31 Outubro 2020
Francisco entrevistado pelo diretor da agência AdnKronos, Gian Marco Chiocci, fala sobre a reforma da Cúria, a relação com Bento XVI, seu possível sucessor, a sua solidão: “Sinto-me só porque quem deveria colaborar não colabora”.
A reportagem é de Francesco Antonio Grana, publicada por Il Fatto Quotidiano, 30-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Eu também penso naquilo que vai ser depois de mim. Eu em primeiro lugar falo sobre isso. Recentemente, no mesmo dia, fiz exames médicos de rotina. Os médicos me disseram que um desses poderia ser feito a cada cinco anos ou a cada ano. Eles tendiam para o quinquênio. Eu disse: ‘Façamo-lo ano a ano, nunca se sabe’.”
É o próprio o Papa Francisco que volta a falar novamente sobre a questão do seu sucessor. Um tabu que ele mesmo quebrou várias vezes, falando também sobre a possibilidade da renúncia, quando as forças físicas vierem a faltar. Além disso, é inevitável que o primeiro pontífice da história recente eleito com um papa emérito que, como ele, vive no Vaticano aborde com franqueza a questão da sua sucessão.
Bergoglio falou sobre isso em uma longa entrevista com o diretor da AdnKronos, Gian Marco Chiocci, com um olhar também sobre os últimos escândalos financeiros da Santa Sé.
“Não acho que possa haver – afirma o papa – uma única pessoa, dentro e fora daqui, contrária a extirpar o joio da corrupção. Não existem estratégias particulares. O esquema é banal, simples: seguir em frente e não parar. É preciso dar passos pequenos, mas concretos. Para chegar aos resultados de hoje, partimos de uma reunião há cinco anos sobre como atualizar o sistema judiciário. Depois, com as primeiras investigações, eu tive que remover posições e resistências, passamos a escavar as finanças, temos uma nova cúpula no IOR. Em suma, tive que mudar muitas coisas, e muitas outras vão mudar muito em breve.”
Um sinal eloquente de que, para além dos escândalos, a obra de reforma desejada e implementada por Francisco seguirá em frente. Na entrevista, Bergoglio não esconde que a chamada questão moral nos Sagrados Palácios é um “mal antigo que se transmite e se transforma ao longo dos séculos”, mas que cada um dos seus antecessores tentou erradicar.
“Infelizmente, a corrupção – acrescenta o papa – é uma história cíclica, repete-se. Depois, vem alguém que limpa e arruma, mas depois se recomeça à espera de que outro venha pôr fim a essa degeneração.”
Para Francisco, “a Igreja é e continua forte, mas o tema da corrupção é um problema profundo, que se perde ao longo dos séculos. No início do meu pontificado, fui me encontrar com Bento XVI. Ao passar o bastão, ele me deu uma caixa grande: ‘Aqui dentro está tudo – disse ele –, estão as atas com as situações mais difíceis. Eu cheguei até aqui, intervi nesta situação, afastei estas pessoas e agora… cabe a você’. Pois bem, eu não fiz outra coisa que pegar o bastão do Papa Bento, continuei a sua obra.”
A referência é ao famoso dossiê do escândalo Vatileaks 1, redigido pelos três “cardeais 007” indicados por Ratzinger: Julián Herranz, Jozef Tomko e Salvatore De Giorgi.
Bergoglio também desmente todas as reconstruções que o descrevem em perene oposição com o seu antecessor direto.
“Bento – conta Francisco – é um pai e um irmão para mim. Por carta, eu lhe escrevo ‘filial e fraternamente’. Vou vê-lo com frequência e, se recentemente eu o vi um pouco menos, é apenas porque não quero cansá-lo. A relação é realmente boa, muito boa, concordamos sobre o que fazer. Bento é um bom homem, é a santidade em pessoa. Não há problemas entre nós. Além disso, cada um pode dizer e pensar o que quiser. Conseguiram até contar que havíamos brigado, Bento e eu, sobre qual túmulo era meu e qual era dele.”
O papa também recorda que “a Igreja sempre foi uma casta meretrix, uma pecadora. Digamos melhor: uma parte dela, porque a grande maioria vai em sentido contrário, busca o caminho certo. Mas é inegável que personagens de vários tipos e densidades, eclesiásticos e muitos falsos amigos leigos da Igreja, contribuíram para dissipar o patrimônio móvel e imóvel não do Vaticano, mas dos fiéis. O Evangelho me chama a atenção quando o Senhor pede para escolher: ou você segue a Deus ou segue o dinheiro. Foi Jesus quem disse isso, não é possível ir atrás de ambos.”
E lembra o que a sua avó, a quem ele era muito ligado, sempre lhe dizia: “Ela, que certamente não era uma teóloga, sempre dizia a nós, crianças, que o diabo entra pelos bolsos. Ela tinha razão”.
Assim como tinha razão aquela senhora idosa que o então cardeal Bergoglio encontrou em uma favela de Buenos Aires no dia da morte de São João Paulo II: “Eu estava em um ônibus, indo para uma favela, quando me chegou a notícia que estava dando a volta ao mundo. Durante a missa, pedi para rezar pelo falecido papa. Depois da celebração, uma mulher muito pobre se aproximou de mim, pediu informações sobre como se elegia o papa, eu lhe contei sobre a fumaça branca, sobre os cardeais, sobre o conclave. Ao que ela me interrompeu e disse: ‘Escute, Bergoglio, quando você se tornar papa, lembre-se em primeiro lugar de comprar um cachorrinho’. Eu lhe respondi que dificilmente me tornaria papa, mas perguntei, caso me tornasse, por que deveria pegar o cachorro. ‘Porque toda vez que você for comer – foi a resposta dela – dê primeiro um pedacinho a ele. Se ele ficar bem, então continue comendo’. Obviamente era um exagero, mas dava conta da ideia que o povo de Deus, os pobres entre os mais pobres do mundo, tinha da casa do Senhor atravessada por feridas profundas, brigas internas e malversações”.
Muitas vezes, especialmente nos últimos meses, Francisco foi descrito como um homem profundamente solitário, cercado pela Cúria Romana. E é ele mesmo quem fala disso: “Se eu estou sozinho? Eu pensei nisso. E cheguei à conclusão de que existem dois níveis de solidão: alguém pode dizer: ‘Sinto-me só porque quem deveria colaborar não colabora, porque quem deveria se sujar as mãos pelo próximo não o faz, porque não seguem a minha linha’ ou coisas assim, e esta é uma solidão, digamos, funcional. Depois, há uma solidão substancial, que eu não sinto, porque encontrei muitas pessoas que se arriscam por mim, que põem a sua vida em jogo, que lutam com convicção porque sabem que estamos no lado certo e que o caminho tomado, apesar de mil obstáculos e resistências naturais, é o certo. Houve exemplos de delitos, de traições, que ferem quem crê na Igreja. Essas pessoas certamente não são freiras de clausura”.
Bergoglio não sabe se o seu pontificado vencerá a batalha das reformas que lhe foram indicadas pelas congregações gerais dos cardeais, realizadas após a renúncia de Bento XVI e antes do conclave que o elegeu.
“Eu sei – especifica o papa – que devo fazê-la, fui chamado para fazê-la. Depois será o Senhor quem dirá se fiz bem ou se fiz mal. Sinceramente, não sou muito otimista, mas confio em Deus e nos homens fiéis a Deus. Lembro-me de quando estava em Córdoba, eu rezava, confessava, escrevia. Um dia, fui à biblioteca procurar um livro e me deparei com seis ou sete volumes sobre a história dos papas, e mesmo entre os meus antiquíssimos antecessores encontrei alguns exemplos que não são propriamente edificantes.”
Aos opositores, ele responde: “Criticar o papa não significa ser contra ele”. E acrescenta: “Não diria a verdade se dissesse que as críticas te deixam bem. Ninguém gosta delas, especialmente quando são um tapa na cara, quando fazem mal, se ditas de má-fé e com malignidade. Com igual convicção, porém, digo que as críticas podem ser construtivas, e então eu as assumo todas, porque a crítica leva a me examinar, a fazer um exame de consciência, a me perguntar se eu errei, onde e por que eu errei, se fiz bem, se eu fiz mal, se poderia fazer melhor. O papa escuta todas as críticas e depois exercita o discernimento, para entender o que leva ao bem e o que não. Discernimento que é a linha-guia do meu caminho, acima de tudo, acima de todos. E aqui seria importante uma comunicação honesta para dizer a verdade sobre o que está acontecendo dentro da Igreja. É verdade que, depois, se tenho que encontrar inspiração na crítica para fazer melhor, certamente não posso me deixar levar por tudo aquilo de pouco positivo que escrevem sobre o papa”.
E, quando perguntado se tem medo, ele responde: “E por que eu deveria ter? Não temo consequências contra mim, não temo nada, eu atuo em nome e a pedido de nosso Senhor. Sou um inconsciente? Falta-me um pouco de prudência? Não saberia o que dizer, o instinto e o Espírito Santo me guiam, o amor do meu maravilhoso povo que segue Jesus Cristo me guia. E, além disso, eu rezo, rezo muito. Todos nós neste momento difícil devemos rezar muito pelo que está acontecendo no mundo”.
As últimas reflexões são sobre o retorno dos contágios. Depois de três semanas sem o habitual beija-mão dos fiéis, Francisco decidiu novamente realizar as Audiências gerais das quartas-feiras apenas em streaming, na biblioteca privada do Palácio Apostólico.
“São dias de grande incerteza”, admite o papa. “Eu rezo muito, estou muito, muito, muito perto de quem sofre, estou perto com a oração de quem ajuda as pessoas que sofrem por motivos de saúde e não só.”
E, sobre a hipótese de um novo confinamento também na Itália com a possibilidade de as igrejas serem fechadas novamente, como ocorreu na Páscoa, ele especifica: “Não quero entrar nas decisões políticas do governo italiano, mas conto uma história que me deu um desprazer: soube de um bispo que afirmou que, com esta pandemia, as pessoas se ‘desabituaram’ – ele disse exatamente assim – de ir à igreja, que não voltarão mais a se ajoelhar diante de um crucifixo ou a receber o corpo de Cristo. Eu digo que se essas ‘pessoas’, como o bispo as chama, vinham à igreja por hábito, então é melhor que fiquem em casa mesmo. É o Espírito Santo quem chama as pessoas. Talvez, depois desta dura prova, com estas novas dificuldades, com o sofrimento que entra nas casas, os fiéis sejam mais verdadeiros, mais autênticos”.
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Francisco: “Sinto-me só porque quem deveria colaborar não colabora” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU