21 Dezembro 2020
"A nova 'revolta da vacina', que se anuncia bruta, não é, portanto, obra apenas da burrice, como também não é obra apenas de Bolsonaro, do bolsonarismo ou do ressentimento contra as 'elites'. Ela, se acontecer, será obra, sobretudo, da profunda crise ideológica que é a característica mais saliente disso que muitos chamam de Pós-modernidade", escreve Luiz Carlos de Oliveira e Silva, pesquisador em Propriedade Industrial no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, em artigo publicado por Portal Disparada, 18-12-2020.
1. Deu no jornal: “Já são 22% os que temem vacinação”. O senso comum tende a ver nesse fenômeno apenas burrice, o que dá mostras, a meu ver, de ignorância acerca do que é o ser humano. Minha tese é a seguinte: o problema da suspeita acerca da vacina, antes de dizer respeito a uma pretensa burrice, diz respeito, mais profundamente, isto sim, a uma característica essencial do ser humano, que é a de todos nós estarmos submetidos a um sistema de crenças. É disso que se trata, de sistema de crenças e não de burrice.
2. O sistema de crença enforma o que se costuma chamar de concepção de mundo. Não há comunidade humana na qual não haja uma ou várias concepções de mundo. Quanto mais complexa for a formação social, mais concepções de mundo haverá em seu seio; quanto menos complexa, menos concepções de mundo… São as concepções de mundo que nos situam no mundo, já que os seres humanos são essencialmente desorientados. Isto significa dizer que é da “natureza” do ser humano não ter uma determinação natural a orientar a nossa ação. Reside exatamente nessa condição a nossa diferença essencial frente aos demais seres vivos.
3. (O fato mesmo de ter havido sobre a Terra uma história humana, distinta da história natural, comprova que os seres humanos agiam livres da determinação natural. Caso a natureza orientasse a nossa ação – como acontece com todos os demais seres vivos – não teria havido uma história humana.)
4. O mito do Gênesis dá conta da diferença essencial entre os seres humanos e os demais seres vivos de modo claro e eloquente. Segundo o mito, o fenômeno humano surge com a expulsão do Jardim do Éden – isto é: da expulsão da determinação natural – ao passo que todos os demais seres vivos permaneceram sob a tutela da Natureza. Com a expulsão do Jardim do Éden, da determinação natural, os seres humanos foram condenados a “comer o pão como o suor do rosto”. Isto significa dizer que nós somos seres que, em alguma medida, mediante o trabalho consciente, se autoproduzem. (O trabalho humano é em tudo distinto da ação “mecânica”, sempre igual a si mesma, dos demais seres vivos – do que resulta termos uma história humana, ao passo que eles têm apenas uma história natural.)
5. A natureza é o sujeito da ação dos demais seres vivos, enquanto que a ação dos seres humanos, quase sempre, encontra-se livre da determinação natural. Condenados a comer o pão com o suor do nosso rosto, condenados estamos à liberdade. (Liberdade aqui tem um sentido, digamos, “negativo”, por significar “livre de…” e não necessariamente “livre para…”)
6. Somos seres naturais, que vivem na natureza, cuja ação, contudo, não se encontra determinada por ela. Somos seres naturalmente influenciados pela natureza, mas não determinados por ela: reside aqui a nossa essência. Por sermos seres essencialmente livres – isto é: livres da determinação natural –, nós somos seres essencialmente desorientados. Não há nenhuma orientação essencial a nos guiar –, mas como viver sem orientação?
7. As concepções de mundo foram a resposta que os seres humanos encontraram para a “expulsão do Paraíso”, para compensar a nossa desorientação essencial. As concepções de mundo foram um dos tantos artefatos provenientes do suor do nosso rosto. Toda e qualquer concepção de mundo está baseada num sistema de crenças, que dá sentido ao mundo e à existência humana e, assim, orienta a nossa ação. Para que as concepções de mundo e os sistemas de crença cumpram a sua função é mandatório que eles sejam tomados como verdade adequada à realidade dos fatos.
8. A Pós-modernidade surge, dentre outras coisas, com o fenômeno histórico da perda de prestígio da “ideologia do progresso”. Com isto isso, abriu-se uma profunda crise de hegemonia na esfera ideológica. A concepção de mundo derivada do prestígio da ciência e da tecnologia – a concepção hegemônica na Modernidade, que se tornou a concepção de mundo das “elites” – voltou a ser contestada como jamais o fora desde o Renascimento.
9. Para um contingente expressivo da população brasileira, a concepção de mundo que consagra a vacina-como-um-bem-evidente-em-si é a concepção de mundo das elites depravadas e corruptas, dos inimigos dos “homens de bem”. A crise ideológica da Pós-modernidade, ao incentiva a denúncia do “mundo das elites”, incentiva a suspeita de tudo o que possa estar associado à Modernidade e às suas conquistas.
10. A nova “revolta da vacina”, que se anuncia bruta, não é, portanto, obra apenas da burrice, como também não é obra apenas de Bolsonaro, do bolsonarismo ou do ressentimento contra as “elites”. Ela, se acontecer, será obra, sobretudo, da profunda crise ideológica que é a característica mais saliente disso que muitos chamam de Pós-modernidade.
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A ‘revolta da vacina’ pós-moderna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU