27 Outubro 2020
As religiões são importantes, querem ser importantes, especialmente agora que os que creem e suas organizações se sentem fortalecidos pela pandemia. Na catástrofe social e de saúde, conferiram sentido, deram uma mão. Sabem que seu papel será indispensável depois desse momento de emergência, quando deverá ser estruturado o esforço global pela saúde do ser humano e do planeta, pelo desenvolvimento e pela sustentabilidade. Sua salvação é necessária para a salvação do mundo.
Entre os tantos sinais pelos quais se percebe a ofensiva das religiões, destaca-se o lançado à comunidade internacional pelo G20 das religiões: uma plataforma que reúne líderes, funcionários e especialistas de todo o mundo, na qual estão envolvidos os mais importantes cultos religiosos. Organizado pela presidência saudita do G20 dos Estados (seu interlocutor institucional) e realizado online de 13 a 17 de outubro, o G20 Interfaith de Riad marcou uma etapa sem paralelo na história contemporânea das mobilizações religiosas.
A reportagem é de Marco Ventura, publicada por La Lettura, 25-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A declaração final é eloquente. Do ponto de vista institucional, o G20 das religiões pede aos governos dos vinte países mais poderosos do mundo, da China aos Estados Unidos, do Reino Unido à Alemanha, do Brasil à Índia, da Turquia ao Japão, para ser formalizado como interlocutor estável. Se no G20 saudita dos Estados, nos dias 21 e 22 de novembro, o pedido for aceito, o G20 das religiões se tornará um grupo de engajamento, como o G20 dos negócios, das mulheres, dos jovens, da pesquisa, do trabalho, da cidade e da ciência. O pedido deixa totalmente explicita a ambição das religiões de serem reconhecidas, diz o documento final de Riad, "parceiras dos instrumentos de governo global".
O G20 de religiões não é menos ambicioso do ponto de vista concreto. "Não podemos reivindicar um assento à mesa se não tivermos nada a dizer", confidencia ao "La Lettura" uma das líderes do G20 religioso, Katherine Marshall, da Universidade de Georgetown de Washington.
São três, nesse sentido, os pilares de sustentação do documento.
Em primeiro lugar, as religiões se colocam perante o G20 dos estados como porta-vozes das "comunidades mais vulneráveis"; em segundo lugar, colocam a sua dupla força "ética e prática, física e espiritual" ao serviço da proteção do planeta; finalmente, se oferecem como atores na prevenção de desastres e resposta a emergências.
O documento consagra, nesse sentido, a aliança dos credos pelas vacinas anti-Covid-19. Contra a união entre religiosos conservadores e o movimento No Vax, contra a tentação de colocar as pessoas de fé em competição com médicos e cientistas, os líderes que virtualmente se convocaram em Riad identificam “a prioridade dos próximos dias no empenho das comunidades religiosas pelo desenvolvimento, testes e distribuição das vacinas”.
Ano após ano, do G20 australiano em 2014 ao G20 japonês em 2019, o G20 das religiões tem aumentado cada vez mais sua autoridade. Sua força está em sua plasticidade.
Por um lado, a plataforma sabe como se adaptar à dinâmica do desenvolvimento sustentável, às prioridades e agendas, às emergências e tendências, às instituições e movimentos que encontraram expressão no próprio G20 de estados, mais e melhor do que nas Nações Unidas.
Por outro lado, sabe refletir a multiformidade do religioso contemporâneo. Como bem apareceu na conferência de Riad, o G20 das religiões tem crescido ao longo do tempo devido à sua capacidade de incluir e articular os mil caracteres de uma religião que é material e espiritual, Igreja e ONG, confessional e inter-religiosa, formal e informal, humanitária e cultural, nacional e internacional, do centro e da periferia.
A diversidade dos religiosos de hoje se refletiu na não homogeneidade da representação das religiões em Riad e no caleidoscópio de competências, sensibilidades, siglas e temas propostos no programa. Encontraram-se tradições como sunita e budista, judaica e xintoísta, debateram livres participantes e líderes de Igrejas como o patriarca ecumênico de Constantinopla Bartolomeu, puderam conversar entre si indianos e canadenses, senegaleses e egípcios, falou-se sobre energia e fome, discursos de ódio e discriminação.
Terminada a conferência, agora estruturam a declaração final, as recomendações ainda em elaboração, os grupos de trabalho que darão continuidade ao processo. Assim se desenvolve a diplomacia religiosa, no contraponto entre o caos vital das crenças e o planejamento dos especialistas, entre as ações impetuosos dos ativistas e o passo suave dos representantes.
Graças à sua fluidez, o G20 Interfaith Forum pode se propor como uma rede de redes, "network de network" segundo o projeto caro a Katherine Marshall. Pode se vincular a iniciativas nacionais, como a Partnership alemã das Religiões para o Desenvolvimento, ou internacionais, como as várias agências das Nações Unidas que envolvem atores religiosos.
Azza Karam, a egípcia que inventou a força-tarefa das Nações Unidas sobre as religiões para o desenvolvimento e agora é secretária geral da ONG Religions for Peace, enfatizou a importância da colaboração entre a ONU e o G20 das religiões. Não é por acaso que a Aliança das Civilizações das Nações Unidas, como enfatizado pelo Alto Representante Miguel Ángel Moratinos, foi um parceiro fundamental do evento de Riad; não é por acaso que a italiana Simona Cruciani, especialista da ONU em crimes de ódio, foi convidada a dar forma ao debate sobre um dos temas mais candentes.
A grande oportunidade aproveitada pelo G20 das religiões, e pelas muitas redes que se desenvolveram nos últimos anos, é a necessidade de diálogo entre os líderes religiosos, por um lado, e entre os líderes religiosos, a sociedade civil e representantes políticos e governamentais, pelo outro.
Existem duas razões para a necessidade. A primeira é constituída pelo horizonte da emergência planetária e do desenvolvimento sustentável. Na luta contra o vírus ficou claro para os líderes religiosos, mais do que nunca, que a salvação do planeta é uma oportunidade extraordinária para reafirmar a salvação além do mundo, da qual eles são mestres em seus mil caminhos.
Se a primeira razão que leva os líderes religiosos uns para os outros é, portanto, um "a favor", a segunda é um "contra". Devem falar entre si e, sobretudo, aliar-se, porque se sentem ameaçados pelo mesmo duplo inimigo. Aumenta de fora a frente antirreligiosa, que se manifestou durante a pandemia com governos que desclassificaram o culto como "serviço não essencial", e ainda mais com a expectativa da ciência e tecnologia de uma salvação que a fé não pode dar.
Se o mundo se torna secularizado, se os estilos de vida e formas de pensar substituem as tradições religiosas por valores alternativos, se a área da não-religião se alarga no mapa mundial, as religiões são levadas a se aproximarem e se compactar. Por dentro, no entanto, fervilha o inimigo fundamentalista. Correr atrás dele é inútil. Lutar sozinhos é em vão.
Em seu discurso no G20 em Riad, o responsável pelo observatório antiterrorismo de Al Azhar, a prestigiosa academia islâmica do Cairo, disse sem rodeios. Aqui, em sua espetacular contradição, o papel da Arábia Saudita se destaca. "Valeu a pena", responde o presidente do G20 Inter-religioso, Cole Durham, às dúvidas de "La Lettura" sobre a credibilidade de uma parceria inter-religiosa com os sauditas.
Autoridade há décadas na luta internacional pela liberdade religiosa, membro da Igreja mórmon, o professor de Direito Durham não minimiza a questão: “Tínhamos consciência dos riscos, demos crédito à boa vontade dos diversos interlocutores, e observamos as mudanças significativas produzidas no país. As quatro faces dialogantes da equipe saudita certamente ajudaram os líderes estadunidenses G20 das religiões, sob pressão depois que o Washington Post entrou em campo pelo boicote ao G20 saudita de estados.
O governo do rei Salman, guardião das duas mesquitas sagradas, falou a linguagem da ciência e do politicamente correto, e alardeou os supostos sucessos do país, modelo de flexibilidade na gestão da pandemia também no que diz respeito aos preceitos religiosos. O secretário do comitê saudita para o diálogo inter-religioso e intercultural teve muita visibilidade.
Por sua vez, o secretário-geral saudita da Liga Islâmica Mundial, Mohammad al-Issa, invocou "vozes moderadas que rejeitam a violência", condenou "o extremismo que distorce os textos sagrados" e propôs uma política de "valores morais capazes de produzir vantagens materiais”.
Acima de tudo, a face dialogante da Arábia foi representada pelo Kaiciid (King Abdullah bin Abdulaziz International Centre for Interreligious and Intercultural Dialogue), uma organização saudita com sede em Viena, com a participação dos governos da Espanha e da Áustria, e a concordância da Santa Sé, "observador fundador". Deve-se justamente ao Kaiciid a mediação que garantiu a presença de vozes críticas, inclusive em relação à política energética da presidência saudita do G20 dos estados, e sobretudo de lideranças femininas e de minorias como os bahais, tradicionalmente perseguidos no mundo muçulmano.
A migração online do evento impediu o sinal mais significativo, a presença de diferentes lideranças religiosas nas terras de Meca e Medina. No entanto, são justamente as conexões a distância que decretaram um sucesso de público sem precedentes. Nas edições anteriores, uma elite de uma centena de líderes, especialistas e funcionários se reuniam. A participação na plataforma digital este ano ultrapassou os dois mil, pouco menos da metade da própria Arábia Saudita.
Os riscos do G20 das religiões, na realidade, superam em muito o risco de reputação da cooperação com o parceiro saudita. São de três ordens.
Em primeiro lugar, corre-se o risco de um diálogo entre líderes separado da realidade de comunidades e povos divididos. Certamente o Cardeal Miguel Ángel Guixot, presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, e o Padre Augusto Zampini Davies do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, vozes fortes no evento de Riad, são expoentes de autoridade do pensamento do Papa Francisco, mas não menos certamente suas posições deixam mornos muitos fiéis, mais preocupados com a identidade católica que com o entusiasmo hindu pela encíclica Fratelli Tutti. Em suma, a questão é até que ponto o G20 das religiões, um experimento sofisticado dos vértices, seria capaz de refletir, ou inspirar, as comunidades ao redor do mundo, seus sentimentos e suas ideias.
O segundo risco diz respeito à relação entre as religiões e os governos. O G20 das religiões é proposto como um espaço de encontro e reivindicação das prerrogativas das religiões, mas existe o perigo real de que a busca da interlocução dos governos, e principalmente dos governos de grandes países, acabe enfraquecendo a independência e a autoridade dos líderes religiosos e de suas comunidades.
Por fim, há o risco de dissolução do religioso no social em tempos da sustentabilidade e de rebaixamento das organizações inter-religiosas a associações de categoria entre tantas outras. Se as diferenças entre as religiões importam menos do que os valores comuns, se os homens de Deus se achatam na agenda de funcionários, se o Interfaith-20 vale tanto quanto o Business-20, Women-20 e City-20, os músculos do religioso contemporâneo parecem inflados a força de esteroides.
Enquanto a transferência da presidência do G20 entre a Arábia Saudita e a Itália está sendo preparada, delineia-se a delicada tarefa para nós, italianos, em 2021: capacitar as comunidades religiosas para que desenvolvam um diálogo que não venda a baixo custo as suas especificidades de diferentes religiões e sua unicidade religiosa.
O historiador Alberto Melloni, responsável pelo próximo G20 Inter-religioso, que acontecerá em Bolonha, e o cardeal Matteo Zuppi, arcebispo da cidade, sugeriram isso na última sessão plenária em Riad, na qual líderes religiosos serão chamados a questionar-se sobre os recursos de suas respectivas tradições teológicas. Será necessário todo o saber das religiões e sobre as religiões para que o desejo de contar crentes não sucumba aos três riscos, e ao risco supremo temido por Marshall: que sua mobilização seja apenas pelo poder. Como recordou Zuppi no seu convite para se reunir em Bolonha no próximo ano, contra as divisões provocadas pela pandemia do vírus e pela pandemia de guerra, as religiões têm a oportunidade de ser um sinal de unidade. Devemos escolher o que fazer com o pedido de salvação do corpo e da alma que vem da humanidade nesta temporada. Buscamos a resposta enquanto viajamos da terra saudita de submissão a Alá para a terra europeia do saber de Deus.
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Uma aliança entre as religiões sobre a saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU