22 Novembro 2020
O caso do homem negro de 40 anos morto num supermercado Carrefour de Porto Alegre (RS) após ser espancado por dois seguranças na noite de quinta-feira (19/11) reflete o racismo da sociedade brasileira e expõe a necessidade urgente de as empresas do país realizarem alterações estratégicas para evitar episódios similares.
A análise é do advogado Daniel Bento Teixeira, diretor do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), ONG sediada em São Paulo, dedicada a combater o racismo em empresas e instituições públicas.
Em entrevista à DW Brasil, ele explica que a morte de João Alberto Silveira Freitas – na véspera do Dia da Consciência Negra – desafia a iniciativa privada a encarar o racismo como uma realidade a ser combatida de modo estrutural.
"Muitas vezes, não há uma resposta institucional robusta, que dê conta de evitar casos futuros. O que o setor supermercadista vai fazer, de efetivo, para que não só não ocorram mais casos de racismo – inclusive por meio de homicídios dolosos –, mas também para que esse seja um setor equitativo, inclusivo, que valorize a diversidade? Essa é a pergunta que fica."
A entrevista é de José Gabriel Navarro, publicada por Deutsche Welle, 21-11-2020.
Essa morte, em plena véspera do Dia da Consciência Negra, é mais uma prova do racismo estrutural no Brasil?
Sim. É mais uma prova do racismo estrutural e institucional no Brasil. Nós temos instituições que ainda não se adequaram a um novo tempo de promoção da equidade racial, de combate efetivo e diário ao racismo. É preciso que esse tema deixe de ser tabu de uma vez por todas nas empresas. É necessário que, antes de mais nada, haja o diálogo sobre o tema de forma recorrente, seja nas escolas, nos meios de comunicação, e nas empresas e outras instituições onde as pessoas trabalham atendendo clientes e cidadãos. Esse é o primeiro legado. O segundo, além do diálogo, são medidas de equidade racial ligadas a toda a estrutura de uma empresa, uma cultura organizacional voltada para a equidade e a valorização da diversidade. Isso precisa ser algo contínuo, senão a gente vai estar sempre no território da denúncia, do caso já acontecido. É necessária uma ação anterior, educativa, sobre relações raciais no Brasil.
Quais as principais diferenças entre casos de racismo e discriminação racial que ocorrem em ambientes de consumo, como supermercados, e em outros contextos?
Muitas vezes, não há uma resposta institucional robusta, que dê conta de evitar casos futuros. Seja em instituições ou na rua, o pano de fundo é o racismo, que hierarquiza vidas humanas de acordo com o seu pertencimento étnico-racial. É uma hierarquização, por isso um dos movimentos mais importantes da atualidade é o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), justamente porque o racismo insiste em dizer o contrário.
Algumas empresas afirmam treinar seus funcionários de modo antirracista. Mas, pelo que o senhor disse, isso não basta.
Não é suficiente. Para que a gente tenha, de fato, equidade racial e outras dimensões de equidade implementadas nas empresas, não adianta, por exemplo, só fazer inserção de [pessoas negras como] estagiários ou em programas de trainee. Isso não trata da ascensão [dessas pessoas nas empresas], nem promove uma mudança de paradigmas e valores dentro de uma empresa. Você acaba não tendo uma capilarização desses valores na empresa. O tema não pode ficar circunscrito a alguns espaços da empresa: é necessário que ela como um todo esteja, de fato, adequada a esses princípios e os praticando no seu dia a dia.
Enquanto mudanças não ocorrem, de que maneira as pessoas pretas e pardas no Brasil podem se defender de atos de violência ocorridos em ambientes de consumo?
Entendendo que se trata de um ilícito de várias naturezas. Normalmente, a gente fala do crime de racismo, previsto na Lei número 7.716, que tipificou o que estava previsto na Constituição de 1988. Mas não é só no âmbito criminal. É um ilícito do ponto de vista civil e do ponto de vista do direito do consumidor.
Em vários estados, como São Paulo, você tem leis estaduais que preveem sanções a estabelecimentos onde ocorram casos de discriminação racial. Saber do direito que se tem, como pessoa negra, a buscar a responsabilização por esses casos é fundamental. Há muitos consumidores que já estão atentos a isso.
O que aconteceu em 9 de novembro de 2020 no Carrefour em Porto Alegre lembra o ocorrido num supermercado Extra da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em fevereiro de 2019, quando o jovem negro de 19 anos Pedro Gonzaga foi sufocado e morto por seguranças do estabelecimento. Há algo de sistemático por trás desses episódios em supermercados?
Sim, por causa do estereótipo que se tem com relação a homens negros, cujos corpos já são vistos como perigosos. O racismo projeta sobre o corpo negro diversos valores negativos e, sobre o homem negro em particular, o pressuposto da violência. Então, isso vai acontecer em estabelecimentos onde há um aparato ostensivo de segurança: shoppings e supermercados.
E não é o primeiro caso do Carrefour, houve o caso do Januário algum tempo atrás. [Em 2009, seguranças de uma unidade do Carrefour em Osasco (SP) agrediram o vigia e técnico em eletrônica Januário Alves de Santana, que teria sido confundido com um ladrão e acabou acusado de roubar o próprio carro]. Então é fundamental, mais do que urgente, que toda a instituição se reveja. Cada vez mais, isso vai ser algo recorrente, se a empresa não mudar em termos estruturais.
Mas não é só nos supermercados, que trazem um reflexo do que a sociedade brasileira vivencia. Não é força de expressão dizer que a gente tem um verdadeiro genocídio da juventude negra no país. Basta lembrar que o último genocídio formalmente reconhecido, em território europeu, pelo Tribunal Penal Internacional foi um capítulo da guerra da Bósnia em que foram assassinados pelo menos 8 500 bósnios muçulmanos. A gente tem mais do que o triplo desse número de jovens negros assassinados todo ano, e o país não parou para, de fato, resolver essa questão.
É somente quando surge um caso como esse, no Rio Grande do Sul, que há algum impacto, porque houve alguma convulsão social. O que o setor supermercadista vai fazer, de efetivo, para que não só não ocorram mais casos de racismo – inclusive por meio de homicídios dolosos –, mas também para que esse seja um setor equitativo, inclusivo, que valorize a diversidade? Essa é a pergunta que fica.
Qual é sua opinião sobre a nota emitida pelo Carrefour a respeito do que ocorreu?
É insuficiente. É fundamental que, além da resposta, a gente ouça a proposta da empresa para combater o racismo institucional que está lá dentro. Isso não é privilégio do Carrefour, isso está dentro das empresas em geral. Mas, por isso mesmo, é preciso uma resposta sistemática, institucional, em relação ao racismo. E localizar essa questão na gestão estratégica da empresa, para o futuro, não como algo episódico, que fica no âmbito individual.
Então, a partir desse caso e considerando que já houve casos dentro do próprio Carrefour, é fundamental que a empresa possa mostrar uma mudança. É necessário que essa nota seja complementada nos próximos dias, e com medidas efetivas que alterem essa estrutura.
O Grupo Carrefour no Brasil é controlado pela holding francesa de mesmo nome. Na Europa, há estudiosos que apontam certa ausência de um debate sobre a discriminação contra negros na França, país onde, por exemplo, é proibido por lei perguntar a cor da pele ou a raça com que alguém se identifica, ao realizar uma pesquisa de opinião pública. O senhor concorda com esse ponto de vista? Pensa que isso pode se refletir na cultura organizacional do Carrefour?
A Europa de modo geral tem esse posicionamento, por conta do legado da discussão sobre o nazismo, quando a classificação [étnica] que existiu foi justamente para discriminar e excluir direitos de judeus, ciganos, pessoas negras, homossexuais. A gente sabe que se trata de dados sensíveis, mas, por conta disso, muitos países adotaram um caminho equivocado. Porque você deixa de aferir dados importantes, estratégicos para monitorar as desigualdades raciais e a efetividade de ações afirmativas. Porque o primeiro passo para que se desenhe políticas públicas e programas empresariais de equidade racial é fazer um diagnóstico.
É fundamental que a gente olhe para os dados relacionados a raça e cor como os Estados Unidos, o Brasil, a África do Sul, países que estão lutando contra o racismo; e que a França também dê esse passo. Porque essa ideia de republicanismo que existe na França, de "não vamos falar sobre o tema", se parece muito com o mito da democracia racial que vigorou por muito tempo no Brasil, silenciando a discussão sobre o racismo, e achando que, por meio do silêncio, a gente resolve a questão.
No Brasil, frequentemente a população negra é empregada em forças de segurança, seja nas polícias militares ou como agentes de segurança privados. Qual é sua visão sobre negros atuando em segmentos que, historicamente, vêm cometendo atos de violência física contra negros?
Trata-se de uma reprodução do racismo, não se dá por acaso. O racismo, como estrutura, foi implementado na população como um todo. É um sistema, tem diferentes engrenagens, e é perverso justamente por isso. Não é de hoje que você tem pessoas negras o reproduzindo. Assim como, na história do povo judeu, houve os colaboracionistas, judeus que, justamente por causa da engrenagem de opressão, colaboravam com o nazismo à época. Porque eram utilizados como peças de um sistema que está operando contra eles próprios.
A gente luta, conscientizando em relação aos impactos do racismo, diferenciando cada conceito: o preconceito está no foro íntimo e pode depois se manifestar; a discriminação racial é um tratamento diferenciado; e o racismo é um sistema que abarca tudo isso, oprimindo a população negra do Brasil e a colocando estruturalmente numa posição inferior, subalternizada.
A relação entre portugueses, que invadiram o Brasil, os indígenas e os negros, hierarquizando vidas e causando genocídios, é a matriz da nossa desigualdade social. Somente mexendo na estrutura, em vez de apenas olhar para os sintomas, é que a gente vai conseguir uma mudança de cenário.
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“Empresas têm que reconhecer e combater o racismo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU