09 Fevereiro 2021
“É verdade que a ciência conseguiu produzir vacinas em tempo recorde para nos proteger contra a Covid-19, mas há incertezas no horizonte”, escreve José Manuel Sánchez Ron, físico e historiador da ciência espanhol, em artigo publicado por El Cultural, 08-02-2021. A tradução é do Cepat.
Desde que a vida começou sua singradura na Terra, progressivamente foi adotando inúmeras formas, principalmente em escala microscópica, formas que posteriormente, na medida em que se associavam em coletivos multicelulares, geraram espécies mais complexas. Tal singradura começou, aparentemente, apenas 200 milhões de anos depois que a água líquida se estabeleceu em nosso planeta, o que aconteceu há cerca de 4,2 bilhões de anos, tempo suficiente para que se produzisse a aludida explosão de formas de vida. Hoje estamos mais ou menos familiarizados com aquelas manifestações de vida (espécies), fundamentalmente as animais e vegetais, com as quais compartilhamos alguns traços, embora estes possam parecer distantes.
No entanto, essas espécies, e nós com elas, navegamos em oceanos povoados por bilhões e bilhões de outros tipos de seres, como bactérias e vírus, muitos dos quais coexistem com espécies animais. O problema é que em seu afã de se perpetuar, e de se instalar em certas espécies, alguns desses minúsculos organismos - este mundo foi denominado “matéria viral escura”, em clara analogia com a expressão cosmológica - podem ser letais para quem os recebe. É o caso do SARS-CoV-2, que causa em humanos a doença Covid-19.
Ainda hoje se discute a origem zoonótica desse vírus, ou seja, que espécies o abrigava e de onde foi transferido para os humanos: dos morcegos? Dos pangolins (um tipo de mamífero placentário)? ... Identificar a origem é importante pelas pistas que pode oferecer para entender melhor a dinâmica desse coronavírus, mas não menos importante, pelo menos para o futuro, é avançar no conhecimento dos vastos oceanos de patógenos com potencial pandêmico que permanecem escondidos em “depósitos animais”.
Em 2009, tendo em mente a experiência da gripe aviária causada pelo vírus H5N1, que tanto gerou alarme global em 2005, a agência norte-americana USAID fundou um projeto, PREDICT, que visava fortalecer a capacidade global de detecção de vírus zoonóticos capazes de originar pandemias.
Para isso, estabeleceu-se uma “rede de monitoramento” que contava com equipes de colaboradores em 31 países, principalmente na África e na Ásia, locais onde as interações entre animais e humanos são mais intensas e frequentes. Graças ao PREDICT, foram formadas mais de 2.500 pessoas em técnicas de biossegurança, epidemiologia de campo, diagnósticos laboratoriais e modelagem de disseminação de infecções, e foram identificados quase 2.000 novos vírus pertencentes a famílias virais que no passado representavam ameaças aos humanos.
Infelizmente, em 2019, o governo Trump decidiu abolir o projeto, mais um dos "presentes" que este infausto presidente deixou como legado. Poucos meses depois, seria descoberto em Wuhan (China) uma nova cepa desses vírus, a causa da Covid-19.
Não se sabe quantos vírus zoonóticos estão "por aí" que podem ser muito prejudiciais aos humanos, algumas estimativas sugerem que entre meio milhão e um milhão e meio. Mas seja qual for esse número, constituem um perigo. Sabemos que a NASA tem um programa, NEO ("Near-Earth Asteroids"), para detectar asteroides de tamanho significativo cujas trajetórias podem levá-los a colidir com a Terra, algo que, temo, algum dia - espero que muito longe - acontecerá. É de se agradecer que tal projeto exista, mas não menos importante, provavelmente muito mais no curto e médio prazo, é detectar vírus que podem ter consequências como as que a Covid-19 está produzindo.
A humanidade sempre viveu em "eras de incerteza", utilizando uma frase muito apreciada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, mas agora provavelmente somos mais conscientes disso. A ciência pode ajudar a reduzir essas incertezas, mas tem limites em suas capacidades preditivas. Considere, por exemplo, a situação atual. É verdade que a ciência conseguiu produzir vacinas em tempo recorde para nos proteger contra a Covid-19, mas há “incertezas” no horizonte. Uma delas, mencionada recentemente, diz respeito ao tempo decorrido entre a inoculação da primeira e da segunda dose. Em alguns países, no Reino Unido em particular, falou-se em estender esse tempo para até doze semanas, em vez das três ou quatro recomendadas.
Provavelmente, a questão é ter mais doses para vacinar mais pessoas, e não usar parte das já disponíveis na segunda inoculação. É preciso levar em conta dois elementos. O primeiro é que a dose inicial gera um certo número de anticorpos que podem combater o vírus. E o segundo é que o coronavírus, assim como todos os seres vivos, sofre mutações. Sem a existência e o efeito das mutações, a vida terrestre não teria se diversificado como aconteceu ao longo dos aproximadamente 4,5 bilhões de anos de existência da Terra, e certamente não teriam sido produzidas espécies como o Homo sapiens.
Mas se considerarmos a enorme quantidade de coronavírus que circulam ao nosso redor -muitos já hospedados em milhões de pessoas-, e que nesse conjunto se produz todo tipo de mutações, quanto mais tempo ficarmos sem derrotá-los completamente, apenas fragilizando-os, é possível que ocorram mutações que deem lugar a variedades mais resistentes às vacinas atuais (a nova cepa britânica constitui um exemplo de uma nova variedade, embora não esteja claro se é mais nociva do que a inicial).
Trata-se de um efeito bem identificado no uso de antibióticos, cuja eficácia está diminuindo, na medida em que muitas pessoas não completam os tratamentos correspondentes. Diante de tal eventualidade, alguns cientistas manifestam que não se demoraria muito a adequar as vacinas a novas cepas. Mas isso é seguro? E quanto tempo demoraria?
Vivemos, em definitivo, em um mundo incerto. Acostumemo-nos.
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Vírus e incertezas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU