31 Janeiro 2022
Pandemia de Covid-19 mostrou a desigualdade no processo de envelhecimento e a falta de políticas públicas para esse segmento da população. Mas pesquisadores alertam que o problema existe há décadas e que o futuro não é nada animador.
A reportagem é de Cátia Guimarães, publicada por EPSJV/Fiocruz, 24-01-2022.
Era para ser o primeiro de uma sequência de dez anos em que se promoveria um conjunto de ações para melhorar a qualidade de vida das pessoas idosas. Mas a Década do envelhecimento saudável, estabelecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o período de 2021 a 2030, começou com uma pandemia que atingiu em cheio as populações mais velhas e matou milhões de idosos em todo o mundo – no Brasil, pesquisa da Fiocruz mostrou que, em 2020, quando ainda não havia vacina disponível no país, 75% dos óbitos por Covid-19 foram de pessoas acima de 60 anos. Mais do que uma “ironia do destino”, como caracteriza Yeda Duarte, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do estudo Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (Sabe) no Brasil, a tragédia deve funcionar como um alerta. “Eu acho que a pandemia revelou as mazelas que a gente sempre teve e não queria enxergar. Porque a questão do envelhecimento como demanda de melhora de qualidade do acesso e criação de serviços específicos já está posta há décadas, só que ninguém quer ouvir”, resume Karla Giacomin, médica geriatra e presidente da Frente Nacional de Fortalecimento às Instituições de Longa Permanência, criada no contexto da pandemia.
De fato, já faz algum tempo que o envelhecimento da população brasileira se tornou um desafio para as políticas sociais e, particularmente, de saúde: afinal, esse é um dos muitos desdobramentos da transição demográfica, e consequente transição epidemiológica, que começou a ser percebida por aqui nos anos 1970 e se intensificou no final do século 20. De um país onde nascia muita gente, em que as pessoas morriam relativamente cedo, incluindo um grande número de crianças que sequer completavam um ano, o Brasil vem progressivamente experimentando a queda da taxa de natalidade, aumento da expectativa de vida e redução significativa da mortalidade infantil. As consequências dessas mudanças são várias e uma delas diz respeito ao desafio de garantir qualidade de vida para os cerca de 31 milhões de idosos que o país tem hoje, o equivalente a mais de 15% da população – para se ter uma ideia dessa transformação, em 2010 essa proporção era menos da metade, 7,3%.
A notícia é boa, mas não custa lembrar que, apesar de ser um indicador de desenvolvimento, esse processo acontece de forma muito desigual em todo o país. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2019, a expectativa de vida no Brasil atingiu 76,6 anos, mas a média da população dos estados mais pobres chega a ser 8,5 anos a menos do que nas regiões mais ricas. Em Santa Catarina, que ocupa o topo da longevidade, a expectativa de vida era de 79,9 anos, enquanto no Maranhão, que fica na outra ponta do ranking, ela cai para 71,4 anos. De acordo com Giacomin, esse abismo pode ser ainda maior no interior de uma mesma cidade: segundo ela, em Belo Horizonte (MG) há diferença de 12 anos na expectativa de vida entre a população que mora na regional periférica e na regional centro-sul. Em São Paulo, diz, entre a periferia e a zona nobre, essa distância pode chegar a duas décadas. E tudo isso sem contar elementos como cor e orientação sexual, que também afetam essas estatísticas. “Parte da população masculina negra jovem é privada da chance de envelhecer porque é dizimada pela violência urbana”, exemplifica.
Embora seja mais facilmente medida pela análise da expectativa de vida, essa mesma desigualdade social está presente quando se observa a qualidade do processo de envelhecimento daqueles que sobreviveram à morte prematura. “Não existe uma velhice única, há velhices diferentes. E a gente sabe hoje que o código de endereçamento postal [CEP] onde uma pessoa vive determina muito mais o envelhecimento dela do que a própria bagagem genética”, explica Giacomin, que completa: “É muito importante que as pessoas reconheçam que envelhecer é o resultado do acesso ou da falta de acesso a direitos fundamentais”.
Por incrível que possa parecer, o direito que funciona como maior determinação social do envelhecimento no Brasil é a educação. Em outras palavras, pesquisas mais recentes têm mostrado que as pessoas com níveis mais altos de escolaridade ao longo da vida chegam melhor à velhice. Os motivos são vários. Primeiro, a escolaridade funciona como um indicador indireto de renda, principalmente porque, em muitos casos, contribui para o acesso a melhores empregos e condições de trabalho. “A escolaridade determina todo um curso de vida”, resume Maria Fernanda Lima-Costa, coordenadora do Estudo Longitudinal de Saúde do Idoso (ELSI).
Mas não é só. Giacomin explica que a escolaridade é também determinante do acesso à saúde. “Porque eu me conheço, tenho como saber quais os melhores hábitos e as melhores condições que eu poderia assimilar ao longo da vida. E tudo isso vai repercutir na velhice”, diz. E compara: “O contrário também é verdadeiro: se eu não tenho acesso à educação, vou viver com menos qualidade porque vou estar sujeita a condições de trabalho inferiores, a condições de saúde inferiores, vou ter menor acesso a saneamento, à iluminação pública e a vários outros direitos. E, por outro lado, vou estar mais sujeita à violência”.
Na comparação com o passado, esse indicador aponta uma melhora nas condições de vida dos idosos brasileiros. Segundo Yeda Duarte, as pessoas que chegam hoje à velhice têm uma escolaridade maior do que as gerações anteriores. Quando suas pesquisas sobre Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento (Sabe), que ela coordena, começaram, em 2000, 50% dos idosos em São Paulo eram analfabetos. Hoje, de acordo com a pesquisadora, esse número caiu para 30%. Já na projeção do futuro, há menos razões para otimismo. “É assustador saber que a gente está tendo dificuldades de acesso à pesquisa e à formação dos professores, ver a desigualdade de acesso à inclusão digital que a pandemia revelou... Isso compromete a geração futura em termos de educação e, portanto, também de saúde e envelhecimento”, lamenta Giacomin.
A desigualdade social interfere também na possibilidade de se manter hábitos saudáveis, que podem melhorar as condições da velhice. A partir de dados do ELSI, Lima-Costa afirma que a prática de atividades físicas é o elemento comportamental mais importante hoje para melhores condições físicas e cognitivas na velhice. Giacomin completa que, segundo as pesquisas mais atuais, tudo que se faz para “proteger o coração” ajuda um envelhecimento melhor do ponto de vista cognitivo. Por tudo isso, apoiar “bons hábitos” como caminho para uma velhice mais saudável é uma boa iniciativa, mas ela alerta que isso não pode ser proposto de “forma romântica”, sem considerar as condições dos sujeitos. “Se você pega, por exemplo, um motorista [de ônibus] do Rio de Janeiro, que trepidou o dia inteiro, foi violentado verbalmente na entrada e na saída de passageiros, que tem a expressão do desconforto. Quando chegar ao final do dia, se você falar para ele comer brócolis, essa não vai ser a sua primeira opção”, ilustra.
“Ter doença crônica é uma característica das pessoas conforme elas vão envelhecendo”. A explicação é de Yeda Duarte, que vai além: os dados do Sabe mostram que 60% da população idosa de São Paulo, por exemplo, tem o que hoje se chama de “multimorbidade”, ou seja, duas ou mais doenças crônicas ao mesmo tempo. “Mas isso não faz delas pessoas doentes”, garante. Isso porque, segundo a pesquisadora, o principal indicador de condição de saúde das pessoas idosas, de acordo com a OMS, é sua capacidade funcional. “O que se observa quando se avalia a funcionalidade é se o idoso é capaz de dirigir a própria vida de forma independente ou com alguma ajuda tecnológica assistida. Então, por exemplo, se eu tenho artrose e isso gera alguma dificuldade de andar, posso compensar com uma bengala. Talvez eu ande um pouco mais devagar, mas isso não me impede de continuar fazendo tudo que preciso fazer”, explica.
Vale ressaltar, ainda, que essa maior ou menor mobilidade depende também das barreiras de acesso que a própria organização da cidade impõe: calçadas com mais buracos e lugares com mais escadas, entre outros, também dificultam essa independência. Duarte completa: “A funcionalidade mede aquilo que a gente chama de dificuldade no desempenho das atividades cotidianas. Nós estamos falando de tomar um transporte público de forma independente, de carregar pacotes de compras com 5 kg ou mais, de usar telefone de forma independente, mexer com dinheiro, ir ao banco, gerir as próprias contas, cuidar dos afazeres domésticos, entre outras coisas”.
Por tudo isso, mais do que as causas de mortalidade – em que prevalecem na velhice as mesmas doenças crônicas que afetam a maior parte da população brasileira –, é importante olhar para os fatores que limitam as atividades das pessoas idosas. Duarte destaca que, logo atrás da hipertensão, a segunda maior causa de doenças na velhice são os problemas osteoarticulares, que incluem nomes conhecidos como artrite, mas englobam também um conjunto de dores relacionadas aos ossos e articulações. “Isso compromete de forma significativa a qualidade de vida das pessoas idosas, mesmo que não as mate”, explica. A naturalização desses e de outros problemas, segundo a pesquisadora, faz com que se acredite que, pelo avançado da idade, seja comum os idosos sentirem dor. Em São Paulo, de acordo com os dados do Sabe, 42% dessa população relata conviver com uma dor crônica. “Dor não é comum em ninguém. Dor mostra que tem alguma coisa de errado”, alerta.
Outro mito que precisa ser desmontado, de acordo com Duarte, é a ideia de que é normal que os idosos fiquem senis. “Por que se acha que todo velho com qualquer alteração de memória tem demência? Isso virou um fantasma na vida dos idosos”, critica. Ela explica que, embora seja, de fato, mais prevalente na velhice, a demência pode aparecer em outras faixas da idade adulta. Além disso, no Brasil, apenas uma minoria de idosos, entre 10% e 15%, sofrem com algum tipo de “declínio cognitivo”. Por isso, diz, é importante se diferenciar a senilidade – que é uma doença – da senescência, que se refere a mudanças fisiológicas próprias do envelhecimento que podem tornar os idosos mais lentos, por exemplo, mas sem gerar incapacidade.
Duarte ressalta que essa compreensão da velhice como doença se tornou tão forte que a própria OMS chegou a propor incluí-la no CID-11, a nova versão da Classificação Internacional de Doenças, que será lançada em janeiro de 2022. “É um absurdo”, critica a pesquisadora, que faz parte de um movimento internacional que pressionou e conseguiu reverter essa decisão. Segundo ela, há toda uma “indústria do antienvelhecimento” por trás dessa concepção, que precisa ser combatida. “Agora eu vou conseguir eliminar a velhice? Só matando os velhos, porque a pílula da juventude não existe”, ironiza.
Na verdade, ao contrário do que se costuma pensar, na dinâmica familiar brasileira, os idosos ocupam mais o papel de apoiadores do que de dependentes. “A população idosa mais ajuda do que é ajudada”, diz Duarte, justificando com dados do Sabe: “75% da população idosa é independente, cuida da própria vida, cuida do seu entorno e muitas vezes cuida da família”, diz. A pandemia de Covid-19, inclusive, deixou esse cenário mais evidente: desde o cuidado com as crianças que não podiam ir para a escola até o sustento da casa num momento em que muitos perderam emprego e renda, muitas famílias conseguiram se manter graças aos idosos.
Tomando como base os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua de 2018, Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afirma numa nota técnica de julho de 2020, que em mais de 60% dos lares com pessoas a partir de 60 anos, os idosos são responsáveis por mais da metade da renda total da casa. Também realizada durante a atual crise sanitária, pesquisa das universidades de Berlim, Federal de Minas Gerais (UFMG) e de Brasília (UnB) mostrou que os melhores índices de segurança alimentar eram encontrados nas residências em que havia pessoas com mais de 60 anos. Em meio à crise sanitária atual, a contraface do importante papel desempenhado por essa população, como alerta a nota técnica do Ipea, é um possível empobrecimento das famílias que perderam seus idosos para a Covid-19.
Claro que parte desse apoio vem da renda do trabalho de idosos que permaneceram ‘na ativa’, mas o diferencial dessa contribuição para o sustento familiar, sobretudo em tempos de alto desemprego, são os benefícios que vêm da seguridade social, como pensões, BPC (Benefício de Prestação Continuada), no caso dos segmentos mais pobres, e aposentadoria. Exatamente por isso, as perspectivas para as gerações que vão envelhecer no futuro são pouco animadoras. “Os idosos de hoje são de uma geração que conseguiu se aposentar e teve uma condição de vida possivelmente melhor na velhice do que as gerações futuras. Porque nós estamos em um processo de desmonte do direito da aposentadoria, reflexo tanto do desmantelamento da proteção trabalhista e do aumento da informalidade do trabalho quanto das reformas na previdência que têm o objetivo de reduzir os custos do Estado. Essas pessoas não vão conseguir se aposentar mais tarde ou vão receber o valor menor da aposentadoria”, lamenta Daniel Groisman , professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Essas são previsões para o futuro. Mas a geração que experimenta a velhice hoje já tem sua própria cota de denúncias sobre a ausência do Estado na proteção social dos idosos. Se é verdade que uma parte significativa das pessoas mais velhas vive de forma independente, também é fato que aquelas que demandam cuidados quase não contam com políticas públicas que melhorem a qualidade desse processo de envelhecimento. “Tradicionalmente, no Brasil e na América Latina de um modo geral, nós temos uma coisa chamada familismo: damos à família a completa e total responsabilidade pelo cuidado das pessoas mais dependentes e, dentre elas, as pessoas idosas. E se esquece de que é constitucional que a responsabilidade pelo cuidado das pessoas mais dependentes, incluindo crianças doentes e idosos, é da família, da sociedade e do Estado. Mas só a família é criminalizada se esse cuidado não acontecer”, explica Yeda Duarte. Groisman completa: “O Brasil não tem uma política nacional de cuidados, que é uma demanda já discutida há muito tempo. E isso certamente é motivo de morte precoce de idosos, de aumento de casos de violência, abandono e maus tratos”.
Essa ausência ficou ainda mais evidente na pandemia. Como principal grupo de risco da Covid-19, a recomendação era que os idosos evitassem sair de casa. Mas, para os quase 5,5 milhões de idosos que moram sozinhos no Brasil (cerca de 17% dessa população, segundo o IBGE), as coisas não foram tão fáceis. De acordo com a coordenadora do Sabe, em São Paulo, durante a pandemia, apenas 30% da população idosa conseguia usar o telefone para pedir compras, comida e medicamentos, entre outras necessidades. “Ou ele tinha ajuda ou saía de casa e quebrava a restrição [sanitária]”, resume. E completa: “Já se tinha que ter pensado em uma estratégia de política pública para ajudar essas pessoas. Mas isso não aconteceu”.
As consequências da pandemia sobre essa população foram muitas. “Além das perdas de vida, a gente está falando de perda cognitiva por falta de estímulo, de perda funcional porque os idosos ficaram confinados, de perda nos vínculos sociais, porque eles também perderam amigos, filhos e não puderam se despedir das pessoas que eram importantes para eles”, resume Giacomin, lembrando ainda que será preciso lidar com o pós-covid, já que muitos idosos que contraíram a doença e sobreviveram podem ter comprometimento de saúde em função, por exemplo, do tempo de hospitalização. Groisman completa: “Claramente não houve uma resposta capaz de proteger a população idosa de uma forma mais rápida. A gente tinha setores da nossa sociedade que defendiam que quem tivesse que morrer poderia morrer porque já eram doentes ou idosos, já que as medidas de prevenção estavam fechando a economia”.
Ainda que a pandemia exigisse medidas adaptadas ao contexto, se o país tivesse um programa nacional de cuidadores, demanda antiga dos pesquisadores dessa área, parte desse problema estaria amenizado. Duas iniciativas municipais são reconhecidamente exitosas nesse sentido: o Programa de Acompanhamento de Idosos, de São Paulo, cidade que mais tem pessoas acima de 60 anos no Brasil, e o Maior Cuidado, em Belo Horizonte. “Foi o que salvou muita gente. Porque entre as funções dos acompanhantes está, por exemplo, ir ao médico com o idoso e ajudar com as atividades, já que ele não podia sair”, relata Duarte. Falando das atribuições dos cuidadores de idosos em geral, Groisman completa: “É um trabalho que envolve desde fazer companhia até ajudar uma pessoa a se vestir, tomar banho, se alimentar. São atividades cotidianas, que podem parecer naturais ou automáticas para grande parte da população, mas à medida em que uma pessoa necessita de ajuda para realizá-las, a existência de alguém para dar esse auxílio às vezes pode ser a diferença entre a vida e a morte”.
A promoção de iniciativas como essas beneficia não apenas os idosos que moram sozinhos, mas também as famílias sobre as quais recai a responsabilidade pelo cuidado. “Se você tem uma pessoa cuidadora, por exemplo, duas ou três vezes por semana na casa de um idoso que demanda cuidados, isso também faz com que as pessoas da família que cuidam possam ter um tempo para descansar, para fazer as suas próprias coisas, para ir ao banco, para ir ao médico. Se ela está nessa função direto, 24 horas por dia, não tem tempo para isso”, diz Groisman, chamando atenção para o fato de que, como boa parte dos idosos não têm condições de contratar um serviço como esse, o cuidado aos mais dependentes acaba acontecendo de forma não-remunerada, no âmbito da família, principalmente pelas mulheres, reforçando, inclusive, a desigualdade de gênero.
Pesquisa coordenada por ele e por Dalia Romero, do Instituto de Comunicação e Informação em Ciência e Tecnologia da Fiocruz, durante a pandemia, mostrou que 92% das cuidadoras são mulheres, a maioria também com idade avançada, acima dos 50 anos. Um terço executa esse trabalho sozinha e, no caso das cuidadoras familiares, mais de 73% desempenham essa função todos os dias da semana, com longas jornadas. E os relatos apontam que o tempo de dedicação aumentou durante a crise sanitária atual. “É óbvio que a gente precisa incorporar o acesso a cuidadores ou cuidadoras de pessoa idosa através da nossa seguridade social, tanto no SUAS [Sistema Único de Assistência Social] quanto no SUS [Sistema Único de Saúde], até porque contratar essas pessoas no mercado é um privilégio para poucas famílias na nossa população”, resume.
Nacionalmente, o SUS conta com um Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD) chamado ‘Melhor em casa’, que conta com uma equipe multidisciplinar para atendimento de pessoas, idosas ou não, com doenças agudas e crônicas graves. Groisman ressalta, no entanto, a diferença entre atendimento domiciliar, que ele descreve como uma consulta para promover alguma ação específica, e cuidado domiciliar, que, mais permanente, auxilia na vida cotidiana. Além disso, segundo ele, o número de atendimentos a idosos desse serviço caiu entre 2015 e 2018, últimos dados que ele sistematizou.
Foi pela constatação do que considera uma “situação absolutamente grave de desamparo, grande sofrimento e sobrecarga das pessoas cuidadoras de idosos” durante a pandemia que Groisman idealizou, institucionalmente, um novo curso voltado para essa área. Com a experiência de 12 anos de realização na formação de cuidadores de idosos no Rio de Janeiro, a EPSJV/Fiocruz agora está oferecendo curso para formadores de cuidadores, uma estratégia de multiplicação dos conceitos e práticas do cuidado, visando, segundo Groisman, que coordena a iniciativa, aumentar o alcance desses conhecimentos. Nessa primeira etapa, as vagas são para Maceió (AL), Palmas (TO) e outros cinco municípios da região metropolitana do Maranhão. No segundo semestre de 2022, deverá ser realizada uma turma também no Rio.
Um programa de cuidadores de idosos em âmbito nacional, com dotação orçamentária adequada e execução territorializada, é parte da Política que os pesquisadores e profissionais envolvidos no debate sobre saúde do idoso cobram do Estado brasileiro. Mas não é a única: nesse pacote, sobram também desafios que envolvem mudanças nas práticas, nos serviços e até na formação para o Sistema Único de Saúde. Groisman contextualiza: “O SUS, assim como a maioria dos sistemas de saúde pública no mundo, foi concebido em uma lógica que historicamente privilegiou a assistência materno infantil. Agora, quando tem menos gente nascendo e mais gente idosa, com um aumento das doenças associadas ao envelhecimento, das doenças crônicas degenerativas, você precisa reorganizar o sistema para dar conta dessas situações”.
Para Yeda Duarte, isso impõe uma mudança já na formação dos profissionais de saúde. “Todo mundo aprende a cuidar de criança, todo mundo aprende a cuidar de gestante, em qualquer curso da área de saúde. Agora, nem todo mundo aprende a cuidar de idoso. Como isso pode ser aceitável em um país envelhecido como o Brasil?”, critica. Ela reconhece um período em que o Ministério da Saúde chegou a elaborar cursos à distância para complementar a formação dos trabalhadores da saúde em relação ao envelhecimento, mas diz que, sem se tornar uma política pública, com divulgação e incentivo, por exemplo, essas iniciativas não têm longo alcance.
Em relação à organização dos serviços, os pesquisadores apontam a importância de a porta de entrada do sistema de saúde estar preparada para contribuir com um envelhecimento saudável da população brasileira. “Em relação à expansão do SUS, o mais importante é a atenção básica, que é capaz de prevenir em torno de 80% das complicações”, diz Maria Fernanda Lima-Costa. Além disso, faltam, na avaliação de Groisman, serviços de referência de geriatria territorializados, próximos às residências dos idosos, “para os casos em que a atenção secundária é necessária”. E isso, ressalta, envolve não apenas acesso ao médico geriatra, mas também a procedimentos relacionados à fisioterapia, psicologia, nutrição e serviço social, entre outros.
No SUS e para além dele, Groisman resume o desafio: “A maneira como a gente cuida dos nossos idosos ou das pessoas que não correspondem aos ideais de autonomia e independência fala muito sobre a sociedade em que a gente vive. E o que a gente vem vendo é um gerontocídio silencioso, que se escancarou na pandemia, mas que já vinha acontecendo, sobretudo entre os mais pobres”, diz. E completa: “Eu não quero envelhecer numa sociedade assim”.
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Um país mais velho: o Brasil está preparado? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU