"O apelo 'Salvar a fraternidade – juntos' é motivado por uma 'descrição da condição eclesial e cultural' sobre a qual não se pede que se diga 'sim' ou 'não' – como poderia ocorrer com uma série de teses ou de declarações –, mas que se confronte. Como um repertório, não como um diretório".
O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 18-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um grupo de 10 teólogos e teólogas, coordenados por Dom Vincenzo Paglia e Pierangelo Sequeri, no âmbito dos colaboradores da Pontifícia Academia para a Vida e do Instituto João Paulo II, escreveu no mês passado um texto intitulado “Salvar a fraternidade – juntos. Um apelo à fé e ao pensamento”.
O texto (23 páginas, mais quatro páginas do Posfácio de Dom Vincenzo Paglia: podem ser lidos na íntegra, em português, aqui) merece atenção por diversos motivos.
Neste primeiro comentário, limito-me a examinar o documento em um nível “formal”, porque, já nesse nível, parece-me que se destacam elementos consideráveis e que devem ser examinados com atenção.
Certamente, muito se refletiu no grupo que redigiu o documento sobre a “forma” a ser adotada para permitir que as palavras fossem compreendidas, consideradas e avaliadas. Várias vezes, ao longo das páginas, emerge essa “consciência infeliz” de uma teologia que corre o risco de “falar somente de si mesma e para si mesma”. Por isso, acredito que devem ser lidas com muita atenção as palavras com as quais o texto começa. Reproduzo aqui as primeiras linhas na íntegra:
“Aquilo que propomos nestas páginas é um apelo, com o qual é preciso confrontar-se, não simplesmente uma análise a ser aceita ou rejeitada. Para ser mais precisos, a descrição da condição eclesial e cultural realizada no apelo é o instrumento diagnóstico que sustenta a sua motivação e urgência: não é um ‘diretório’ de teses às quais se pede a adesão, mas um ‘repertório’ de questões sobre as quais é crucial refletir e discutir” (SF 1).
Aqui emergem alguns traços de singular clareza: o apelo é motivado por uma “descrição da condição eclesial e cultural” sobre a qual não se pede que se diga “sim” ou “não” – como poderia ocorrer com uma série de teses ou de declarações –, mas que se confronte. Como um repertório, não como um diretório.
O grupo se comprometeu com uma “descrição” – ao mesmo tempo eclesial e cultural – em que se põe em jogo a “competência teológica específica”, pensada a serviço de uma urgência tal como levantada pela encíclica Fratelli tutti.
Poderíamos dizer então: um dado de emergência, levantado com autoridade pela encíclica do Papa Francisco sobre a fraternidade e a amizade social, impõe à teologia uma descrição mais precisa da condição cultural e eclesial, e solicita (sobretudo os teólogos) a uma tarefa comum que atravessa todo o espectro dos sujeitos possíveis: os internos e os externos à tradição eclesial.
Daí, como veremos logo a seguir, a necessidade de identificar os interlocutores do apelo. Se um grupo de teólogos decide “mudar de forma” – não escrever tratados ou ensaios, mas um apelo – torna-se crucial identificar bem os destinatários do apelo.
O texto identifica, a partir da p. 14, os seus destinatários. O apelo é para os Discípulos (14-19), enquanto uma “Carta Aberta” é enviada aos Sábios (19-23). As formas são diferenciadas, e os interlocutores são concebidos de forma não genérica.
Aqui, evidentemente, o texto se diferencia de modo mais claro. O apelo, em sentido próprio, voltado aos discípulos, centra-se na reavaliação da relação entre Igreja e mundo. Algo muito importante é que o texto aponta, eclesial e teologicamente, para um “novo paradigma” de relação com o mundo, que saiba sair dos “dualismos entre a comunidade crente e a comunidade secular, entre o mundo criado e o mundo salvado”.
Tanto o fiel quanto o teólogo profissional são remetidos ao desafio de uma relação nova e direta com o mundo e com as suas linguagens, que é preciso aprender a falar. Esse é o desafio – grande e explícito – interno ao apelo.
A “Carta Aberta”, destinada, por sua vez, aos Sábios (ou seja, aos intelectuais não crentes), faz algumas escolhas claras: usa um “nós” que lembra os discursos do Concílio Vaticano II e de Paulo VI, e entra imediatamente “in medias res” com um pedido direto: o de “purificar a cultura dominante da tentação do relativismo e da desmoralização”. Talvez, no nível da forma, não seja o início mais aconselhável para favorecer uma interlocução sem preconceitos.
Precisamente porque, formaliter, a demanda de verdade e de valores, a que a Fratelli tutti dá voz com grande potência, brota de uma tensão entre fraternidade, liberdade e igualdade, é interessante que o apelo aos discípulos pareça organizado de modo mais dialógico do que a Carta aos Sábios. Na qual emergem, com maior força, aquelas leituras “in contumacia” do mundo contemporâneo, que o apelo aos discípulos havia justamente indicado como um beco sem saída.
Se se fala da moderna “descoberta do sujeito”, ao menos inicialmente, apenas de modo catastrófico, seleciona-se e predispõe-se o interlocutor de modo drástico demais. Será possível discutir melhor as passagens individuais no nível dos conteúdos, mas, mesmo apenas formalmente, essa escolha parece menos convincente do que a estrutura geral do documento.
Sem entrar por enquanto na consideração dos conteúdos, fica evidente, porém, que “diversas escolas” falam no texto. E esse é mais um dado significativo. Como é difícil não usar totalmente o próprio jargão. Como é difícil aprender o jargão alheio e fazê-lo frutificar no próprio, assim como é árduo ouvir o próprio jargão “re-expressado” em outro contexto, com outra intenção, com acepções diferentes.
O controle das palavras, que é o ideal de toda linguagem técnica, na teologia desmente a mais bela das experiências: a de deixar falar a linguagem da tradição. Se somos teólogos, é porque elaboramos uma linguagem técnica, que deveria permanecer “serva”, mas às vezes se torna “senhora”.
Não é difícil captar essa fadiga, esse trabalho, esse esforço em todas as páginas desse apelo. Esse é um de seus méritos relevantes. Ele mostra o esforço de sair de um jargão. O predomínio do “jargão milanês” – que é evidente na página e enriquece com finas terminologias a periodização e a respiração das frases – deve-se certamente ao fato de que pelo menos a metade do grupo provém dessa escola, dessas formas de pensamento e dessas figuras de experiência.
Mas, ao contrário dos textos dos autores individuais, o apelo também ressoa com outros tons, com outros imaginários, com outras figuras de palavra e de pensamento. Isso permite um debate muito mais amplo e diminui o nível de leitura preliminar, reduzindo os casos de “tecnicismo”. Para um apelo que quer falar a todos, esse é um elemento decisivo, que garante a sua possível fecundidade.
Esses destaques de caráter apenas formal são, evidentemente, uma “premissa” para conteúdos tão urgentes quanto ricos. O conhecimento direto de muitos membros do grupo de teólogos e a leitura do seu texto me levam a dizer que estão lançadas as bases para um diálogo verdadeiramente fecundo e produtivo.
Sem evitar a “confusão das línguas”, mas aceitando a pluralidade dos registros, esse “apelo a salvar a fraternidade” pode alcançar diversos resultados, graças à sua abordagem formal. Pode suscitar o diálogo e o debate, porque já é em si mesmo fruto desse diálogo e desse debate.
Acho que podemos identificar dois objetivos explícitos de tal desenvolvimento, que me parecem totalmente compartilháveis:
- por um lado, favorecer um “trabalho teológico” claro, audacioso e paciente, “criativo e hospitaleiro”, que saiba dialogar de forma verdadeiramente radical com a cultura contemporânea, para reler a tradição com um ato ousado e paciente de “tradução”;
- por outro lado, ter uma incidência eclesial capaz de pensar e realizar aquelas reformas de que a Igreja confessa a necessidade há pelo menos 60 anos, e cuja execução não pode deixar de ser preparada por um “pensamento da fé” à altura do desafio.
Para alcançar esses dois objetivos, é necessário iniciar um debate, na liberdade e com respeito, sobre três partes qualificadoras desse texto, ou seja, sobre a “descrição da condição eclesial e cultural” (SF 1-14), sobre o apelo aos Discípulos (SF 14-19) e sobre a Carta Aberta aos Sábios (SF 19-23).
A cada uma dessas partes, eu gostaria de dedicar um comentário específico nos próximos dias.