22 Março 2021
“Há tantas coisas que não sabemos”, diz Esther Duflo, e sua frase desconcerta. Desconcerta porque Duflo, com 48 anos, já ganhou todos os prêmios possíveis no campo da economia se dedicando a isso: a desentranhar o que não sabemos e a repensar aquilo que acreditávamos que sabíamos. Isso explica o título do livro que publicou, em 2011, com seu esposo Abhijit Banerjee, que revolucionou as políticas públicas para o desenvolvimento e os levou a receber o Nobel, junto com Michael Kremer, oito anos depois. O título desse livro? Repensar la pobreza: un giro radical en la lucha contra la desigualdad global.
Agora, com outro livro – Buena economía para tiempos difíciles -, a economista francesa, que trabalha no Massachusetts Institute of Technology – MIT, desde 1999, considera que a pandemia de Covid-19 obrigou muitos a ver aqueles problemas sociais que não conseguiam – ou não desejavam – ver. A questão, ponderou, é se agora agiremos para remediá-los.
Para isso, convida-nos novamente a repensarmos o que acreditamos saber. Um exemplo? “Existe uma ideia errônea generalizada de que os pobres são pobres por algo que fizeram e que não devemos ser muito generosos com eles porque ficariam preguiçosos”, disse de Boston, onde vive com Abhijit e seus dois filhos pequenos, e de onde dirige o Jameel Poverty Action Lab. Porque esse é outro de seus traços marcantes: pés no chão, mangas arregaçadas e ideias aplicadas, longe da torre de marfim.
Duflo acredita que a pandemia pode ser uma oportunidade. Não é um clichê. Para os políticos, se explica, para enfim dizer com franqueza a seus representados o que acontece, o que sabem e o que não. E a partir de uma perspectiva mais ampla, para nos olharmos no espelho: “Tomara que esta crise global provocada pela Covid-19 obrigue a nos perguntar o que importa e a pensar o que isto implica para as políticas que devemos adotar”.
A entrevista é de Hugo Alconada Mon, publicada por La Nación, 13-03-2021. A tradução é do Cepat.
Esta pandemia mudou ou reforçou, de alguma maneira, seus pontos de vista sobre a imigração, a desigualdade, a globalização, a disrupção tecnológica, o crescimento e a mudança climática?
A pandemia atuou um pouco como reveladora: muitas das tensões que já estavam presentes em nossa sociedade ficaram mais visíveis, muitos dos problemas aumentaram, como se tivessem sido colocados em um microscópio. Portanto, na maioria das vezes, lamentavelmente, nossas opiniões não mudaram. Ao contrário, os problemas que tínhamos identificado se tornaram ainda mais urgentes. O que esperamos é que o fato de que estes problemas tenham sido revelados pela pandemia também se tornem mais urgentes para todos.
O mais importante é que agora temos diante de nós um claro exemplo de que quando os cientistas ou Bill Gates nos alertam que um desastre está logo na esquina, algumas vezes simplesmente acontece... Nossa esperança, já que tendemos a ver o copo meio cheio, é que lembraremos desta lição e começaremos a lutar seriamente contra a mudança climática.
Seus comentários sobre a expansão do comércio global ressoam fortemente ao ver o que está acontecendo agora por causa da Covid-19. Cito você textualmente: “Aqueles que tiveram a sorte de estar no lugar certo, no momento certo, com as habilidades adequadas ou as ideias corretas, ficaram ricos, às vezes, fabulosamente”. Ao contrário, retorno à citação, “para o resto, foram perdidos postos de trabalho e não foram substituídos por outros”. Como a sociedade pode ajudar todas essas pessoas que os mercados – e, agora, esta pandemia – deixaram para trás?
Você tem toda a razão. A pandemia exacerbou as desigualdades, ao menos dentro dos países, porque as pessoas com trabalhos que podem ser desenvolvidos com um computador se recuperaram muito rápido, ao passo que aqueles que dependiam de interações diretas, como por exemplo os trabalhadores de restaurantes, os comerciantes ou aqueles que trabalhavam em fábricas, perderam em um número maior tanto suas vidas, como seus meios de subsistência, e todo esse setor não se recuperou tão rápido.
O único aspecto positivo, se cabe, é que o impacto inicial da pandemia foi tão generalizado que muitas pessoas que provavelmente nunca pensaram que alguma vez precisariam de ajuda, realmente, necessitaram e, ao menos nos países ricos, a obtiveram.
Em geral, existe uma ideia errônea generalizada de que os pobres são pobres por algo que fizeram, e também de que não devemos ser muito generosos com eles porque ficariam preguiçosos. Inclusive durante a pandemia, o pacote de ajuda foi criticado por correr o risco de desestimular as pessoas a voltar ao trabalho, ainda que muitos estudos demonstraram o contrário. Mas, em geral, acredito que muitas pessoas devem ter aprendido desta experiência que o seguro social não é apenas caridade para aqueles que o merecem menos do que elas: é essencial para enfrentar os riscos que todos assumimos.
Isto pode fazer com que as pessoas estejam mais dispostas a perceber que quando alguém perde seu trabalho devido ao comércio ou a automação, não é mais responsável do que elas próprias foram ao perder seu emprego devido à Covid-19. E todos merecem esse seguro social em um plano de igualdade.
Volto a citar você: “Os ricos podem eventualmente ver que convém defender uma mudança radical para a distribuição real da prosperidade”. Pode explicar? O que propõe?
Tudo o que aconteceu nos Estados Unidos, das eleições presidenciais de novembro até o assalto ao Capitólio, no dia 6 de janeiro, dever ter causado um grande susto em muitas pessoas endinheiradas. E, nesse sentido, vale a pena ressaltar que os alvoroçadores que participaram desse assalto sentiam que defendiam principalmente Donald Trump contra o establishment do Partido Republicano tradicional, não tanto contra os democratas. A sensação de uma traição é mais profunda que a crença errônea de que lhes “roubaram” a eleição.
Alguns dias antes, quando o líder do Senado, o republicano Mitch McConnell, havia se recusado a votar a favor de um pagamento único maior para as pessoas, algumas pessoas escreveram em sua porta “McConnell mata os pobres”. A crise atual do Partido Republicano não se deve só à personalidade de Trump, ocorre também porque há uma ruptura entre uma base partidária que exige que as promessas populistas que lhes anunciaram sejam cumpridas e uma elite que não está disposta a isso.
Durante um tempo, essa elite lidou com essa tensão oferecendo outras coisas que a base também queria, com uma retórica nacionalista e anti-imigrante. Mas isto só durará até certo ponto. No entanto, uma tendência animadora na política estadunidense é que existe um grande apoio popular às políticas econômicas que são boas para as pessoas.
Na Flórida, por exemplo, 60% dos eleitores votaram pelo aumento do salário mínimo. Enquanto isso, as associações empresariais e os líderes republicanos lutam contra esse aumento. Sendo assim, pode ser que essa iniciativa avance ou não, mas ao menos as linhas de batalha agora são traçadas em torno do interesse econômico real - com os trabalhadores contra as empresas -, que é muito mais sensato que as linhas de batalha traçadas em torno de questões de identidade.
E com tal nível de apoio para tais políticas, ao menos um segmento dos ricos entende que devem apoiá-los para preservar a paz social e a capacidade de continuar fazendo negócios. Nunca será um consenso total, claro, mas é possível alcançar o suficiente para avançar e restabelecer certa confiança em que o governo está aí para ajudar os pobres.
Vamos dar outro passo, se concorda: como as ideias expressadas em seu livro mais recente podem nos ajudar a pular o muro da discórdia e da desconfiança que nos divide, não só nos Estados Unidos, mas também na Argentina e em tantos outros países, hoje em dia? Pode nos dar um exemplo?
A ideia central do livro que pode ajudar neste sentido é a de que devemos resistir a reduzir as pessoas à opinião que expressam em um dado momento, por mais violenta ou desagradável que seja essa opinião ou o tom em que a expressam.
Durante muito tempo, os economistas acreditaram que as preferências não devem ser discutidas. São o que são e não podemos mudá-las, só temos que oferecer às pessoas os incentivos adequados para que se comportem de uma determinada maneira, dadas suas preferências. Isto tornaria muito difícil convencer as pessoas, digamos, de que todas as raças são iguais.
Mas, de fato, o que a psicologia e a sociologia nos dizem é que as preferências das pessoas estão longe de estar gravadas em uma pedra e que dependem do contexto de uma maneira muito sutil. Não deveríamos colocar as pessoas na prisão de suas próprias preferências.
Avancemos, então, apoiados nas ideias centrais de seu livro. Se fosse assessora de um presidente, daquele ou daquela que você preferir, o que aconselharia que fizesse ou deixasse de fazer? Além de, conforme você já ressaltou em outras entrevistas, jamais seguir os conselhos dos economistas!
[Sorri]. Provavelmente, aconselharia que habilitasse o maior espaço possível para experimentar políticas públicas e deixar um lugar para “falhar rápido e avançar”. Porque há tantas coisas que não sabemos... E, no entanto, supõe-se que os políticos têm a solução para tudo, precisam projetar tudo com perfeição, como se soubessem tudo, e se suas decisões não saem segundo o planejado, levam a culpa.
A pandemia mostrou esta falência, de maneira brutal, em muitos países...
Isto ficou claro com a Covid-19, sim. O vírus segue evoluindo e nos apresenta novos desafios. Os epidemiologistas fazem previsões que resultam não ser corretas. No entanto, os líderes precisam tomar decisões o tempo todo. Mas em vez de abraçar a incerteza e dizer: “Olhem, estamos fazendo o nosso melhor esforço, mas é possível que tenhamos que mudar de rumo”, estão buscando projetar uma confiança que não podem ter.
Agora nos é dito, por exemplo, que o próprio presidente francês [Emmanuel Macron] lê artigos científicos e que já não precisa se apoiar em seu próprio conselho científico. O resultado é que o público francês agora não confia nem no presidente, nem no conselho científico... É claro, isto é um pouco mais extremo agora, por causa da pandemia, mas em tempos normais, deveria ocorrer o mesmo: os políticos deveriam ser mais transparentes sobre o que sabem, o que não sabem, o que estão testando e o que pode falhar ou ter êxito.
Faço para você a mesma questão que fiz para tantos outros entrevistados: quais são as perguntas que, há muito tempo, deveríamos ter feito e não fizemos? Quais são as perguntas que deveríamos fazer agora?
Acredito que a pergunta central que devemos nos fazer agora é o que faremos para proteger nosso clima e nosso planeta, antes que seja muito tarde. Temos que mudar nossa forma de consumir e de nos comportar. E esta primeira pergunta conduz a outras: o que nos importa? Realmente, interessa-nos tanto consumir mais e mais coisas? Interessa-nos ter carros cada vez maiores? Gerar tanta calefação e ar condicionado, que tenhamos frio no verão e calor no inverno?
Os governos passaram muito tempo assumindo que o crescimento econômico é a única coisa que deveria preocupá-los. Isto levou a decisões políticas desastrosas com a esperança de que retornemos ao caminho do crescimento. Mas o que realmente queremos é felicidade. E o crescimento, ou inclusive a riqueza do país, medida por seu Produto Interno Bruto [PIB], é só uma dimensão!
Como seres humanos, temos muitas outras preocupações, como a saúde, as relações sociais que estabelecemos com outras pessoas, um sentido de propósito... Tomara que esta crise global provocada pela Covid-19 nos obrigue a nos perguntar o que nos importa e a pensar o que isto significa para as políticas que devemos adotar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não deveríamos colocar as pessoas na prisão de suas próprias preferências”. Entrevista com Esther Duflo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU