17 Março 2022
"O cristianismo não é e não pode ser uma religião étnica, mas fundada na liberdade de fé, que é gerada e desenvolvida nos corações e mentes dos crentes em Cristo, que, como em outra passagem se afirma, ensinava a chamar as coisas pelo nome, sem eufemismos nem edulcorantes da realidade para fins ideológicos e políticos, de forma que não estejamos diante de um 'exercício militar', mas, como disse o Papa Francisco tanto no domingo 6, quanto no domingo 13 de março no Angelus de uma 'guerra' e uma verdadeira 'agressão armada', que nenhum fiel cristão pode apoiar com suas próprias palavras e ações, porque isso, sim, é decididamente imoral, ainda mais do que a alegada imoralidade do Ocidente", escreve Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, em artigo foi publicado por Famiglia Cristiana, 15-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Domingo 13 de março, no dia em que se celebrou o Domingo da Ortodoxia, que se comemora a vitória sobre a iconoclastia, ou seja, a proibição de imagens sagradas, consideradas idólatras, com a escolha de continuar a venerar não as imagens-ídolos, mas os ícones, tão caros ao Oriente cristão, por iniciativa da Academia de Estudos Teológicos de Volos foi divulgada uma mensagem com o título: Uma declaração sobre a doutrina do "mundo russo" (Russkii mir).
O texto inicialmente subscrito por 65 teólogos ortodoxos, hoje conta com mais de 500 assinaturas de intelectuais, principalmente teólogos e ortodoxos, de todo o mundo (aqui o texto italiano; aqui a versão em inglês).
Esta iniciativa singular e significativa em seu conteúdo confirma, em primeiro lugar, a interpretação em chave metafísica, aliás estritamente teológica, da agressão armada perpetrada pela Rússia contra a Ucrânia.
Foi o patriarca Kirill a oferecer tal interpretação em seu sermão de 6 de março passado. Mas estamos diante de uma visão diametralmente oposta à do patriarca russo, que adota a doutrina do "mundo russo" chamado a evangelizar os outros povos e o Ocidente, agora vítima da corrupção e da perda de sua própria identidade cristã (o exemplo citado do orgulho gay, que a cultura ocidental imporia, é sintomático disso).
Com tons menos apocalípticos, o patriarca reiterou sua posição na carta de resposta ao secretário do Conselho Ecumênico de Igrejas (aqui), apontando o dedo contra a generalizada russofobia (homogênea em relação à cristianofobia ocidental), que pode ser um risco, mas não para que uma guerra irrompa.
Em segundo lugar, poder-se-ia, como faz seu colega Fulvio Ferrario em sua página do Facebook, colocar esta posição em analogia com a da declaração teológica do Sínodo de Barmen (31 de maio de 1934) em que, professando sua própria fé, um bom número de teólogos evangélicos pretendia se distanciar não só do regime nazista, mas também, se não principalmente, dos cristão-alemães, que pretendiam ser ao mesmo tempo fieis ao Führer e ao Evangelho.
As diferenças são macroscópicas, mas dependem sobretudo do diferente contexto e as analogias históricas são sempre claudicantes. Gostaria de sublinhar o fato de que o sínodo alemão da época não contextualizava sua posição de forma determinada, como oposição ao nazismo (inclusive, não nomeava o antissemitismo) e por isso a declaração também pôde ser aceita por vários homens da igreja que não a interpretavam nesse sentido. Mas isso se justifica pelo fato de que, diversamente, teria sido impossível dar publicidade à declaração e iniciar o movimento da "igreja confessante", definitivamente louvável, não só pela adesão de Dietrich Bonhoeffer, mas em geral por sua oposição ao regime.
A história não se faz com os ‘se’, mas imagino que se a declaração de hoje tivesse sido elaborada e subscrita por teólogos ortodoxos russos, talvez o resultado tivesse sido muito mais próximo ao de Barmen, até porque os signatários de hoje (talvez exceto alguns) não correm nenhum risco de perseguição política (Putin) e eclesiástica (Kirill).
Por fim, é interessante notar como cada ponto da declaração se conclui com uma clara e definitiva tomada de distância da doutrina do "mundo russo", com as palavras: "Condenamos como não ortodoxo e rejeitamos..." ou similares, que lembram os anatematismos dos Concílios Católicos até o Vaticano I.
Entre esses anatematismos gostaria de destacar aquele que afirma:
"Condenamos como não ortodoxo e rejeitamos qualquer ensinamento que estimule a divisão, a desconfiança, o ódio e a violência entre os povos, religiões, confissões, nações ou estados. Além disso, condenamos como não ortodoxo e rejeitamos qualquer ensinamento que demonize ou encoraje a demonização daqueles que o Estado ou a sociedade consideram ‘outros’, incluindo estrangeiros, dissidentes políticos e religiosos e outras minorias sociais estigmatizadas. Rejeitamos qualquer divisão maniqueísta e gnóstica que eleve uma santa cultura oriental ortodoxa e os seus povos ortodoxos acima de um ‘Ocidente’ degradado e imoral. É especialmente perverso condenar outras nações por meio de petições litúrgicas especiais da Igreja, elevando os membros da Igreja Ortodoxa e as suas culturas como espiritualmente santificadas em comparação com os ‘heterodoxos’ carnais e seculares".
Também me parece interessante sublinhar o método teológico seguido na elaboração da declaração, que se articula em seis momentos, cada um dos quais é precedido por uma citação do Novo Testamento, de modo que é a Palavra de Deus que ilumina o presente e seus dramas. Deixo ao leitor percorrer cada um dos momentos, limitando-me a assinalar o terceiro deles, onde, à luz do ensinamento paulino, se afirma:
"Já não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3,28). Afirmamos que a divisão da humanidade em grupos baseados em raça, religião, língua, etnia ou qualquer outra característica secundária da existência humana é uma característica deste mundo imperfeito e pecaminoso, que, seguindo a tradição patrística, são caracterizadas como "distinções da carne" (São Gregório de Nazianzo, Oração7, 23). A afirmação da superioridade de um grupo sobre os outros é um mal característico de tais divisões, que são completamente contrárias ao Evangelho, onde todos são um e iguais em Cristo, todos devem responder a ele por seus atos, e todos têm acesso ao seu amor e ao seu perdão, não como membros de grupos sociais ou étnicos específicos, mas como pessoas criadas e nascidas igualmente à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1,26). Portanto, condenamos como não ortodoxo e rejeitamos qualquer ensinamento que atribua instituição ou autoridade divina, sacralidade ou pureza especial a qualquer identidade local, nacional ou étnica, ou caracterize qualquer cultura particular como especial ou divinamente ordenada, seja ela grega, romena, russa, ucraniana ou qualquer outra”.
O cristianismo não é e não pode ser uma religião étnica, mas fundada na liberdade de fé, que é gerada e desenvolvida nos corações e mentes dos crentes em Cristo, que, como em outra passagem se afirma, ensinava a chamar as coisas pelo nome, sem eufemismos nem edulcorantes da realidade para fins ideológicos e políticos, de forma que não estejamos diante de um "exercício militar", mas, como disse o Papa Francisco tanto no domingo 6, quanto no domingo 13 de março no Angelus de uma "guerra" e uma verdadeira "agressão armada", que nenhum fiel cristão pode apoiar com suas próprias palavras e ações, porque isso, sim, é decididamente imoral, ainda mais do que a alegada imoralidade do Ocidente.
“Condenamos como não ortodoxo e rejeitamos qualquer ensinamento que estimule a divisão, a desconfiança, o ódio e a violência entre povos, religiões, denominações, nações ou estados. O cristianismo não é e não pode ser uma religião étnica, mas fundada na liberdade de fé”.
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Kirill, o herege, e o documento dos teólogos ortodoxos. Artigo de Giuseppe Lorizio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU