Tornada Ministério pelo Papa Francisco, a catequese ainda está entre os desafios da Igreja do século XXI. Irmão Cecchin e sua experiência junto aos pobres podem dar algumas pistas
A instituição do Ministério de Catequista pelo Papa Francisco agora em maio trouxe à luz um debate antigo que reflete sobre os desafios da formação cristã. Logo que se fala em catequese, muitos são jogados para as lembranças, boas ou más, das aulas de preparação para a Primeira Eucaristia. De fato, esse é um momento da vida em que a catequese se faz importante, mas não deve ser o único momento. Muitas comunidades chegam a substituir a expressão “catequizar” pela ideia de iniciação à vida cristã, que mobiliza famílias desde a preparação para o matrimônio, se estende pelo batizados dos filhos e segue ao longo do amadurecimento dos fiéis, nas mais distintas etapas de suas vidas. No próprio documento Motu Proprio que eleva a catequese a Ministério, Francisco reconhece o papel tanto de clérigos como de leigos na formação cristã. Ou seja, catequizar é missão de todos e nos mais distintos momentos da vida.
No entanto, o desafio que fica hoje ainda é: mas como catequizar? Ao longo da história da própria Igreja, há máculas profundas acerca da imposição da fé católica romana a povos originários de terras tomadas pelas grandes monarquias católicas do Ocidente e, mesmo atualmente, para muitos, falar em catequese é sinônimo de imposição de doutrina e regras da Igreja. Padre Benno Brod, jesuíta com ampla experiência em pastorais, entre elas a catequese, recorda que há décadas se tenta mudar essa visão da catequese. “Quantas tentativas de renovação, de adaptação a sempre novos tempos e novas exigências! Quantos novos “manuais”, tipo “livro do catequista” e “livro do catequizando”! Quantos congressos, quantos documentos da CNBB, quantos Diretórios de Catequese! Quantas “Fichas Catequéticas”!”, aponta em artigo escrito ao IHU.
O desafio é fazer da catequese uma arte de encontros (Foto: Cathopic)
Assim como padre Benno, muitos reconhecem que Francisco tem dado ares de renovação à catequese. Por isso é importante que se compreendam esses movimentos como parte das ações desse pontificado. Andrea Tornielli, em artigo publicado pelo Vatican News, observa que “a decisão papal de instituir o Ministério de Catequista é fruto de um caminho intuído por Pio XII, sancionado pelo Concílio Vaticano II e pelo Sínodo dos Bispos, especialmente o da Amazônia”.
Desde os primeiros movimentos como Papa Francisco, seja com a viagem a Lampedusa para confortar imigrantes ou no discurso ao movimento popular em Santa Cruz de La Sierra na Bolívia, Mario Bergoglio tem mostrado com ações concretas do que é feita uma Igreja em saída. Com demonstrações como essas de assimilação do espírito do Concílio Vaticano II, o pontífice também estende tais ações para a catequese, não só ao elevá-la a Ministério, mas por promover abertura e valorização do trabalho de leigos e leigas dentro da estrutura eclesial, e entre eles com destaque o trabalho de catequistas.
Para d. Leomar Brustolin, bispo auxiliar da Arquidiocese de Porto Alegre e coordenador do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Teologia da PUCRS, o sinal mais claro que Francisco dá é que “é urgente desenvolver em nossas comunidades um processo de Iniciação à Vida Cristã que comece pelo querigma e que, guiado pela palavra de Deus, conduza a um encontro pessoal, cada vez mais, com Jesus Cristo”. Encontro esse que também não pode se dar alheio à inserção comunitária, pois é na união da comunidade que a Igreja se faz. “Uma autêntica Iniciação à Vida Cristã supõe uma renovação de toda comunidade eclesial que se converta ao Evangelho, forme discípulos e assim possa adequadamente suscitar novos seguidores de Cristo”, completa, em entrevista recente concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Em certa medida, o que d. Leomar observa é que preparar a comunidade como um todo é fundamental nesse encontro com o Cristo, que também se dá na forma coletiva. Assim, podemos compreender que a catequese tem uma dimensão social, de grupo. Mas também não só isso, pois está presente uma dimensão pessoal, articulada com o grupo e que sai para a vida concreta como forma de viver o Evangelho. É justamente por essa perspectiva que há de entrar aspectos sociopolíticos da catequese, uma vez que ela não se resigna a ensinar a rezar ou tratar de leis e normas da Igreja.
Quem soube muito bem unir grupos desde uma ação catequética foi o irmão Antônio Cecchin, uma referência em catequese no Rio Grande do Sul nos anos 1960, 70 e 80. “A participação do irmão Antônio Cecchin foi fundamental neste processo, pois ele, com todo o aporte humanístico e cristão oriundo da Teologia da Libertação, encontra na periferia do bairro Mathias Velho um espaço para desenvolver uma espiritualidade libertadora integral”, aponta o historiador Odilon Kieling Machado, que pesquisou a conformação do bairro da periferia de Canoas, na Grande Porto Alegre, e a contribuição da catequese via Comunidades Eclesiais de Base - CEB nesse processo.
Falecido em 2016, aos 89 anos, irmão Cecchin sempre apreendeu a catequese como um movimento de transformação. Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2007, ele contou de forma muito peculiar como, depois de toda a sua formação e vida religiosa, também foi tocado por esse espírito transformador. “Os pobres me evangelizaram. Eu não era marista até conviver com eles. Hoje, olho para trás e sinto vergonha dos anos de vida religiosa que vivi antes de encontrá-los. Até então eu sentia uma pena infinita das prostitutas que ficavam ao lado do Colégio, na Rua Barros Cassal, em Porto Alegre. Pensava que o que faltava para aquelas mulheres era religião. Com os conhecimentos do marxismo, percebi que o problema delas era de sobrevivência”, disse à época.
Irmão Cecchin (Foto: arquivo/IHU)
Ao vivenciar essa aproximação com os periféricos da sociedade, Cecchin vai se instrumentalizar da Teologia da Libertação e das ações das Comunidades Eclesiais de Base e desse encontro sai a comunhão com aqueles que não tinham teto e que, juntos, ergueram o bairro Mathias Velho. “Irmão Antônio Cecchin foi um verdadeiro profeta no meio do povo. Seu carisma, dedicação e participação foram determinantes, na medida em que sua liderança na formação, orientação e assessoria estava ligada a uma concepção que tinha como eixo a libertação integral, com a dimensão pessoal, familiar, social e comunitária do povo”, acrescenta Odilon.
Cecchin (centro) em ações no Mathias Velho (Foto: Acervo Matilde Cecchin)
Cecchin viveu entre esses pobres, em meio a movimentos sociais, e, no fim da vida, com os recicladores e carroceiros das vilas de Porto Alegre, especialmente os que vivem nas geladas ilhas do Guaíba. “Eu estou tão metido na ação com os catadores, com os moradores de rua, que fui vivendo sem pensar nos anos. Hoje, sinto que estou perto do final, mas contente porque estou no caminho certo. Eu estou muito alegre. Graças a Deus, eu fiz a opção pelos pobres”, disse, ao recordar surpresa quando chegava aos 80 anos.
No entanto, a vida de Cecchin nem sempre foi fácil, justamente pela forma como conduzia sua catequese. Pioneiro nas chamadas Fichas Catequéticas, as apostilas não foram bem vistas pela repressão no regime militar, levando à proibição do uso e o religioso, à cadeia. “Essas fichas foram consideradas altamente subversivas pelo Ministério da Educação, do ministro Jarbas Passarinho. Fui preso nesse contexto”, recorda na mesma entrevista de 2007. Mas essa ainda não foi a única. “A segunda vez foi em 1971: aí sim me massacraram. Durante dez dias fui torturado com choques magnéticos e soro da verdade. Mas de novo eu fui entregue ao meu provincial, com a condição de ser internado no hospital dos loucos, em Porto Alegre, no Sanatório São José”, lembrou.
As chamadas Fichas Catequéticas tiveram a colaboração de outro autor, na verdade, autora: Matilde, a irmã de Cecchin. “As fichas catequéticas foram o fato divisor de águas de minha vida que pode ser separada em duas partes inteiramente diferentes uma da outra. Autores que fomos do sonho maior de minha irmã Matilde e meu, concretizado nessas fichas desencadeadoras de uma Catequese Nova e Libertadora, o continente latino-americano se transformou em nosso calvário mais dolorido”, recordou o religioso, em outra entrevista, essa de 2013.
Matilde e Antônio Cecchin (Foto: acervo Matilde Cechin)
As fichas, ou “fichinhas’, como ele referia, eram uma espécie de fichas de leitura que tomavam como base ideais da Teologia da Libertação para abordar assuntos pastorais. Das vivências Evangélicas, partiam da realidade concreta das pessoas com quem trabalhavam. No caso do bairro Mathias Velho, por exemplo, as pessoas acolheram a experiência do Jesus acolhido numa gruta para lutarem com uma casa digna. Não à toa impunham cartazes com a frase: ‘Jesus ocupou uma gruta, nós ocupamos esta terra’. “A relação religiosa está no contexto em que Jesus, ao nascer, não tinha uma morada adequada, além de ser exilado no Egito, nascendo entre animais, da mesma forma contextualiza-se pelo direito dos novos moradores de ter um terreno no bairro para ter as suas moradias”, observa Odilon.
Pioneiros do bairro Mathias Velho (Foto: acervo Matilde Cecchin)
Só que as ações do irmão Cecchin e de Matilde não desagradaram somente aos militares. “Fomos violentamente atacados por notáveis do país, principalmente do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais, de Brasília, de Porto Alegre e de outros lugares. Educadores, antropólogos, psicólogos etc., todo mundo se sentia bem à vontade para comentar o assunto referente à coleção “Educação Nova”, que englobava todas as nossas séries de fichas catequéticas destinadas a pré-adolescentes, adolescentes e jovens”, disse Cecchin na entrevista de 2013.
Assim, como o desafio da catequese segue, diante de muitos leigos e leigas de boa vontade, mas muitas vezes com pouco instrumental para realizar essa formação em seu sentido mais amplo, quem sabe as Fichas Catequéticas e a catequese para a libertação não podem ser um dos caminhos? Afinal, conforme lembra o padre Benno, é preciso encontrar um novo ânimo, como o velho “S’imbora” tantas vezes bradado pelo irmão Cecchin. “Seu inesquecível refrão “S’imbora” continua a convocar para construirmos um mundo diferente, cristão, humano, em que haja, como entre os primeiros cristãos, acolhida, partilha, participação, sem excluídos e sem necessitados. Enfim, um outro mundo, sempre utópico, mas sempre possível. A catequese deve ser tudo isso”, resume Benno.