A solidez anterior à pandemia era autoengano. Na incerteza, caminhamos na esperança, atentos e atentas ao inesperado

Diante do fracasso das futurologias do século XX, precisamos recomeçar com esperança, sem certezas. A fraternidade é um caminho

Imagens: Eastfenceimage Zhang | Youtube. Edição: Wagner Fernandes de Azevedo

Por: Patricia Fachin | 07 Dezembro 2020

Em momentos históricos que nos impõem provações, como este que estamos atravessando, com uma pandemia que já matou mais de 1 milhão e 500 mil pessoas em todo o mundo e escancarou as mazelas sociais, econômicas e também espirituais da humanidade, é comum a busca por Deus ser expressa nas seguintes perguntas: "Onde está Deus?", "Por que Ele permite tamanha desgraça, dor e sofrimento?" ou "Por que Deus fica em silêncio diante do mal?". Essas questões marcaram as primeiras reflexões teológicas em março e abril deste ano, quando a pandemia rapidamente havia se espalhado por todo o globo e inúmeras pessoas não puderam realizar os ritos fúnebres para se despedirem de seus mortos. Hoje, dez meses depois, nas quatro semanas do Advento que nos preparam para o Natal, as inquietações sobre a presença de Deus no mundo dão espaço à esperança de que o Senhor vem e há de vir, inclusive em meio à tribulação.

Todos os anos, nesta época, e em especial neste período de quarentena, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, em sua missão de "buscar respostas para os grandes desafios de nossa época, a partir da visão do humanismo social cristão, participando, ativa e ousadamente, do debate cultural em que se configura a sociedade do futuro", tem publicado em sua página eletrônica artigos, ensaios e entrevistas que nos animam, encorajam e desafiam a viver este momento.

 

Cinco dicas para a verdadeira espera

 

Entre esses textos, destaca-se a reflexão do Irmão Émile, da Comunidade de Taizé, em Borgonha, na França, fundada em 1940 e dedicada à reconciliação. Em entrevista à La Vie recentemente, reproduzida no sítio do IHU, ele dá cinco dicas para que a preparação para o Natal seja a verdadeira espera, apesar das incertezas, do medo e da dúvida que nos rondam: vigiar para não mergulhar no torpor do medo; cultivar uma vida de confiança; fazer a experiência da nossa impotência; discernir os sinais dos tempos; e deixar nossa criatividade florescer.

Ao refletir sobre primeira dica, a necessidade de vigiar, Émile chama a atenção para os dois caminhos que podemos percorrer em momentos de profunda adversidade: "perder a fé ou desenterrá-la". O primeiro caminho é não só o mais curto, como o mais fácil. Mas para aqueles que optam pela segunda via, a vigilância da qual nos fala o Evangelho nas leituras que antecedem o que há de vir, é fundamental. "Os textos que lemos no Advento insistem na vigilância, como uma simples fidelidade que mantém o coração pronto para a ação. Vigiar para que o desânimo não nos leve a adormecer como os discípulos no Getsêmani. Não ficar muito impactado e esperar".

Para que os efeitos da crise sanitária global não sejam somente destruidores ou até paralisantes, é preciso avançar em direção à segunda dica: cultivar uma vida de confiança. Muitos podem se perguntar como encontrar a fonte da confiança quando ao nosso redor reina a doença, a miséria, a fome, o desemprego – como todos podem observar em nosso próprio país. Para nos auxiliar nesse cultivo, de modo que nossas ações sejam propositivas e não de prostração diante da realidade, Émile relembra a mensagem do filósofo Paul Ricoeur no encontro realizado em Taizé em 2002: “Não construa sua vida sobre o medo”. Ao dizer isso, explica, "Ricouer queria indicar que, para nos construir, Deus dá algo diferente do medo. É bom aprender o que está acontecendo ao nosso redor, mas também precisamos nutrir uma vida de confiança. Este tempo do Advento pode ser uma oportunidade para aprofundar a vida interior. Cristo nos convida a permanecer na sua Palavra, a enraizar-se nela e a deixá-la germinar em nós. Se olharmos para as raízes hebraicas da palavra 'crer', não se refere tanto a ideias intelectuais quanto a encontrar estabilidade".

 

 

A terceira dica de Émile é elucidativa e possivelmente foi sentida, em maior ou menor grau, em diferentes instâncias da vida, por todos que estão atravessando a crise pandêmica: fazer a experiência da nossa impotência. Como nos diz o Irmão de Taizé, "durante esta nova quarentena, talvez mais do que durante a primeira, experimentamos nossa impotência". Entretanto, apesar das nossas limitações, a crise também "é uma oportunidade de redescobrir que Deus abrirá os caminhos, que o maná nos será dado dia após dia e o que isso significa. Não sabemos como Ele se manifestará, e isso nos obriga a olhar o que se apresenta, a observar o inesperado de sua vinda, ali onde pensávamos saber tudo e estar no controle", assinala.

A quarta dica consiste em discernir os sinais dos tempos e isso não significa somente tentar compreender a desgraça gerada por uma crise sanitária e as limitações políticas para resolvê-la de modo que atenda a todos que necessitam, mas refletir sobre as novas possibilidades que se apresentam diante do caos. Para nos ajudar a discernir sobre o tempo presente, Émile recorda o Papa João XXIII, autor de oito encíclicas, como a Mater et Magistra (Mãe e Mestra) e a Pacem in Terris (Paz na Terra), em seu curto pontificado de meia década. "Quando o Papa João XXIII falou dos sinais dos tempos, nunca pensou na desgraça que atinge a humanidade, mas nas novas possibilidades que se apresentam a nós quando a consciência humana se transforma. Neste momento, há uma brecha se abrindo, uma outra sensibilidade que emerge. O Advento nos convida a ver que os sinais dos tempos não estão do lado do infortúnio ou da Covid, mas de uma consciência que nos impele a adotar novos estilos de vida", acentua.

Ao chamar nossa atenção para a adesão a uma nova forma de vida, Émile relembra o Salmo 84 (85), cantado três vezes ao dia em Taizé, durante o Advento, na espera de que Deus habite em nós: “Vou escutar o que diz o Senhor. O Senhor anuncia a paz”.

 

 

Por fim, a quinta e última dica diz respeito ao que nos compete fazer, guiados pelo amor do abandono de Deus: deixar nossa criatividade florescer. "Deus não está no infortúnio, mas na criatividade que nos dá para transformar o infortúnio em projeto. O Advento é o momento em que a criatividade amadurece. Na vida, sempre existe essa mistura das situações pelas quais passamos e das escolhas que devemos fazer. A criatividade deve ser vivida dentro dessas restrições", aconselha.

Relembrando também os ensinamentos do Irmão Roger, fundador da Comunidade de Taizé e seu Prior até a sua morte em 2005, Émile nos convida a "consentir com a realidade, não para capitular ou resignar-se, mas para não perder as energias vitais na negação da realidade. Alguns perdem energias consideráveis deixando-se enredar em teorias da conspiração e, portanto, são privados da capacidade de agir no mundo real. O Irmão Roger dizia que, para encontrar o olhar de Cristo, é bom consentir: nos próprios limites, nos limites da sua inteligência, da sua fé, mas também nos seus próprios dons, dos quais nascem as forças da criação".

 

Advento: viver com fé a vigília e a espera

 

Mas o que significa viver o Advento, vigiar e esperar pelo que há de vir? O Advento "significa viver a fé como uma vigília, sempre; o tempo do Advento, mais do que um tempo de vigília, é um momento que nos lembra que a vigília, a espera, é uma forma que constitui e é constante da vida do discípulo. Fazer a vigília é viver a fé, ser discípulo", nos lembra Patrick Royannais, padre francês, da diocese de Lyon, em artigo publicado por Baptisés, em 2017, e reproduzido no sítio do IHU.

Acreditar no Senhor que veio, vem todos os dias e ainda há de vir, pontua, "não significa saber coisas sobre Deus. Acreditar não é assumir um conjunto de valores ou saberes. Pelo contrário, acreditar é aceitar viver com as mãos vazias, estendê-las como mendigos, para receber, para esperar de Deus". Ao invés de nos entregarmos ao abandono do amor de Deus, adverte, "fizemos da fé um sistema de pensamento, um sistema social e político, um código moral, de valores. Em vez disso, é preciso a vigília. A fé não é o que possuímos, mas o que precisamos esperar; fé é esperar e não ver, não possuir".

Em 2011, ao refletir sobre a primeira semana do Advento, em artigo publicado na página do IHU, o sacerdote Raymond Gravel (1952-2014), que atuou no Quebec, Canadá, nos alertava não só sobre a necessidade de "estar vigilantes para despertar os demais", mas sobre a espera, que se realiza de dois modos. "A nossa espera é, ao mesmo tempo, contemplativa e ativa. Quando é contemplativa, voltada para outro diferente de nós, chama-se esperança. Quando se põe em obra, chama-se vontade", diz. Portanto, a vigília atenta ao tempo presente exige que estejamos despertos e "deve sempre ser nova, se quisermos que o Advento não seja uma repetição dos Adventos precedentes".

Vigiar, como nos ensina o Evangelho de Marcos (13,37) ao reproduzir as palavras de Jesus aos discípulos no Monte das Oliveiras, "Vigiem e fiquem alertas, pois vocês não sabem quando chegará a hora", tem dois sentidos: o de espera passiva e o de espera ativa. "Esperar passivamente, sentados numa igreja, que Cristo venha mudar alguma coisa no mundo, é utópico e ilusório... A gente pode aguardar a vida toda e nunca acontecerá nada. Há 2000 anos, no entanto, têm-se cristãos que, dessa maneira, estão vigilantes. Velar no sentido de reconhecer um evento já começado, já chegado. Isso nos impulsiona a agir; leva-nos a descobri-lo. Esperar alguém que está já lá é procurar conhecê-lo, encontrá-lo. Isso me torna ativo, vigilante e atento. A gente se sente preocupado na espera; vigia-se atentamente. É este segundo sentido que se deve dar ao verbo vigiar no Evangelho de Marcos e é esta espera ativa que está em questão nos textos bíblicos de hoje e ao longo de todo o Advento", sublinha.

 

 

Em "Saber Vigiar", ao comentar o Primeiro Domingo do Advento em 2016, Maria Cristina Giani, Missionária de Cristo Ressuscitado, oferece uma resposta à pergunta "O que temos que vigiar?": "O que temos que vigiar é que não nos passe despercebida a vida que já está correndo pelas nossas veias, relações, famílias, comunidades, cidades e que tem a força de nos recriar desde dentro. Por isso vigiar é perceber dentro de nós que gritos carregamos, que feridas temos ainda abertas, que perdão precisamos pedir ou oferecer, para assim permitir que Deus se faça mais presente e seja um novo presente para cada um/a. Mas a proposta que Jesus faz é que alarguemos nosso coração ao mundo todo, e que em nós também ecoem 'as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem' (GS 1)".

Em outro artigo, publicado em dezembro de 2013 no sítio Réflexions de Raymond Gravel e reproduzido no sítio do IHU, comentando as leituras do 2º Domingo do Advento, Gravel nos fala do Advento como tempo de conversão e reorientação a partir da leitura dos textos bíblicos. "Se o Advento é um tempo de conversão, isto é, um tempo para reorientar o coração para adotar atitudes de serviço, de acolhida do outro e de misericórdia para com os machucados da vida, penso que os textos bíblicos são propícios para isso: a primeira leitura (Is 11,1-10) nos convida a esperar um mundo onde a justiça será restabelecida e onde a paz reinará. A segunda leitura (Rm 15,4-9) nos exorta a ser misericordiosos para com os excluídos da sociedade e da Igreja por causa da esperança que nos habita, e o Evangelho (Mt 3,1-12) nos pede para expressar a nossa conversão em gestos concretos, atitudes verdadeiras e sinceras em relação aos nossos compromissos de crentes e de cristãos".

A noite escura, como a que vivemos com a pandemia de Covid-19 e todos os seus efeitos sanitários, sociais, econômicos e políticos, que nos lembrou que vivemos na incerteza, é sempre a medida da nossa fé, nos lembra Goffredo Boselli, monge italiano e especialista em liturgia, em artigo publicado no sítio do Mosteiro de Bose e reproduzido pelo IHU em 2016, mas atual para 2020. “Vigiar neste Advento será para nós permanecer fiéis na noite, vigiando para não transformar a pequena chama da nossa fé em um sol brilhante que cega a todos. Que a noite seja sempre a medida da nossa fé, porque, se cedermos à tentação de querer ver e saber tudo, não viveremos mais no espaço de fé, mas das certezas, e não seremos mais fiéis.”

 

Vigiai, o oposto da negligência

 

A palavra "Vigiai!", a qual nos ordena Jesus, pode ser compreendida em vários sentidos, como "cuidar com interesse todos e tudo", "reconhecer o valor de cada pessoa individual e de cada relação", e "permitir que o futuro entre em nós", mas o seu exato oposto é a negligência. "O Advento é o tempo do homem e da mulher que lutam contra o espírito da negligência que se manifesta de muitos e diversos modos: como indiferença e insensibilidade para com as pessoas, como superficialidade nas relações, desinteresse em relação às situações e aos momentos, inconsciência do peso das palavras e do valor da linguagem, descuido em relação aos objetos, desatenção aos lugares", pontua. 

Vigiai também "contém dentro de si toda a intensidade de um imperativo" porque Jesus "dá aos seus discípulos e a nós um mandamento, e diz: 'Até o meu retorno, que o modo de vocês serem fiéis e que o modo de vocês estarem no mundo sejam um vigiar, sejam um esperar-Me na noite'". Segundo Boselli, a ordem de Jesus indica que é Ele "quem institui a noite como o tempo e o luar da nossa fé. Por isso, nós, cristãos, somos fiéis na noite não porque o mundo em que vivemos é apenas trevas, apenas mal e apenas pecado, mas porque o Senhor quis nos colocar na noite e não em plena luz do dia. Não fomos nós que escolhemos a difícil condição de ser fiéis na noite. Para crer na noite, o Senhor nos deu a única coisa necessária para quem está no escuro, uma lâmpada: 'A tua palavra é lâmpada para os meus passos' (Sl 119, 105)".

Palavras como "Vigiai!", assegura, "quando ressoam, têm a capacidade de dar vida a um mundo, desenhar horizontes, reevocar imagens e sentimentos, mas também medos e esperanças. 'Vigiai' ressoa no exato momento em que, ao nosso redor, a natureza, exausta pelos frutos, adormece no sono do inverno [no hemisfério Norte], e os dias veem diminuir a luz e crescer a noite. Não por acaso é nestes dias que a Igreja começa a liturgia do Advento, os dias mais escuros do ano e, portanto, dias da longa vigília. Estes são os dias nos quais a luz é desejada e invocada mais do que nunca, até o Natal, que, tradicionalmente, é o dia em que o Sol e a sua luz voltam a vencer as trevas".

Para Boselli, reconhecer o Advento "significa compreender que, em todas as coisas, há uma espera, cada ser contém em si um futuro, cada ser vivo espera uma vinda. Em tudo isso, inscreve-se a espera de nós, cristãos, que invocamos o Vindouro, fazendo-se voz de todas as criaturas: 'Maranatha! Vem, Senhor Jesus!'. Humanos, animais, criaturas animadas e inanimadas, tudo e todos esperam, tudo e todos gemem na espera. Nada e ninguém é privado de espera". Por isso, adverte, "entrar no espírito do Advento não significa simplesmente entrar na igreja para fazer ritos seculares, escutar leituras bíblicas e orações antigas, mas, muito mais em profundidade, significa ter acesso a uma dimensão do espírito que nos pertence. Não há vida plena onde não há capacidade e vontade de vigiar".

Como nos diz Goffredo Boselli, é preciso "cantar Rorate cœli desuper (chovam, céus do alto)", que "significa gritar ao céu invocando dele aquilo que não podemos nos dar aqui embaixo. Significa reconhecer que cada ser humano é habitado por um desejo tão profundo que a terra não pode saciar. Rorate cœli desuper é cantado somente por aqueles que têm a humildade de admitir que não só não se pode dar tudo, mas também que o essencial que nos fazer viver, nós o recebemos, certos de que a única salvação é a vida de um outro, de um Outro. Sabemos que o passado não no-la deu, compreendemos que o presente é totalmente incapaz de no-la dar, então a esperamos no futuro e, invocando-o, atraímo-la a nós. 'O futuro entra em nós, para se transformar em nós muito antes que aconteça' (R. M. Rilke, “Cartas a um jovem poeta”, 12 de agosto de 1904)".

 

 

 

 

Medo, incerteza e o despertar da consciência

 

A insegurança, o medo e, especialmente, a incerteza que circunda a vida humana foram e continuam sendo temas de reflexão entre os intelectuais durante a quarentena. Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale e reproduzido pelo sítio do IHU, constata que "fomos atingidos pela pandemia, mas também houve uma epidemia de medo". Nem o imenso aparato tecnológico e científico construído pela humanidade nas últimas décadas impediu o despertar do medo. "Apesar da modernidade do nosso mundo hiperconectado, a humanidade continua sendo muito, muito frágil. E medos nos assombram como sempre”, ressalta o historiador Francisco Martínez Hoyos, em artigo publicado no La Vanguardia e reproduzido na página eletrônica IHU.

O rabino italiano Benedetto Carucci Viterbi, em entrevista concedida ao Corriere della Sera e reproduzido pelo IHU, menciona que no ânimo dos homens parece "ser possível discernir confusão, medo do futuro, desorientação: uma sensação de termos sido exilados de uma realidade conhecida para outra desconhecida e inesperada. É uma condição nova, na qual os parâmetros certos e os pontos de referência parecem ter desaparecido. Ou, no mínimo, parece ter desaparecido aquela certeza no domínio - da própria vida, do mundo, da natureza - que parecia adquirida, com uma boa dose de presunção, até às vésperas da pandemia".

A descoberta da fragilidade humana não é um resultado inteiramente negativo, observa. "A fragilidade humana é portadora de reflexão e pode nos propiciar um olhar diferente sobre a vida: reconhecê-la nos permite compreender a existência de uma perspectiva mais saudável e nos abre para a capacidade de transformação. A aparente solidez anterior à pandemia era o grande autoengano de que tudo está seguro, tudo é compreensível, tudo está em seu lugar; e se não estiver, certamente seremos capazes de arrumar tudo. Mas recompor os fragmentos da frágil realidade exige paciência e empenho, não certezas".

O psiquiatra italiano Vittorino Andreoli compartilha do mesmo diagnóstico, segundo expressou em artigo publicado também no Corriere della Sera e reproduzido pelo sítio do IHU. "Esta é a sociedade do medo. Nossos dias hoje são cadenciados pelo medo e o medo gera violência, nos paralisa". Para além da crise pandêmica, comenta, "o que preocupa é a política que vive do medo dos homens. Fez dela o seu negócio". Para sair dessa condição, recomenda, "o homem assustado precisa de alguém que o escute, de uma voz, alguém em quem possa confiar. Juntos, a vida é mais humana". Ele também lamenta e chama a atenção para a existência de "um narcisismo exasperado", que nos leva a vivermos mal. "Por isso, acumulamos raiva, mal-estar, frustração. Existe uma raiva interna que precisa ser gerenciada. Quando sai por acumulação, produz violência". Em contraposição à raiva, que gera destruição, Andreoli sugere o cultivo da alegria, da paixão e da vontade. "A alegria é um sentimento belíssimo. Todo mundo fala sobre felicidade, mas a felicidade diz respeito ao eu. A alegria é um sentimento compartilhado, diz respeito ao nós. (...) A paixão. A paixão é o que dá cor à nossa vida. (...) A vontade é um ato de energia, mostra o desejo que você tem de continuar: serve para superar um obstáculo, para enfrentar desafios impossíveis". E nos desafia: "A vida se expressa vivendo nos outros. Temos que construir a era do 'nós'”.

Em "Um festival de incerteza", publicado pela editora Gallimard e reproduzido na página do IHU, o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin assegura que "todas as futurologias do século XX que previam o futuro com base nas correntes que atravessavam o presente fracassaram". Apesar disso, destaca, "continuamos a prever 2025 e 2050 mesmo que sejamos incapazes de compreender 2020". Ao invés de querer prever o futuro, Morin, que ao longo dos seus 99 anos já viu inúmeras catástrofes e desilusões na história da humanidade - muitas em nome da emancipação do ser humano -, nos convida a estarmos atentos ao inesperado. "A experiência das irrupções do inesperado na história não penetrou nas consciências. A chegada do imprevisível era previsível, mas não sua natureza. Daí minha máxima permanente: 'espere pelo inesperado'”.

Por enquanto, menciona, "não sabemos até quando, nem até que ponto, o confinamento nos submeterá a proibições, restrições, racionamentos. Não sabemos quais as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições causadas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, ou uma mistura dos dois: caminhamos na direção a novas incertezas".

O crescimento e a multiplicação exponencial do conhecimento no último século também "ultrapassam a capacidade de nos apropriarmos deles; lançam, sobretudo, um desafio para a complexidade: como confrontar, selecionar, organizar os conhecimentos de forma adequada, ao mesmo tempo religando-os e integrando as incertezas. Para mim, isso revela mais uma vez a insuficiência do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que é ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a importante revelação dos impactos que sofremos é que tudo aquilo que parecia separado está conectado, porque uma catástrofe sanitária envolve integralmente a totalidade de tudo o que é humano".

Apesar de já ter vivido quase um século, Morin ainda não viu a experiência do inesperado penetrar integralmente na consciência da humanidade, mas manifesta esperança diante da crise pandêmica de Covid-19. "Espero que a excepcional e mortífera epidemia que vivenciamos nos dê a consciência não apenas de que somos não apenas parte integrante da inacreditável aventura da Humanidade, mas também que vivemos em um mundo ao mesmo tempo incerto e trágico. A convicção de que a livre concorrência e o crescimento econômico são panaceias sociais escamoteia a tragédia da história humana agravada por essa convicção. A loucura eufórica do trans-humanismo leva ao paroxismo o mito da necessidade histórica do progresso e do controle humano não somente na natureza, mas também de seu destino, prevendo que o homem acederá à imortalidade e controlará tudo pela inteligência artificial. Somos jogadores/joguetes, possuidores/possuídos, poderosos/fracos. Mesmo que possamos retardar a morte por envelhecimento, jamais poderemos eliminar os acidentes mortais nos quais nossos corpos serão esmagados, não poderemos jamais nos livrar das bactérias e dos vírus que sem cessar se transformam para resistir aos medicamentos, antibióticos, antivirais e vacinas".

A crise civilizacional na qual estamos imersos precisa nos levar à consciência de "perceber nossas carências de solidariedade" e a "intoxicação do consumismo", de "refletir sobre uma política de civilização", de nos "revelar o enorme buraco negro que existe em nossa inteligência, fato este que torna invisíveis as evidentes complexidades do real", sugere. Este momento crítico vivido pela humanidade, resume, "deveria, sobretudo, abrir nossas mentes, há bastante tempo reduzidas ao imediato, ao secundário e ao frívolo, para o essencial: a importância do amor e da amizade para nosso florescimento pessoal, para a comunidade e para a solidariedade de nossos 'eus' nos 'nossos', para o destino da Humanidade, dentro da qual cada um de nós é uma mera partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento mental".

 

A fragilidade e o desafio da fraternidade

 

Entre as constatações e aprendizados deste ano, Bianchi também destaca que a nossa fragilidade e vulnerabilidade, evidentes diante do novo coronavírus, devem nos conduzir ao "empenho pela fraternidade e sororidade, isto é, assumir uma responsabilidade que nos torna cuidadores uns dos outros". Em artigo publicado recentemente na página eletrônica do IHU, ele diz: "Frédéric Boyer escreveu com razão: 'A liberdade, sem a consciência de ter que compartilhá-la com o outro, torna-se violência. E a igualdade, sem a consciência de que é principalmente para o outro, torna-se solidão mortal. A fraternidade é a mais exigente, a mais urgente, pois diz respeito à nossa condição humana e aos seus limites. Ser humano significa reconhecer o outro como irmão ou irmã'".

Citando Morin, Bianchi reitera a centralidade da fraternidade para garantir dois dos valores universais da humanidade. "Edgar Morin também nos lembra que 'a liberdade pode ser instituída e a igualdade imposta. A fraternidade, por outro lado, não se estabelece por lei. É fruto de uma experiência pessoal de solidariedade e responsabilidade. Sozinha, a liberdade mata a igualdade e a igualdade imposta destrói a liberdade. Só a fraternidade permite manter a liberdade, porém continuando a luta para suprimir as desigualdades'”.

 

 

 

Neste momento de incerteza, vigilância e esperança, Bianchi recorre à recente encíclica Fratelli Tutti, publicada pelo Papa Francisco em outubro deste ano, que nos convida à fraternidade. "Liberdade e igualdade dizem respeito à esfera dos direitos e, mais ainda, dos direitos do indivíduo, enquanto a fraternidade é um valor intrínseco da convivência, da comunidade. O Papa Francisco, com a sua recente encíclica Fratelli Tutti, pediu a todos e a cada um o que é necessário para nos salvar juntos: a fraternidade", afirma.

Para avançarmos nessa direção, superando as disputas políticas, econômicas e sociais que marcam os Estados nacionais, publicamos a seguir a Encíclica Fratelli Tutti e também de algumas entrevistas e artigos publicados no sítio do IHU, como contribuição para o debate público neste momento de incerteza, mas também de esperança em dias melhores.


Artigos sobre a Fratelli Tutti

 

Entrevistas sobre a Fratelli Tutti