação com o Movimento 5 Estrelas, o partido anti-partidos e antipolítica – expressão máxima no país do slogan “Não nos representam” do 15-M.
O regresso do nacionalismo e do fechar de fronteiras a que assistimos em grande parte da Europa, como na eleição de Donald Trump, são tão consequências da crise como o Podemos, os movimentos Morar em Lisboa ou Stop Despejos! ou o Governo socialista apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP.
“Em Portugal, o impacto foi diferente do que em Espanha, onde a cultura de ativismo é maior, o que tem que ver com a transição. Mas foi enorme. Sem 12 de Março e Que Se Lixe a Troika, não teria havido ‘geringonça’ e o país não teria o único Governo não austeritário da Europa”, sustenta Guya Accornero. A investigadora e professora lembra que entre os primeiros subscritores do Que Se Lixe a Troika já estavam políticos, como a vereadora da Habitação de Lisboa, Paula Marques. “O movimento integrou atores que dentro das instituições já defendiam e preparavam caminho para novas soluções de governo” – a sua concretização é a grande consequência.
Mas Accornero aponta para movimentos relativamente novos, como o Habita e o Stop Despejos!, que “já fazem um trabalho incrível quando o direito à habitação está cada vez mais em risco”. Labrincha fala de um ativismo que se abriu, saiu de Lisboa e do Porto, e se atomizou em movimentos que trabalham em diferentes áreas, chegando assim cada vez a mais gente. E sim, também ele, um dos organizadores do 12 de Março, acredita que sem esse dia o Governo atual nunca teria existido.
Lembrando os obstáculos enfrentados por menos de meia dúzia de “putos mal chegados a Lisboa” até serem levados a sério e encontrarem pessoas como Raquel Freire e Sérgio Vitorino, especialmente ativos no movimento LGBT, que acreditaram neles e, de certa forma, os “validaram”, Labrincha sabe que foi tudo muito rápido. O protesto foi organizado e promovido entre o início de Fevereiro e a data do tudo ou nada, mas na sua cabeça ficou “a sensação de meio ano de trabalho com poucas horas de sono”.
O dia 12 de Março, a partida no Marquês de Pombal, as pessoas que chegavam à Avenida da Liberdade pelas laterais, aquela gigantesca massa humana mudou-o para sempre. “Foi o dia mais incrível da minha vida e um momento que recordo até hoje com muita emoção”, descreve. “Foi extraordinário. E foi o momento em que percebi que a minha vida seria dedicada ao ativismo. Isso também trouxe um peso, uma responsabilidade, mas que eu tenho prazer em assumir.”
Sem o apoio de gente que não quis dar a cara, mas que os ajudaram a chegar à imprensa e a outros activistas, nada teria sido possível. “Mas também só tivemos o sucesso que tivemos por causa da nossa espontaneidade, por usarmos uma linguagem nova, sem vícios, por tudo o que nos fez ser e parecer algo realmente diferente”, analisa.
Depois há o orgulho. Aos 27 anos, idade que tinha em Março de 2011, Labrincha sente que ajudou a “fazer a ponte entre as Primaveras Árabes e os protestos em Espanha”, que começariam em Maio, “ou os movimentos Occupy” em Londres, Washington e, com menos dimensão, em cidades de toda a Europa, ou, mais tarde, o próprio movimento do Parque Gezi, de Istambul.
O que nos revolta hoje não é, afinal, assim tão diferente do que revoltava quem fez o Maio de 68. Faltam-nos as estruturas tradicionais, sindicatos e partidos, ganhamos as redes sociais e soubemos reinventarmo-nos.
Mas, como lembra Antoine, “o contexto econômico degradou-se e a nossa geração só conheceu uma sucessão de crises econômicas, políticas, sociais e ecológicas, e é verdade que se instalou um cansaço geral face ao discurso permanente de crise”.
Atualmente, e apesar desse cansaço, face “a políticas tão impávidas quanto insolentes e depreciativas em relação à juventude do país”, o movimento estudantil só pode crescer. Hoje, o que mobiliza os estudantes franceses é a lei “que visa excluir as classes mais desfavorecidas da universidade, permitindo ao Estado diminuir o número de estudantes e o orçamento para o ensino superior”. Isto num país que se habituou a ver a sua universidade como “lugar onde todos têm hipóteses de sucesso”. Para Antoine, prova da incompreensão dos políticos “é a repressão policial muito forte, uma violência” que leva os “estudantes a levantar o tom e a procurar novas formas de luta”. Ao mesmo tempo que “demonstra como a democracia francesa está doente”.
Habitualmente, a repressão provoca uma escalada dos protestos. Aconteceu em Gezi, quando uma concentração numa cidade se alastrou a 60 províncias; em Atenas (onde foram mortos manifestantes logo em 2008); aconteceu durante algum tempo em Espanha; na Tunísia ou no Egito. Em Lisboa chegou a haver cargas policiais. Mas a repressão também pode assustar, como a brutal resposta do regime sírio a protestos pacíficos travou movimentos de protesto noutros países árabes.
“Se esta situação de força se mantém, eu deveria, para manter a República, tomar, de acordo com a Constituição, outras vias para além do escrutínio imediato do país [legislativas antecipadas]. Em todo o caso, por todo o país, e em seguida, deve organizar-se a ação cívica”, foi o discurso pronunciado na rádio pelo então Presidente Charles De Gaulle, citado por Laurent Joffrin no livro Maio de 68. Uma História do Movimento. Era 30 de Maio e nessa noite dezenas de milhares de gaullistas concentraram-se nos Campos Elísios. “A festa terminou”, escreve Joffrin.
Ao agitar o fantasma da guerra civil, De Gaulle “levantou o tabu da morte humana”. “Ninguém até então tinha querido matar; ele fá-lo-ia, se necessário. O Maio de 68 não é uma luta de morte para ninguém. É uma insurreição do verbo. […] Os revolucionários de Maio estão dispostos a tudo menos à verdadeira revolução”, escreve.
Na última década morreu-se muito. Na Tunísia, no Egito, na Síria, no Iémen, na Turquia, mas também na Grécia onde houve mortes às mãos da polícia mas também de frio ou fome. Em Barcelona, nos acampamentos dos Indignados, houve gente a perder a vista com balas de borracha disparadas pela polícia, o que na Tahrir sucedeu com dezenas de ativistas e agora voltou a acontecer com uma pessoa, no referendo de 1 de Outubro, na capital catalã.
O movimento independentista dos últimos anos que provocou a maior crise política em Espanha desde a transição e a detenção de inúmeros dirigentes políticos acusados de insurreição não se enquadra no movimento anti-austeridade ou nos protestos das praças. Mas foi a crise, aliada à descrença no Governo central, que o alimentou. Os mesmos motivos, exacerbados por denúncias de corrupção, má gestão e impunidade que levaram ao nascimento do 15-M e contribuíram para as revoltas que começaram no Magreb.
O que a maioria dos catalães quer é o direito a votar sobre o seu futuro político. Claro que nada é assim tão simples. O que alimenta este desejo é a possibilidade de um sonho, de começar de novo, de sentir que tudo é possível, como em 68 ou em Janeiro de 2011 na Tunísia. “O Maio de 68 foi vivido por muitos como o momento zero de choque cognitivo: ‘Tudo é possível’”, diz Accornero.
Sobre a Catalunha: “Julgo que isto acontece em momentos em que as pessoas deixam de confiar nas instituições e não há nenhuma força que as mantenha de pé. São momentos de crise, ruptura, incerteza e grandes expectativas. Se nós não reconhecemos as instituições, estas sofrem um abalo.” Em democracia, as estruturas precisam na nossa confiança para se legitimarem. Ora, muitos catalães deixaram de reconhecer Madrid.
Mas a história desta década faz-se precisamente de contestação da autoridade, das instituições, da ideia de inevitabilidade que os políticos, um pouco por todo o mundo, tentaram vender às suas populações. Na Europa e nos Estados Unidos, “desresponsabilizando-se e cedendo o seu poder às grandes corporações e às instituições financeiras, aos mercados”, diz Graeme Hayes.
Entretanto, como sublinha Labrincha, o estigma que ainda sobrevivia sobre a ideia de ativista ou ativismo começou a desaparecer, “apropriado até pela própria publicidade” ou “legitimado”, como lembra Accornero, pela escolha da revista Time para Pessoa do Ano, em 2011, “O Manifestante”. Ao mesmo tempo, defende Hayes, “a desobediência civil, uma técnica de protesto não violento que permite a pequenos movimentos serem mais eficazes e visíveis”, também começou a ser vista cada vez por mais gente como “legítima”, uma forma de sublinhar “que é o próprio Estado que está a abusar da lei”.
Em Espanha, isso foi uma constante, das tentativas para impedir despejos executados por polícias aos movimentos criados para recusar pagar um novo imposto, o “euro por receita” (que a Justiça acabaria por considerar inconstitucional), aos médicos que recusaram cumprir a lei que os impedia de atender pessoas em situação irregular. Com consequências como sentenças judiciais a anular leis, juízes a procurarem formas criativas para não fazerem cumprir leis injustas (e contrárias aos direitos humanos), desobedecer passou a ser visto como uma forma de defender a democracia.
A desobediência civil, nota Hayes, concretiza-se quase sempre por uma “ocupação de espaço, um reclamar do espaço público, mostrando que se tem legitimidade para o fazer e produzindo diálogo nesse processo”. Trata-se de uma técnica muito “tangível” e que “muitas vezes leva à detenção, o que obriga os envolvidos a explicar-se publicamente” e assim promover a sua causa.
Olhando para a desobediência como “uma forma legítima (porque não é violenta) mas de alto risco de praticar ativismo”, Hayes lembra que quem o faz “inscreve a sua própria história noutra, que remete para Ghandi e Martin Luther King”.
A ocupação do espaço público, a conquista das praças, “é uma forma de dizer ‘isto pertence-nos’”. Face a uma democracia que perdia o demos, “o povo”, o povo recuperou a agora. As decisões importantes nas Portas do Sol eram tomadas por votação de braço no ar, na Tahrir chegaram a organizar-se consultas em urna, na Academia Cidadã tudo se decide por consenso.
Accornero fala dos limites de um ciclo de protestos transnacional (e não internacional) em que os temas globais se unem às preocupações locais. Apesar da partilha de experiências e modos de atuação, é difícil pensar num movimento unido em torno de um tema essencial. Antoine também defende que, apesar de haver “um movimento global, é difícil para já antecipar uma convergência de lutas de um ponto de vista mundial”.
Hayes lembra que o que de bom saiu da crise de refugiados na Europa foi a criação de um ativismo transnacional, com novas ONG e ativistas “a perceberem que o Estado-nação não era a forma ideal de luta”. A Academia Cidadã, com sede em Lisboa, integra o Fórum Cívico Europeu que “faz lobby junto dos eurodeputados e da própria Comissão Europeia em temas como políticas de habitação ou a necessidade de democratizar a própria UE e abrir as instituições europeias à participação cívica”.
E se Hayes acredita que o “movimento das praças” está aí para ser remobilizado a qualquer momento, Labrincha deixa um aviso: “Imagino que um próximo Governo mais conservador em Portugal deva ter medo. Agora, há raízes e bases que não tínhamos. No momento em que voltar a ser preciso reagir, isso vai acontecer com muito mais força e foco.” Entretanto, pelo menos na Catalunha, onde o último governo eleito está entre a prisão e o estrangeiro, vai continuar a gritar-se: “As ruas serão sempre nossas.”
Brevemente, em Bruxelas, no Museu da História Europeia, passarão a estar expostos alguns cartazes do 12 de Março, conta Labrincha. Talvez lá vá parar aquele onde se lia “Inevitável é a tua tia”, repto claro e direto aos políticos para voltarem a fazer aquilo que os eleitos deles esperam, decidir, fazer opções ou, simplesmente, fazer política.
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A década em que se voltou a exigir democracia na rua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU