03 Dezembro 2021
“Os EUA consagram as armas. Elas são um dom de Deus para os bons e justos para proteger nosso estilo de vida. Isso é heresia. Em vez disso, devemos ouvir Isaías, que nos diz durante o Advento que na Jerusalém redimida: 'De suas espadas eles fabricarão enxadas, e de suas lanças farão foices. Nenhuma nação pegará em armas contra outra, e ninguém mais vai se treinar para a guerra'”, escreve o jesuíta estadunidense Thomas Reese, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 01-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os recentes casos de assassinatos na Georgia e Wisconsin, nos EUA, mostram que o relacionamento amoroso dos EUA com as armas está esmagando a possibilidade de nossas leis protegerem os cidadãos.
Na Georgia, nós vimos três homens brancos perseguindo Ahmaud Arbery, um corredor negro desarmado que eles suspeitavam ter roubado. A perseguição acabou inevitavelmente em tiros e assassinato. Os vigilantes se mostraram como heróis fazendo uma prisão de um cidadão, embora isso fosse um caso óbvio de racismo, sem qualquer evidência que sustentasse suas suspeições.
Não havia nenhuma emergência, nenhum crime ocorrendo, nenhuma propriedade roubada. Nenhuma vida estava em perigo até que eles se envolvessem. Eles poderia ter notificado a política de suas suspeitas e deixa-lo para o sistema de justiça criminal.
Em vez disso, eles criaram o problema, então reivindicando autodefesa quando a vítima tentou se defender.
Em Wisconsin, Kyle Rittenhouse foi laureado como herói porque ele andava pelas ruas de Kenosha, aos 17 anos, com um rifle AR-15 semiautomático, ilegalmente comprado por ele, porque é menor de idade, para proteger sua propriedade dos protestos Black Lives Matter, motivados na cidade pela abordagem de policiais brancos e o tiroteio contra Jacob Blake, negro.
Ele foi calorosamente acolhido pela polícia, que deveria ter lhe dito para voltar para casa. Em vez disso, os guardas de segurança o colocaram em um tumulto que resultou em dois homens mortos e um terceiro ferido por ele. O júri acreditou na sua reivindicação de autodefesa e ficou impune.
Rittenhouse nem mesmo foi processado por posse de arma de fogo perigosa porque o juiz determinou que a semiautomática estava de acordo com a lei de Wisconsin, que proibiria menores de portar armas perigosas, porque o cano tinha mais de 40 centímetros de comprimento.
Os especialistas jurídicos observam que, de acordo com a interpretação da lei pelo juiz, Rittenhouse poderia ter sido condenado se estivesse empunhando um soco inglês, mas não uma semiautomática. Quer a lei tenha sido mal escrita ou mal interpretada, deixarei para os juristas.
O juiz também proibiu referir-se aos fuzilados como “vítimas”, mas permitiu que fossem chamados de saqueadores, desordeiros, incendiários ou qualquer outro termo pejorativo. No mínimo parece irracional, uma vez que nenhum dos disparados foi acusado de um crime, muito menos condenado.
Enquanto isso, Dominick Black, de 19 anos, que comprou o rifle para Rittenhouse, foi acusado de duas acusações de fornecer uma arma de fogo a um menor, resultando em morte. Quanto a absolvição de Rittenhouse afetará o julgamento de Black é incerto.
Existem várias semelhanças nos casos da Georgia e de Wisconsin.
Primeiro, os dois atiradores se viam como heróis protegendo os outros de criminosos.
Justiça vingativa é um tema exaustivamente idolatrado nos filmes de Hollywood. É parte da psique masculina americana, conforme inculcada por Hollywood, que um homem de verdade tem a obrigação de espancar e às vezes matar os bandidos. A violência é permitida quando usada contra aqueles que infringem a lei.
Esta não é a Hollywood “liberal” condenada pelos conservadores. É a Hollywood que sabe que há dinheiro a ser ganho com filmes que retratam heróis fazendo justiça com as próprias mãos quando o sistema de justiça criminal falha em lidar com o crime.
Para se opor a essa narrativa, os liberais devem apoiar a prisão e o julgamento de vândalos e saqueadores que usam manifestações legítimas para encobrir seus crimes.
Em segundo lugar, o primeiro pensamento de Rittenhouse e dos homens da Georgia foi pegar uma arma, em vez de uma alternativa. No lugar de suas armas de fogo, eles deveriam ter pego seus celulares.
Os homens da Georgia deveriam ter ligado para o 911 e relatado suas suspeitas, como faziam no passado. Eles poderiam ter se oferecido para seguir o “suspeito” até a chegada da polícia. Eles poderiam ter pedido conselho à polícia antes de abordar o corredor.
Eles não fizeram nenhuma dessas coisas. Em vez disso, eles pegaram suas armas e se fizeram de Rambo.
Da mesma forma, Rittenhouse poderia ter usado seu celular para fotografar qualquer pessoa cometendo vandalismo ou qualquer outro crime e, em seguida, dado as fotos à polícia para serem usadas como prova em uma prisão e julgamento.
Em vez disso, ele se colocou com uma arma comprada na palha no meio de uma situação caótica para a qual não tinha treinamento.
Terceiro, os casos mostram a mistura tóxica de leis inadequadas que regem as armas, a prisão de cidadãos e a autodefesa.
A Suprema Corte dos EUA está atualmente revisando uma lei de Nova York que restringe o porte de armas de fogo fora de casa. Os juízes parecem dispostos a derrubar a lei, embora até mesmo alguns “originalistas” conservadores – que argumentam que a Constituição deve ser interpretada de acordo com as opiniões dos “Pais Fundadores” – digam que a lei é constitucional porque havia leis que regulamentavam o porte de armas em público na época colonial.
As leis que cobrem a prisão de cidadãos devem ser revogadas ou severamente restringidas. Essas ações provaram ser muito perigosas. A primeira regra de autodefesa, por sua vez, deve ser evitar problemas.
Agora que Rittenhouse foi absolvido, o próximo passo poderia ser facilmente confrontos entre vigilantes armados e manifestantes armados. O primeiro alegará estar protegendo o público e o segundo estará preparado para se defender.
Finalmente, o racismo desempenhou um papel em ambos os casos.
É difícil imaginar que Arbery teria sido perseguido se fosse branco, ou que Rittenhouse não teria sido confrontado, se não baleado, pela polícia de Kenosha se ele fosse um adolescente negro com uma semiautomática.
Em outras palavras, os assassinatos não teriam acontecido se as raças fossem revertidas.
Os EUA consagram as armas. Elas são um dom de Deus para os bons e justos para proteger nosso estilo de vida. Isso é heresia.
De acordo com o Brady Center, 316 pessoas são baleadas todos os dias nos Estados Unidos, das quais 106 morrem. 134 são alvejadas intencionalmente diariamente, das quais 39 morrem. A cada dia, tiros autoinfligidos são responsáveis por 74 disparos, com apenas 10 pessoas sobrevivendo nesses casos. Tiroteios acidentais envolvem 91 pessoas, uma das quais morre todos os dias.
Este é um preço alto a pagar por nosso caso de amor com as armas. Em vez disso, devemos ouvir Isaías, que nos diz durante o Advento que na Jerusalém redimida: “De suas espadas eles fabricarão enxadas, e de suas lanças farão foices. Nenhuma nação pegará em armas contra outra, e ninguém mais vai se treinar para a guerra”.
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Os EUA consagram armas como dom de Deus para os bons. Isso é heresia! Artigo de Thomas Resse, s.j. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU