02 Outubro 2020
"Talvez se devesse tematizar a raiz dos contratestemunhos da Igreja: a sobrecarga de estruturas e de aparatos (diplomacia, embaixadores, nunciaturas por todo o mundo), que pesam sobre a vida da Igreja instituição", escreve Franco Monaco, ex-deputado e ex-senador italiano, em artigo publicado por Settimana News, 01-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O caso Becciu não é o primeiro nem será o último. Mas não causa surpresa que tenha provocado um barulho particular, tratando-se de um cardeal e de um estreito colaborador do papa que foi “renunciado” fulminantemente. Um episódio desagradável, que provoca desconforto e até sofrimento a quem ama a Igreja.
Humildemente, inscrevo-me entre estes últimos. Nenhuma queda jamais poderá cancelar a minha dívida de gratidão para com a Igreja, não entendida como uma instituição fria, mas para com as pessoas concretas e as comunidades cristãs concretas às quais devo minha a formação e as minhas escolhas de vida.
Quando se ouve falar dos limites, das misérias, dos pecados dos homens da Igreja, a minha primeira reação é a de um profundo pesar, ao pensar que pode escapar da opinião pública a abissal desproporção entre a montanha do bem que a Igreja derrama a humanidade – começando pela frágil e ferida, com inúmeros testemunhos de dedicação heroica e cotidiana, até aos casos extremos de cristãos que se entregam ao martírio – e os erros e as culpas de alguns dos seus representantes.
Particularmente, no caso em questão, é lamentável que se possa dar fôlego a dois “partidos”: os anticlericais militantes aos quais não parece verdadeiro que se confirmem os seus preconceitos, que se denuncie a duplicidade e a hipocrisia de quem prega o bem e pratica mal; e, respectivamente, os detratores e os adversários do Papa Francisco, os tradicionalistas que, nunca como hoje, se organizaram e, com recursos enormes, conduzem campanhas orgânicas hostis a ele. Até pedir a sua renúncia.
Mesmo no pesar pelas sombras, no entanto, não é descabido entrever uma luz: a da coragem, da determinação, digamos também do decisionismo do pontífice. Não é algo de hoje. Ele já deu provas disso várias vezes, especialmente nos dois fronts que mais feriram o rosto da Igreja: as finanças vaticanas e os abusos sexuais. Remontando atrasos culpados e hesitações acumuladas há muito tempo.
Não é nenhum mistério que uma resoluta obra de limpeza estava inscrita na eleição de Bergoglio ao sólio pontifício, após a clamorosa renúncia do Papa Bento XVI. A montante da qual estava plausivel a humilde e honesta admissão de não dispor da força necessária para levar a cabo tal limpeza.
Nunca foi desmentido o rumor segundo o qual, na época da eleição do próprio Ratzinger, o cardeal Martini – um dos papáveis, mas já doente e, portanto, declarando-se indisponível – aconselhou-o fortemente a garantir que se ocuparia com decisão das “chagas da Igreja”.
Francisco provou várias vezes que dá seguimento a esse propósito. Sabendo bem distinguir entre a misericórdia como marca do cristianismo e da Igreja, e uma pávida aquiescência, uma prudência mal compreendida, muitas vezes praticada com a intenção de preservar a boa fama da Igreja, degenerada em encobrimentos. Daí a determinação nas “intervenções cirúrgicas” objetivamente necessárias, em nome da ética da responsabilidade e precisamente por amor à Igreja, da transparência evangélica do seu rosto.
Dito isso, não podemos nos isentar de uma interrogação de fundo. Eu a formulo em memória de um mestre muito caro para mim: Giuseppe Lazzati, do qual está em andamento o processo de canonização. Já servo de Deus, homem muito fiel à Igreja, diante de casos semelhantes a esse (como o que investiu o IOR), com a discrição e a mesura ditadas pelo afeto que tinha pela mãe Igreja, ele se perguntava se não se devia tematizar a raiz de tais contratestemunhos: a sobrecarga de estruturas e de aparatos – ele se referia à diplomacia, aos embaixadores, às nunciaturas por todo o mundo – que pesam sobre a vida da Igreja instituição. Com tudo aquilo que elas carregam sobre as costas. Certamente, os custos exorbitantes e a exigência de cobri-los, mas também os atrativos e as ambições “mundanas” das “carreiras eclesiásticas” (um oxímoro).
Lazzati se perguntava se toda essa sobrecarga estrutural era estritamente necessária para a missão da Igreja. Ou se, parafraseando o estudioso da comunicação McLuhan, o meio não acabava prejudicando a mensagem. Talvez um legado do poder temporal da Igreja, da Santa Sé como Estado semelhante demais a outros Estados, do qual hoje não se vê a razão.
Incidental e coerentemente, recordo que Lazzati alimentava uma certa desconfiança em relação às Concordatas (apesar de o cardeal Nicora, um dos artífices da revisão de 1984, ser um dos seus discípulos). A sua convicção era de que as Concordatas faziam sentido quando o interlocutor era um Estado totalitário, e que, em vez disso, onde vigora a democracia, a Igreja (com os seus cristãos leigos) faziam bem em aceitar sem reservas o desafio da liberdade e das democracias.
Acho que não estou errado em imaginar que um papa que assumiu o nome de Francisco é atraído por tal visão – de uma Igreja que leva o Evangelho a sério na sua radicalidade e resiste às seduções do poder.
Um papa ousadamente reformador e que é hostilizado por muitos precisamente por isso. Mas até onde ele pode ir?
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Caso Becciu: pesar e perguntas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU