30 Setembro 2021
A sensibilidade do Papa Francisco para com as vítimas do tráfico e os migrantes é um dos pilares de sua era. Em Buenos Aires, sua evolução de uma Igreja em saída, ou rueira em seus termos mais portenhos, abriu seu capítulo lá em 2008. Bergoglio naquele ano decidiu acolher em uma missa os internos (os padres das villas, as irmãs Oblatas, a Rede Kawsay, as paróquias do Decanato, o Departamento de Migrações, a Equipe Não ao Tráfico da Comissão Nacional de Justiça e Paz) e outros (as organizações populares: o Movimento de Trabalhadores Excluídos e a Fundação Alameda). A unidade para lutar, rezar, pensar e trabalhar pelos migrantes, vítimas do tráfico e excluídos.
A reportagem é de Lucas Schaerer, publicada por Télam, 28-09-2021. A tradução é do Cepat.
No ano seguinte, animou-se mais e contagiou a todos, tanto na Igreja como na militância política e intelectual, que em sua maioria ainda não o compreendia. O então cardeal levou a missa para o coração do tráfico e a exclusão na Cidade de Buenos Aires. Na Praça Constitución, na esquina da Avenida Gary y Salta, cercado de costureiros resgatados de oficinas clandestinas ou fábricas têxteis sem direitos trabalhistas, catadores de materiais recicláveis que fazem a coleta do descarte do consumismo, mulheres que tentavam se recuperar do tenebroso mundo da narcotráfico e exploração sexual, famílias do campo submetidas à servidão. Todos se saudaram com a paz, entre as orações do Pai Nosso e da Ave Maria, e clamaram junto com o jesuíta pela conversão dos exploradores em praça pública.
Passaram-se 13 anos e essa missa na rua, com o lema “por uma sociedade sem escravos, nem excluídos” só foi abandonada no ano pandêmico. Na última quinta-feira, a celebração foi retomada, como ocorre todo dia 23 de setembro, com outro grande gesto de Bergoglio que é recordar a primeira lei no mundo que condena a exploração sexual, de autoria de Alfredo Palacios.
Sem palco e com um microfone que não funcionava, o bispo dos padres das villas, Gustavo Carrara, fez a homilia para leigos, freiras, militantes sociais, sindicalistas e políticos, entre eles, o secretário-geral da União de Trabalhadores da Economia Popular (UTEP), Esteban “Gringo” Castro. A celebração da Palavra de Deus e a Eucaristia foi acompanhada pelo bispo salesiano Juan Carlos Romanin, o padre vileiro Lorenzo “Toto” Vedia e alguns sacerdotes. Entre as oferendas, em um altar improvisado, estavam desde um carrinho com papelão até um livro com o depoimento de vítimas de tráfico sexual e um cartaz sobre a prevenção à exploração.
Em seu último livro Vamos sonhar juntos, o Papa Francisco lembra o que significou para ele a missa-rueira pelas vítimas do tráfico e exclusão: “lá, naquela multidão orante, senti o Bom Espírito... o que vi nas pessoas que se reuniam na Praça Constitución era a multidão que seguia Jesus: tinha dignidade e se organizava”.
Essas são apenas algumas palavras de umas seis páginas nas quais o Pontífice reivindica ir às periferias e, abertamente, marca as diferenças com as elites religiosas. Para isso, cita o exemplo de Jesus “que derrubou muros para estar próximo de seu povo, no meio de seu rebanho”, porque o Senhor sabia que “das margens vem a esperança... abracemos a periferia... os movimentos populares são semeadores de futuro, promotores da mudança que precisamos: colocar a economia a serviço do povo para construir a paz e a justiça e defender a Mãe Terra”.
A imagem dos migrantes haitianos detidos como gado pelos xerifes na fronteira dos Estados Unidos se espalhou pelo mundo. A crise migratória não parou nem mesmo com a maior pandemia global da história. Apesar das fronteiras oficiais fechadas, os voos cancelados, os números dos organismos internacionais, ONU e OIM, estimaram que, só em 2020, 280 milhões de pessoas fugiram de seus países.
Os líderes dos nacionalismos fechados e governos que proclamam benefícios para os migrantes, mas que quando pisam em sua terra os prendem e deportam, ficaram incomodados ao ouvir Francisco no Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados. “Rumo a um nós cada vez maior” foi o lema do Vigário de Cristo ao mais de 1,3 bilhão de pessoas batizadas. “Passada a crise sanitária, a pior reação seria a de cair ainda mais em uma febre consumista e em novas formas de autopreservação egoísta. Oxalá, ao final, não existam mais “os outros”, mas apenas um “nós””.
Essa frase ressoou neste domingo, 26, no Santuário Nuestra Señora Madre de los Emigrantes, no bairro La Boca, em frente ao Hospital Argerich. É justamente a igreja onde Bergoglio cardeal acolheu a unidade entre crentes e militantes populares para lutar em favor das vítimas do tráfico e os excluídos.
Em Buenos Aires, os migrantes mostraram toda a cor de sua cultura diante da Virgem Mãe dos Emigrantes e do Cristo de São Damião: roupas, danças, música e comidas dos venezuelanos, peruanos, paraguaios, dominicanos, até senegaleses e nigerianos. A dança colombiana conduziu a passagem do Santíssimo Sacramento entre os fiéis. Esse santuário, muito colorido pelos seus imensos vitrais, significa para os migrantes a casa de fé, do amparo social, jurídico e até educacional, dirigido em La Boca pela Congregação dos Scalabrinianos, assim chamados pelo beato João Batista Scalabrini, apóstolo dos migrantes.
A poucas quadras dali, também neste domingo, mas à tarde, na rua Pedro Echague, quase a San José, na sede da UTEP, os senegaleses muçulmanos celebraram sua mais importante data de fé chamada Grande Magal de Tuba. Pela pandemia, tanto respeitando os protocolos como as dificuldades pelos custos financeiros, após um ano com a paralisação do comércio na via pública, a celebração religiosa dos senegaleses se estendeu para Morón, Ezeiza e La Plata.
“A todos os homens e mulheres do mundo, dirijo meu chamado a caminhar juntos rumo a um nós cada vez maior, para recompor a família humana, para construir juntos nosso futuro de justiça e de paz, assegurando que ninguém fique excluído” é a mensagem do Sucessor de Pedro, nascido e criado no fim do mundo.
Como arcebispo, Bergoglio demonstrou onde estava na praça pública de Constitución, e sendo bispo de Roma, não perdeu o seu carisma. Sua primeira viagem de batina e solidéu brancos foi à periférica ilha de Lampedusa, no extremo sul da Itália, para homenagear os milhares de migrantes que morrem afogados no Mediterrâneo, em sua maioria africanos e de origem muçulmana que fogem das guerras civis, fomes e secas em seus países.
O Papa dos migrantes e refugiados segue abraçando afegãos que fogem dos talibãs, como aconteceu na quarta-feira passada, ou leva para o Vaticano 12 refugiados sírios muçulmanos que conheceu na ilha grega de Lesbos.
A pregação do primeiro Papa latino-americano tem o peso de suas obras.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Migrantes e tráfico humano no coração do Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU