De Wojtyla a Bergoglio: entrevista com Luigi Accattoli

Foto: Vatican Media

21 Mai 2021

 

Francisco mudou as vestimentas, a casa, os gestos, a linguagem, a relação com os meios de comunicação. Tudo. E talvez ele não pudesse ter feito isso se não fosse primeiro pelo furacão Wojtyla. João Paulo II inicia um resgate da subjetividade papal que com Francisco se torna total”. Ele escreveu livros e viajou pelo mundo, conheceu santos, Luigi Accattoli, vaticanista.

 

Nasceu em 1943 e é jornalista do Corriere della Sera desde 1981. Entre outras coisas, uma biografia do papa polonês traduzida para nove idiomas. Se, quarenta anos após o atentado a João Paulo II, lhe é pedido uma síntese entre o passado e o presente, com um olhar para o futuro, o pulso da Igreja em tempos de crise, não oferece um olhar distanciado, mas de quem sente o Espírito como convite à ação, de quem sente o desejo inesgotável de comunhão com o próximo e com Deus.

 

A entrevista é de Jacopo Guerriero, publicada por Revista Tortuga, 13-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Já explicou no início, mas continuemos. Existe no imaginário um esquematismo estabelecido: Wojtyla conservador e Bergoglio revolucionário. É realmente assim?

 

Na imagem papal, no mea culpa, na sinagoga e na mesquita, na relação com o Sul do mundo, na fronteira da paz, João Paulo II deu certamente passos à frente, ou certamente portadores de novidades. Não tenho certeza que fosse um conservador. Era conservador em relação ao papel do Papa, isso sim. Mas não para o pensamento social e o era e não o era para o patrimônio doutrinário.

 

Ele era ciumento desse patrimônio como um todo, mas não era fixista. Se o fosse, não teria se aventurado no mea culpa. Talvez o mais original de seus legados tenha sido o exame da virada do milênio, que levou ao mea culpa jubilar, fato sem precedente histórico. Cada pessoa de boa vontade não pode deixar de lhe agradecer por aquela humildade e audácia.

 

Ele usava as mídias como ninguém. Era uma estratégia?

 

Tanto Wojtyla quanto Bergoglio se beneficiaram de uma aliança criativa com as mídias nascida em ambos os casos meia hora após a eleição, quando o novo Papa aparece na Loggia central da Basílica de São Pedro: Wojtyla e Francisco transformam aquela primeira aparição de um evento ritual em termos jornalísticos.

 

Hoje, porém, João Paulo II está sob escrutínio, após o unanimismo que se seguiu à sua morte: pela gestão da cúria, por exemplo. Ele foi um papa mais político ou mais espiritual?

 

As críticas à gestão da Cúria são justas. Ele delegava demais. Missionário do mundo, ele não tinha aptidão para o governo curial, para o estudo dos dossiês. O seu é um grande pontificado em termos de missão, mas medíocre como governo. No entanto, Bento e Francisco também foram insuficientes no governo da Cúria. Bento XVI delegava como seu antecessor: veja-se a demasiada confiança depositada no cardeal Tarcisio Bertone. Francisco não confia na Cúria e não a valoriza.

 

Quem foi o último papa a fazer isso?

 

O último Papa a governar adequadamente a Cúria foi Montini. Mas talvez na dificuldade da relação dos últimos Papas com a Cúria, pode-se ver uma astúcia da Providência para levar a uma diminuição do papel da Cúria e a uma libertação do ministério papal dos laços curiais. Wojtyla era um apóstolo e um político apenas por apostolado. Tento dizê-lo com uma imagem estática da suntuosa recepção na Casa Branca que lhe foi oferecida pelo Presidente Jimmy Carter em 6 de outubro de 1979: havia onze mil convidados, o Papa estava diante do homem mais importante do mundo.

 

Lembro-me dele ouvindo o discurso do presidente com uma concentração extraordinária: com os braços apertados contra o peito, uma das mãos quase fechada em punho diante da boca, os olhos fixos no chão. Ele conseguia transmitir uma imagem poderosa de estranheza às honras do mundo. Percebi então sua aptidão para estar ao mesmo tempo totalmente presente em um evento e intimamente em outro lugar. Totalmente diante dos homens e totalmente diante de Deus.

 

O anticomunismo era uma obsessão para ele?

 

Ele era anticomunista e anticapitalista. A bandeira da justiça era tão cara para ele quanto a da liberdade.

 

Em um de seus livros de alguns anos atrás, Antonio Ferrari - correspondente do Corriere della Sera - conta quando você lhe deu uma dica: ouvir um discurso do papa, durante uma viagem à Bulgária, se bem me lembro, na qual Ferrari se convenceu de que João Paulo II nunca acreditou na pista búlgara sobre seu tentado homicídio. Quem armou a mão de Agca?

 

Acabei me convencendo de que ninguém o armou. Ele se armou sozinho. É a tentativa de matar o Papa por um muçulmano fanático que um ano e meio antes, encontrando-se na prisão por outro atentado, havia declarado publicamente tal intenção. Por ocasião da visita de João Paulo II à Turquia de 28 a 30 de novembro de 1979, ele enviou uma carta da prisão ao jornal Mylliet, publicada em 28 de novembro, na qual estava escrito: 'Se esta visita não for cancelada, é certo de que vou matar o Papa.

 

A convicção que formei, sozinho, ao longo das décadas, é que, diante de um fato tão complexo, deveríamos dar a interpretação mínima suficiente. Ou seja, que havia um homem, Ali Agca, membro de um grupo terrorista islâmico, os "Lobos Cinzentos", que já havia ameaçado o Papa de morte e que depois encontrou ajuda para fugir e concretizar tal propósito. Naquela época o terrorismo islâmico parecia uma curiosidade, hoje sabemos bem do que é capaz. E, portanto, acredito que essa leitura mínima suficiente esteja madura para ser aceita. Afinal, todas as outras pistas foram investigadas e todas desmoronaram.

 

Com Wojtyla reinando até o limite das forças, abre-se inclusive hoje o debate (que depois teve uma virada clamorosa com Bento XVI) sobre a renúncia do pontífice. Na sua opinião, considera que João Paulo II alguma vez pensou em renunciar? E se sim: por que então ele não renunciou?

 

Acho que ele nunca pensou nisso. Ele tinha uma ideia sacrificial, eu diria martirial, do ministério petrino e aquela ideia traduziu-se na convicção de que não podia ‘descer da cruz’ como certa vez expressou.

 

Nunca uma hesitação?

 

Quando um Papa pouco a pouco menciona sua intenção de renunciar ao papado, uma competição se desencadeia para dissuadi-lo. Sabemos desse desencadeamento nos últimos anos de Pio XII, nos últimos meses de João XXIII, no último ano de Paulo VI e sabemos em detalhes sobre as pressões que Bento sofreu pelos poucos que informou sobre sua intenção. Mas não parece que a comitiva de João Paulo tenha tido que enfrentar essa emergência.

 

Você é um homem de fé: fica incomodado com a renúncia de um pontífice?

 

De maneira alguma. Eu a previ e desejei. Redimensiona a figura papal, mas é um redimensionamento providencial. Para restaurar a unidade cristã, o papado deve diminuir. Seu papel foi agigantado pela história e tornou-se incômodo para o testemunho do Evangelho à humanidade de hoje. Papa emérito é uma palavra nova para um fato novo. Não só sobre isso Bento XVI pareceu mais livre do que João Paulo: também foi mais livre, por exemplo, sobre a moral sexual.

 

Sobre a questão da renúncia, o debate é realmente extenso. Você é um homem manso, mas também teve embates com seus colegas. Vou lhe contestar algo que geralmente é esquecido à margem das disputas teológicas. Os fiéis não ficam chocados com a renúncia?

 

Houve um choque, mas creio mais entre os eclesiásticos do que entre os fiéis. Era uma novidade de época e, portanto, todos nós tivemos um sobressalto. Mas agora não é mais uma novidade e, portanto, a aceitação será muito mais fácil quando outro Papa deixar as chaves que lhe foram confiadas. O Papa é um bispo - o bispo de Roma - e assim como as renúncias dos bispos foram aceitas pelo povo dos fiéis ao longo do último meio século, embora fossem uma novidade, também em um tempo semelhante a comunhão católica assimilará as renúncias papais.

 

O que você lembra dos dias da morte de João Paulo II? Aquele sentimento tão sentido foi induzida pela mídia ou era uma realidade viva?

 

Recordo-os como um momento de grande emoção coletiva. Certamente também orquestrada por movimentos eclesiais e ampliada pela mídia. O próprio lema ‘santo imediatamente’ foi organizado, em particular pelo Movimento dos Focolares. Mas a emoção coletiva como matéria-prima era verdadeira. A mídia amplia e prolonga, mas nada está na mídia que antes não tenha estado na realidade.

 

Você foi jornalista durante toda a sua vida. Por que, diante de uma evidente diminuição da participação popular na vida da Igreja, a figura do papa ainda está tão cercada pela atenção midiática? Há jornalistas que construíram suas carreiras sobre as intrigas do Vaticano…

 

O Papa está crescendo e a Igreja está diminuindo. Pelo menos na mídia e na opinião pública é assim. Do meu ponto de vista - como homem da comunicação de massa - a mudança foi surpreendente, nos cinquenta anos de minha atividade como jornalista, em relação às minhas expectativas: a atenção à figura do papa aumentou e diminuiu aquela pela vivência cristã, pelas Igrejas locais, pelo ecumenismo.

 

Reconheço que aconteceu o oposto do que esperava. A figura do Papa cresce porque ele se casa perfeitamente com as modalidades de comunicação por meio de imagens, que é o sinal dos tempos: ele se beneficia pelo fato de se vestir de branco, ter um papel único e um nome curto: papa, de fato. Ou Francisco. Os nomes são ímãs. Quanto mais curtos, melhor funcionam.

 

Para essa personalização e midiatização contribui um pontificado que alguns consideram divisionista - e chegamos a hoje - como o de Francisco?

 

O Papado mostrou-se capaz de mudanças e essa surpresa está na origem das atenções mundiais. Nos últimos tempos, uma sensação de vertigem atingiu várias vezes o Pontificado Romano. Com a eleição do Papa polonês em 1978, com as balas de Alì Agca em 1981, com a renúncia de Bento XVI e a chegada de Francisco em 2013.

Os plenos poderes conferidos aos Papas em sinal de continuidade garantiam a manutenção da instituição, mas causam ansiedade se passam a um Bispo de Roma que está disposto a renunciar ao Pontificado e a outro que pretende uma reforma profunda, que ele chama de conversão. O Papa que reforma sempre divide. E se põe o Evangelho como motor da mudança, divide duas vezes.

 

Voltando a março de 2013: no Corriere talvez esperassem por outro papa. Você conheceu bem o pontífice argentino e me lembro de seu belo retrato após a eleição. Depois de tantos anos: por que Bergoglio perturba tanto as consciências?

 

A sua revolução tem o seu núcleo na convicção de que o Papa não tem - e não deve mais ter uma função totalizante na Igreja. Francisco se considera parte do todo, não sua síntese. Quando questionado sobre opositores internos, ele disse certa vez: ‘Eles fazem o trabalho deles e eu faço o meu. Continuo meu caminho sem olhar para os lados’ (para o jornal argentino La Nacion, 4 de julho de 2016). Reivindica o direito de ter opiniões pessoais, que todos os papas consideravam proibidas para eles. Mas atenção: Bento XVI já fazia tal afirmação tanto que publicou como Papa obras de teologia, como a trilogia sobre Jesus de Nazaré.

 

Bergoglio é um papa tão distante do trabalho intelectual? Ele não parece um humanista como Wojtyla, um homem com formação até teatral, kantoriana, ou especulativa como Ratzinger.

 

É um homem prático, um pastor. Jesuíta com vocação de pároco. Mas sua capacidade de comunicação verbal, que é extraordinariamente criativa, não deve ser subestimada. Ele é um homem de relação e sua arte da palavra o ajuda muito nesse trabalho relacional. Vimos isso na primavera europeia passada com as homilias improvisadas da manhã. Talvez nunca ninguém tenha mantido tantas pessoas coladas aos vídeos por dois meses seguidos como ele conseguiu.

 

Qual a sua ideia sobre a posição de Bergoglio sobre os movimentos?

 

Os Papas por posição são aliados naturais dos movimentos, como o foram antes das ordens religiosas. Isso pode ser dito historicamente, com a referência ao fato de que ordens e movimentos são reconhecidos e aprovados pelos papas, se apelam aos papas quando eles têm discordâncias com os bispos e os papas sustentam com práxis e votos de especial obediência.

 

Mas isso também pode ser dito na forma de crônica, com referência aos movimentos que garantem presenças de massa nas Jornadas Mundiais da Juventude, nos encontros com os jovens nas viagens papais, nas celebrações e audiências na Praça de São Pedro.

 

O último Papa a ter reservas sobre os movimentos foi Montini, que privilegiava a Ação Católica. Wojtyla foi muito favorável, desde a Polônia. E Bento também. Francisco inicialmente sentia desconfiança e desconfiado havia sido na Argentina, um pouco como Montini. Mas, uma vez eleito, deixou-se convencer pelo fator multidão de que eu falava.

 

Hoje pairam nuvens sobre o futuro da Igreja: como você vê as tensões entre Roma e o episcopado alemão?

 

Essas nuvens continuarão a se adensar sob este pontificado, mas eu estaria inclinado a apostar que a tempestade virá com o próximo Papa. O Sínodo convocado pelos bispos alemães provavelmente irá além das competências ‘recebidos’ por um sínodo nacional e do Papa Francisco não vai aprovar nem condenar, modelo Amazônia, mantendo em aberto a questão que passará em brasa ao sucessor.

 

Se o sucessor for conforme Bergoglio, as novidades alemãs se consolidarão como uma pluralidade de fato, considerada suportável. Mas se o sucessor for rigorista, ele irá endurecerá e poderá gerar um cisma.

 

Qual o papel do pontificado de Bento XVI desempenhou nesses conflitos?

 

Não bom, na minha opinião. Seguindo a política para a Igreja alemã praticada por seu antecessor, tentou salvar o barco, estancando os conflitos que estavam se perfilando e mantendo as questões abafadas. A verdadeira novidade de Francisco foi nomear as questões e colocá-las na pauta.

 

Mas que isso consiga chegar a conclusões compartilhadas, ainda precisa ser visto. Quando é acusado de ser divisionista, está se falando algo sobre as ondulações da superfície, mas não se pesca no fundo: no fundo as divisões estavam todas lá, ele escolheu trazê-las para a superfície, considerando o conflito fecundo.

 

De qual programa governamental o próximo pontífice poderia começar para tentar manter o barco de Pedro unido?

 

O barco permanecerá unido se conseguir legitimar uma diversificação doutrinal e normativa que permita a coexistência de opções mesmo conflituosas. Francisco busca essa diversificação e até a teorizou em Amoris Laetitia, ao afirmar que ‘nem todas as discussões doutrinárias, morais ou pastorais devem ser resolvidas com intervenções do magistério’ e que ‘em cada país ou região se podem buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais’. O programa de governo do próximo Papa deveria começar daí.

 

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