22 Novembro 2021
Cidade com maior desigualdade racial do Brasil entre os municípios com mais de 220 mil habitantes, Porto Alegre foi onde assassinaram o homem negro de 40 anos com golpes na cabeça dentro da rede de supermercados.
A reportagem é de Caroline Nunes e Juca Guimarães, publicada por O Joio e O Trigo, 19-11-2021.
Em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a forma brutal como João Alberto de Freitas foi morto em uma unidade do Carrefour parece ter sido esquecida. Não há nenhuma placa ou qualquer outra homenagem em memória do homem negro que teve a vida ceifada aos 40 anos em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra.
Beto, como era conhecido, foi agredido e asfixiado por dois seguranças terceirizados da rede de supermercados, prestadores de serviço da empresa Vector, na frente de sua esposa, que nada pôde fazer para impedir a violência.
Nos 12 meses que se seguiram após o caso, o Carrefour anunciou medidas para reparar os danos causados à família de Beto e de combate ao racismo.
“A Justiça é lenta com a população negra, mas quando nós somos os acusados, não precisa nem ter prova. Esse caso do Beto mostra o quanto o nosso país é racista e injusto. Quantos Betos morrem todos os dias e a gente nem fica sabendo?”, questiona a professora Perla Santos, ativista do Movimento Minas Crespas de Porto Alegre (RS).
João Alberto Freitas, o Beto, foi morto em uma unidade do Carrefour, em 19 de novembro de 2020. Foto: Acervo Pessoal
Para os conhecidos e companheiros de sua paixão pelo futebol, em especial, pelo Esporte Clube São José, ou os torcedores da torcida organizada “Farrapos do Zeca”, o soldador e pai de família Beto era querido e participava frequentemente das atividades promovidas pela torcida, organização que desde a morte do torcedor tenta manter viva sua memória e prestar homenagens a ele.
Dois dias após o crime, em 21 de novembro de 2020, o torcedor e amigo Matheus Borges, 19 anos, conta que os integrantes da torcida organizada tentaram levar para os campos uma faixa em forma de protesto contra a agressão, mesmo com as restrições sanitárias devido à pandemia da Covid-19. Ele relata que o delegado da partida não permitiu a homenagem, pois, segundo ele, “Beto merecia ter morrido”.
“O delegado disse: ‘Ele [Beto] batia em policial, por isso morreu’. E aí mandou retirar as faixas. Na faixa estava escrito ‘Justiça pelo Beto, eterno Farrapo São José’, mas o delegado da partida não deixou entrar”, recorda. Segundo Matheus, mesmo após o impedimento, o clube de futebol até hoje homenageia Beto, principalmente nas redes sociais, apesar de existir um apagamento de sua imagem na capital gaúcha. “Uma coisa que pedimos sempre é justiça e manter sempre a lembrança dele. Beto sempre será lembrado por ser leal. Que pena que ele não pode ver o retorno das torcidas para os campos”, lamenta.
As informações mais recentes sobre o processo, concedidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, afirmam que a primeira audiência aconteceu em agosto, a fim de ouvir as testemunhas. Três pessoas convocadas pela acusação foram ouvidas presencialmente no Foro Central da Comarca da capital: a viúva de João Alberto, Milena Borges Alves; o ex-segurança do Carrefour Milton Rafaeli Machado; e a testemunha ocular Priscila Brasil Geossling.
O TJ-RS disse, ainda, que até dezembro estão marcadas mais nove audiências para escuta de outras 30 pessoas indicadas pela acusação e pelas defesas dos seis réus. São acusados: Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva, Adriana Alves Dutra, Paulo Francisco da Silva, Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende. Todos respondem por homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima) com dolo eventual.
“O que seria justiça nesse caso? As adversidades que envolvem a vida de uma pessoa negra faz com que se pense muito diversamente o que seria a justiça para ele e para a família dele. O movimento negro pensa que era preciso indenizar de maneira volumosa a família. Não foi isso que se deu, porque a vida não se paga. Beto morreu, e morreu violentamente”, considera a socióloga Nina Fola.
Em junho deste ano, o Carrefour Brasil assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões, destinado a uma série de ações antirracistas em Porto Alegre e, também, a fim de reforçar seus canais de denúncias de discriminação racial.
No final de maio, foram concluídos os acordos extrajudiciais do Carrefour com nove familiares de João Alberto por danos morais e materiais, os quais, segundo a rede, foram indenizados. A viúva de Beto Freitas, Milena Borges Alves, que estava com ele havia mais de nove anos e testemunhou sua morte, foi indenizada em cerca de R$ 1 milhão. Para o movimento negro de Porto Alegre, segundo a socióloga Nina, a quantia deveria ser de, no mínimo, R$ 10 milhões.
A empresa de segurança Vector, responsável pelos dois seguranças que agrediram Beto até a morte, por sua vez, assinou recentemente um acordo de R$ 1,79 milhão. O valor acertado com a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul será destinado ao combate do racismo estrutural, discriminação, violência racial. O acordo, no entanto, evita que a Vector seja cobrada judicialmente pela morte de Beto, utilizando 50% desse valor para bolsas em universidades de Porto Alegre.
Do restante, 35% irão fornecer vagas às crianças de até 5 anos de idade para ficarem em creches e outros 15% cestas básicas mensais para moradores do bairro Passo D’Areia, onde está a loja da rede onde Beto Freitas foi morto.
A Vector também se comprometeu a treinar seus funcionários a identificar e evitar discriminação e racismo estrutural, por meio de campanhas, cartilhas e vídeos. Uma ouvidoria independente também deve ser criada nos próximos meses, e a empresa afirma, ainda, que pretende aumentar seu quadro de trabalhadores negros, com metas anuais, e realizar a aceleração de carreira de funcionários negros, para que eles atinjam mais rapidamente cargos de liderança ou cargos superiores.
A não contratação de pessoas que tiveram registros criminais relacionados a associações criminosas, atividades de milícias ou crimes de racismo e injúria racial também foram acordos firmados com a Justiça.
Fundada em março de 1772, Porto Alegre passou os seus primeiros 116 anos sob o regime escravocrata até a assinatura da Lei Áurea, em maio de 1888. Hoje, a cidade que tem 1,5 milhão de habitantes, ostenta a maior desigualdade racial do Brasil, considerando todos os municípios com mais de 220 mil pessoas. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta uma diferença de 18,2% entre negros e brancos porto-alegrenses, enquanto a média nacional é de 14,4%.
O IDHM leva em conta dados sobre renda, educação e esperança de vida da população, com variação de zero a 1, sendo um índice muito baixo perto de zero e muito alto perto de um. Um cidadão negro de Porto Alegre tem o IDMH de 0,705, que é próximo da faixa de médio, enquanto um cidadão branco tem o IDMH de 0,833, já na faixa de muito alto.
“Aqui, em Porto Alegre, nós vivemos uma situação muito difícil. É a capital mais racista do Brasil, e não é algo que eu acho ou uma opinião do movimento negro. São dados do IBGE”, diz o vereador Matheus Gomes (PSOL), eleito em 2020.
De acordo com o IBGE, 20,2% da população da cidade se autodeclara negra (soma de pretos e pardos), 79,2% são brancos e apenas 0,2% são indígenas. Porto Alegre tem 94 bairros, e 39,2% da população negra vive em apenas seis: Restinga, Sarandi, Rubem Berta, Santa Tereza, Lomba do Pinheiro e Mário Quintana, localizados nas regiões periféricas, com pouca infraestrutura e transporte público ruim.
“As pessoas negras de Porto Alegre, se não passaram por algum evento racista nessa rede de supermercado [Carrefour], conhecem pessoas que já passaram por eventos nesses locais. Entram como consumidores e saem como suspeitos de um crime”, ressalta Jorge Terra, procurador no Rio Grande do Sul e membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RS.
Pessoas desabrigadas em via de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Ao fundo está a fachada da unidade do Carrefour onde Beto Freitas foi agredido e morto. Foto: Yago Rodrigues.
Ao nascer, a esperança de vida do negro em Porto Alegre é de 75 anos e meio, segundo o IBGE. Beto então teria, na média, mais 35 anos e meio de vida se não tivesse sido assassinado no Carrefour. Se fosse branco, teria mais 37 anos e meio ou, talvez, não teria sido morto brutalmente.
Além disso, a perseguição de corpos negros nas lojas e nos supermercados de Porto Alegre é uma face do racismo estrutural da capital gaúcha. Das 36 cadeiras da Câmara de Vereadores, apenas cinco são ocupadas por pessoas negras na atual legislatura, que vai até 2024.
O lema do estado do Rio Grande do Sul é “Liberdade, Igualdade e Humanidade”, porém, desde 2009 só foram eleitos 11 vereadores negros na cidade.
“Em Porto Alegre, o corpo negro é visto como descartável, como algo com o dever de servir, sem direito à vida. Não foi manifestada nenhuma empatia com a vida do Beto”, destaca o vereador Matheus Gomes.
O assassinato de Beto Freitas desencadeou vários protestos pelo país em 20 de novembro do ano passado. As manifestações naquele Dia da Consciência Negra trouxeram à tona o racismo estrutural e a violência à qual pessoas negras são submetidas. O crime ainda foi objeto de estudo da Universidade Zumbi dos Palmares, em uma pesquisa científica sobre racismo e segurança privada, feita durante quatro meses e que teve por base cerca de 300 fontes, entre reportagens, entrevistas e instituições.
A obra foi elaborada por Susana Durão, professora de Antropologia da Unicamp, em conjunto com Josué Correia Paes, relações institucionais da Diretoria de Segurança Corporativa do Hospital das Clínicas de São Paulo.
O livro contextualiza a segurança privada patrimonial, evidenciando, principalmente, como é a formação e o treinamento dos vigilantes. No caso Carrefour, um dos seguranças que fazia bicos pela empresa Vector era policial temporário da Brigada Militar. É o que conta o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente. Segundo ele, a obra também expôs resultados sobre o comportamento de profissionais que atuam em atividades de controle ou vigilância.
“A pesquisa também tentou entender, além dos seguranças, os funcionários do Carrefour. No caso Beto, os funcionários se juntaram àquela cena [agressão] ou se omitiram. O fato é que eles todos têm uma visão de mundo de que aquela ‘perigosidade’ precisa ser abordada com violência desproporcional”, salienta o reitor.
Na época do lançamento da pesquisa, o grupo Carrefour tentou censurar a distribuição do material com ameaças de processos judiciais. Segundo o reitor da Zumbi dos Palmares, a rede de supermercados foi avisada da pesquisa e convidada a comparecer na pré-estreia do livro Caso Carrefour, Segurança Privada e Racismo: Lições e Aprendizados.
“Nós achamos que seria pelo menos civilizado convocar o Carrefour. Primeiro, fazer conhecer o trabalho, que é importante sobre o fato, e depois que eles pudessem se juntar no lançamento para debater a aprender o que deveria ocorrer por conta do livro. E, aí, deu-se a reação que pegou todos nós de surpresa, que, no final, contradiz tudo aquilo que eles estavam pregando”, avalia o reitor José Vicente.
O Carrefour alegou que não foi procurado para contribuir com a obra que leva seu nome e que apresenta documentos internos que foram publicados sem anuência da rede. A partir disso, um boletim de ocorrência foi registrado no 2º Distrito Policial (DP), no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Contudo, o reitor da universidade responsável pela publicação afirma que, em pouco tempo, o Carrefour voltou atrás na ameaça de protesto e manteve uma postura comprometida a cumprir uma agenda antirracista, como determinado pela Justiça.
A família de Beto Freitas foi procurada pela reportagem, mas decidiu não dar entrevista, pois o processo ainda está em aberto.
Após concluídos os acordos extrajudiciais do Carrefour com os nove familiares de Beto por danos morais e materiais no final de maio, a rede também assumiu, ao longo dos últimos meses, despesas de alimentação, educação e tratamento médico para alguns desses familiares. A empresa, porém, não revela os valores dessa indenização e afirma ter seguido os critérios do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para casos de danos morais ou materiais que envolvem morte.
O Carrefour assume que, em novembro de 2020, após a morte de Beto, passou a adotar uma postura institucional antirracista. A empresa diz que revisou seus processos internos e tornou seus controles e sanções mais rígidos, com a política de Tolerância Zero. Cerca de 40 mil funcionários passaram pelo curso de letramento racial. Os funcionários envolvidos na morte de João Alberto foram demitidos.
Sobre as denúncias de violência contra manifestantes durante os protestos, a rede diz que, durante aquele período, o Carrefour foi alvo de manifestação e se posicionou de maneira respeitosa, entendendo a legitimidade dos atos. Nos casos em que a segurança de colaboradores e clientes foi colocada em risco, a intervenção da polícia foi necessária, segundo a rede de supermercados.
O Carrefour conta que lidera, hoje, um comitê na Associação Brasileira de Prevenção de Perdas (Abrappe), que tem por objetivo atuar na transformação do modelo de segurança no varejo. Na liderança do Comitê, a rede diz que tem como missão promover uma discussão sobre novas abordagens de segurança no varejo. A companhia acredita em uma segurança cada vez mais humanizada com foco total no cliente.
Em relação às ações de combate ao racismo em Porto Alegre, o Carrefour informou que, além do curso de letramento racial, foi alterado o sistema de segurança da loja do Passo D’Areia, com “uma segurança mais humanizada, com perfil acolhedor, que está presente nas lojas com o intuito de proporcionar a melhor experiência para o cliente”. Os seguranças passaram a usar câmeras nos uniformes.
Para estreitar o relacionamento com a comunidade local, foi realizado, em parceria com a Associação de Afroempreendedorismo – Odabá, um campeonato de futebol entre colaboradores de lojas e moradores de comunidades do entorno.
Dos R$ 115 milhões que compõem o acordo do Termo de Ajustamento de Conduta que deu origem ao Fundo Antirracista, cerca de R$ 21 milhões serão usados em projetos na área de educação, com bolsas para pessoas negras do Rio Grande do Sul, aproximadamente 14,5% do total. A rede diz, ainda, que está atuando em projetos de valorização da história da negritude na cidade de Porto Alegre, atividades que serão divulgadas em breve.
Ainda segundo a empresa, desde o início das investigações sobre a morte do Beto, o Carrefour tem colaborado com a Polícia e a Justiça de forma transparente, inclusive em relação à reconstituição do crime, ocorrida em agosto.
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Um ano da morte de Beto Freitas: movimentos sociais buscam justiça e Carrefour quer limpar nome - Instituto Humanitas Unisinos - IHU