04 Janeiro 2021
Quando o papa pede “vacinas para todos, especialmente para os mais vulneráveis e necessitados de todas as regiões do planeta” – como fez na mensagem natalícia neste ano de pandemia – ele tem em mente realidades concretas, rostos de pessoas de carne e osso: os dos povos mais pobres entre os pobres, especialmente na Ásia, África e América Latina; e dos de quem vive às margens nas sociedades mais ricas, como os migrantes e os refugiados desprovidos de cuidados de saúde, ou como os idosos e as crianças que normalmente não geram renda, mas têm o mesmo direito aos cuidados.
Quem está convencido disso é o padre Augusto Zampini, secretário adjunto do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, que conhece Bergoglio desde o tempo em que ele era cardeal arcebispo de Buenos Aires.
Por ocasião da publicação da nota “Vacina para todos. 20 pontos para um mundo mais justo e saudável” [disponível em espanhol aqui], da comissão vaticana sobre a Covid-19 – coordenada pelo dicastério – em colaboração com a Pontifícia Academia para a Vida, o sacerdote argentino apresenta os conteúdos do documento em uma ótica de equidade e justiça social.
A reportagem é de Gianluca Biccini, publicada por L’Osservatore Romano, 30-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como traduzir concretamente os apelos do pontífice sobre a acessibilidade universal dessas medidas preventivas fundamentais para a saúde?
“As descobertas das vacinas à disposição de todos”: para que o desejo de Francisco não permaneça apenas como um slogan, a Igreja e os cristãos devem estar na linha de frente. De sua parte, as instituições e as empresas farmacêuticas são chamadas a se coordenar no nível nacional e internacional, cooperando para viabilizar as vacinas. E, pelo fato de elas não serem gratuitas, é preciso que sejam consideradas como um bem público, compartilhado, não oneroso, a um preço razoável, que leve em consideração a situação de emergência. Além, naturalmente, de terem que ser seguras e eficazes, mesmo para aqueles que não podem pagá-las. Afinal, estamos sofrendo a tríplice ameaça de crises interconectadas em nível sanitário, econômico e ecológico-social, com graves repercussões nos países mais pobres e vulneráveis, que estão se endividando ainda mais. E isso é desumanizador.
A partir de alguns dados iniciais sobre os planos de vacinação recém-iniciados nos diversos Estados, nota-se que um pequeno percentual da população mundial, a fatia mais rica, já adquiriu mais da metade das vacinas mais eficazes. É essa a “marginalidade farmacêutica” denunciada por Francisco e retomada pela nota?
É isso mesmo. Quando o papa exorta a não deixar que os ‘nacionalismos fechados” nos impeçam de viver como uma verdadeira família humana e a não “colocar as leis do mercado e das patentes acima da saúde”, ele tem diante dos seus olhos as enormes desigualdades que existem em escala planetária. Por isso, ele estimula continuamente os líderes globais a favorecerem uma operação colaborativa e transparente entre Estados, empresas e outras organizações, para que a produção necessária possa ser utilizada simultaneamente em diversas regiões do mundo. Não só isso: considerando todo o “ciclo de vida” – do financiamento à pesquisa, da realização à comercialização, da distribuição à vacinação – cada etapa tem repercussões práticas que podem ser mais bem resolvidas em um espírito de solidariedade e de colaboração extranacional. Até porque, quando são tomadas as ações imediatamente necessárias para enfrentar a pandemia, é importante pensar também nos seus efeitos de longo prazo, para pode se esperar uma “cura” global.
Pode nos dar alguns exemplos?
Basta pensar nos obstáculos de caráter logístico-organizacional para alcançar zonas remotas ou pouco acessíveis. Sabemos como a temperatura é fundamental na conservação, então tentemos imaginar o que significa transportar os estoques mantendo a cadeia do frio e treinar profissionais de saúde no uso de novas tecnologias. Devemos nos perguntar: como fazer para que a vacina chegue às regiões mais pobres? Na América Latina, os bispos estão preocupados com o alto custo, pois são maiores os custos para que a vacina chegue até lá, e por isso são necessárias doações. Em suma, o vírus levanta questões econômicas, políticas e jurídicas, mas acima de tudo mostra quem somos: então, ofereçamos o melhor do nosso lado humano. Só assim poderemos transformar esta crise em uma oportunidade de mudança para construir uma sociedade pós-Covid menos individualista, pelo contrário, altruísta e generosa, na qual possamos ser verdadeiramente “todos irmãos e irmãs”.
O documento da comissão conclui com a identificação de seis diretrizes que contêm o mesmo número de objetivos, acompanhados das ações necessárias para os alcançar. Pode resumi-las?
A nota é um lembrete dos valores que, na linguagem da saúde pública, constituem as referências compartilhadas nas emergências de saúde: respeito pelos direitos fundamentais, redução do sofrimento de quem tem necessidades ou está doente, não discriminação e justa distribuição de benefícios e ônus. Portanto, trata-se acima de tudo de poder expressar avaliações sobre a qualidade, a metodologia e o preço da vacina; e, em segundo lugar, de assegurar um tratamento global que leve em conta as situações territoriais. No documento, fala-se de “sabor local”. Também se reconhece a necessidade de participação e de unir esforços, de consolidar o papel da Igreja no seu compromisso de proteger a dignidade dada por Deus a todos e de pô-la a serviço do “cuidado do mundo”, utilizando as suas diversas vozes de forma criativa: conferências episcopais, redes de saúde e de educação, organizações de caridade, comunidades religiosas.
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Vacinas também para os pobres: a Covid e o papel da Igreja. Entrevista com Augusto Zampini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU