08 Setembro 2020
O antropólogo e professor da London School of Economics David Graeber morreu na quarta-feira, 2 de setembro, aos 59 anos. Tornou-se famoso por sua crítica dos bullshit jobs (empregos de merda). Também fez um trabalho importante – e discutido – sobre as origens da dívida. Uma obra que já fez sucesso e alimentou seu compromisso com o movimento Occupy Wall Street após a crise financeira de 2008.
Republicamos aqui a entrevista que ele nos concedeu em 2014, na qual explica que a dívida, conceito moral antes de ser econômico, muitas vezes alimentava crises que exigiam a anulação das dívidas para manter a ordem social.
A entrevista é de Philip Pilkington, publicada por Alternatives Économiques, 05-09-2020. A tradução é de André Langer.
A maioria dos economistas diz que o dinheiro foi inventado para substituir o escambo. Mas você encontrou algo bem diferente.
Sim, existe uma história padrão que todos nós aprendemos, um “era uma vez” que é um verdadeiro conto de fadas. De acordo com essa teoria, todas as transações eram feitas primeiro por meio da troca: “quer saber, vou te dar vinte galinhas por esta vaca!” Como isso poderia levar a problemas se seu vizinho não precisasse de galinhas, era preciso inventar o dinheiro. Então, depois de um tempo, quando você se torna capaz de transações mais sofisticadas, você inventa o crédito. A história remonta ao menos até Adam Smith, e esse é, à sua maneira, o mito fundador da abordagem econômica.
De minha parte, eu sou antropólogo, e nós, antropólogos, sabemos há muito tempo que essa história é um mito, simplesmente porque se houvesse lugares onde as transações cotidianas tivessem assumido a forma de “vou te dar vinte galinhas por esta vaca”, deveríamos ter encontrado um ou dois desses lugares. Mas não foi o que aconteceu!
Na verdade, à medida que se levanta a cortina dos arquivos históricos da antiga Mesopotâmia, por volta de 3.200 a.C., existe um elaborado sistema de contas de dinheiro e complexos sistemas de crédito. O dinheiro como meio de troca ou como unidades padronizadas de ouro, prata, bronze ou algo semelhante só chega muito mais tarde. Em vez da história padrão – primeiro há o escambo, depois o dinheiro e, finalmente, o crédito –, historicamente aconteceu o contrário. O crédito e o endividamento vêm primeiro, a moeda surge milhares de anos depois. E quando você encontra sistemas de troca do tipo “vou te dar vinte galinhas por esta vaca”, geralmente houve troca monetária, mas por alguma razão – como na Rússia, por exemplo, em 1998 – a moeda entrou em colapso ou desapareceu.
Você disse que na Mesopotâmia de 3.200 a.C. já havia uma arquitetura financeira complexa. No mesmo tempo, conhecemos uma sociedade dividida em classes de devedores e credores?
Historicamente, parece ter havido duas possibilidades. Uma, que você encontra no Egito: um Estado forte e uma administração centralizada que faz com que todos paguem impostos. Na época, os egípcios não desenvolveram o hábito de emprestar dinheiro a juros. Presumivelmente, eles não precisavam disso.
A outra, na Mesopotâmia, era diferente porque o Estado surgiu ali de maneira desigual e incompleto. No início existiam templos gigantescos e burocráticos e também palácios com um funcionamento complexo, mas eles não desempenhavam exatamente o papel de governos e não arrecadavam impostos diretos – ato considerado adequado apenas para populações conquistadas. Eles possuíam enormes complexos industriais, com terras próprias, rebanhos e “fábricas”. Foi aí que o dinheiro apareceu como uma unidade de conta, a fim de poder alocar os recursos dentro dessas instituições.
Os empréstimos com juros provavelmente surgiram de negociações entre os administradores dos palácios e dos comerciantes que pegaram, por exemplo, os produtos de lã produzidos nos templos (parte de cujas atividades originalmente consistiam em ações de caridade, servindo de lar para órfãos, refugiados ou pessoas com deficiência) para comercializá-los em terras distantes por metal, madeira ou lápis-lazúli. Os primeiros mercados se formaram nos arredores desses palácios e pareciam operar principalmente a crédito e usando a unidade de conta do templo.
Os mercadores, os administradores de templos e outros ricos desenvolveram os empréstimos ao consumidor para fazendeiros que, no caso de colheitas ruins, caíram na armadilha da dívida. Este foi o grande mal social da Antiguidade – as famílias começavam com o penhor de seus rebanhos, seus campos, e em pouco tempo suas esposas e filhos seriam levados para se tornarem “escravos por dívida”. Frequentemente, as pessoas acabavam abandonando totalmente as cidades para se juntar a bandos seminômades, ameaçando voltar com força e derrubar a ordem social existente.
Os governantes então concluíam sistematicamente que a única maneira de evitar um colapso social completo era declarar uma lousa limpa, uma “lavagem das lousas”, aquelas em que estavam registradas as dívidas dos consumidores, anulando-as para começar do zero. Na verdade, a primeira palavra que temos para “liberdade” em qualquer língua humana é o amargi sumério, que significa livre de dívida e, por extensão, a liberdade em geral, que significa literalmente “retorno à mãe” na medida em que, uma vez que as dívidas eram anuladas, todos os escravos da dívida poderiam voltar para casa.
Você indica em seu livro que a dívida era um conceito moral muito antes de se tornar um conceito econômico. Você também notou que este é um conceito moral muito ambivalente, pois pode ser positivo e negativo.
Poderíamos contar a história da seguinte maneira: finalmente, as perspectivas egípcia (impostos) e mesopotâmica (usura) se fundem, com as pessoas tomando empréstimos para pagar seus impostos. A dívida se institucionaliza. Os impostos, então, terão um papel essencial na criação dos primeiros mercados que operam com dinheiro, já que este parece ter sido inventado ou pelo menos amplamente popularizado através do uso de impostos para pagar os soldados – mais ou menos simultaneamente na China, na Índia e no Mediterrâneo. A melhor maneira de pagar as tropas é dar-lhes moedas padronizadas de ouro ou de prata, depois fazer com que todos no reino as aceitem e as devolvam para pagar os impostos. Guerra, moral e dinheiro estão ligados.
A linguagem da dívida e a linguagem da moral começam então a se fundir. Em sânscrito, em hebraico, em aramaico, “dívida”, “culpa” e “pecado” são, na realidade, a mesma palavra. Boa parte da linguagem dos grandes movimentos religiosos – juízo final, redenção, contabilidade cármica e assim por diante – é extraída da linguagem das finanças antigas. Então, essa linguagem, considerada insuficiente, é sempre retrabalhada para evoluir para diferentes significados. É como se os grandes profetas e mestres religiosos não tivessem escolha a não ser começar com esse tipo de palavra, porque é a linguagem que existia na época, mas eles apenas a adotaram para transformá-la no seu contrário: para dizer que as dívidas não são sagradas e que o perdão da dívida, ou a capacidade de amortizar a dívida, de perceber que as dívidas não são reais, são atos verdadeiramente sagrados.
Você diz que a história vai de períodos de dinheiro-mercadoria a períodos de dinheiro virtual. Você não acha que chegamos a um ponto da história em que, devido às mudanças tecnológicas e culturais, podemos ter visto o fim do dinheiro-mercadoria para sempre?
Bem, os ciclos entre as duas formas se estreitam com o passar do tempo. Mas penso que teremos que esperar pelo menos outros quatrocentos anos para realmente saber! É possível que a era do dinheiro-mercadoria esteja chegando ao fim, e estou preocupado com o período de transição.
A última vez que vimos uma grande mudança da moeda-mercadoria em moeda de crédito, não foi muito bonito. Relembro apenas alguns episódios: tivemos a queda do Império Romano, da Era Kali na Índia e o desaparecimento da dinastia Han na China... Períodos de morte, desastre e caos. O resultado final foi, em muitos aspectos, profundamente libertador para a maioria dos que os viveram – a escravidão, por exemplo, foi amplamente eliminada das grandes civilizações. Foi uma conquista histórica notável. O declínio das cidades significou que a maioria das pessoas trabalhava muito menos. Mas espero que o deslocamento não seja tão épico desta vez. Especialmente porque os verdadeiros meios de destruição são muito mais sofisticados hoje.
Passemos aos problemas do mundo atual. Ao longo dos últimos anos, em muitos países ocidentais, as famílias acumularam grandes dívidas, especialmente através de empréstimos imobiliários. Do ponto de vista histórico, o que você acha desse fenômeno?
No passado, os períodos dominados pelo dinheiro de crédito também foram acompanhados por proteções sociais para os devedores. Depois de reconhecer que o dinheiro é apenas uma construção social, um crédito, um reconhecimento de dívida, como impedir que as pessoas o gerem indefinidamente? Como evitar que os pobres caiam nas armadilhas da dívida e se tornem escravos dos ricos? É por isso que se apagavam as tábuas de ardósia na Mesopotâmia, havia os jubileus bíblicos, as leis de usura medievais no Cristianismo e no Islã e assim por diante.
Desde a Antiguidade, o pior cenário, aquele que todos achavam que levaria ao colapso social total, era uma grande crise de dívida. As pessoas comuns ficavam tão endividadas com a parte de cima do 1% ou 2% mais rico da população que começavam a vender seus familiares como escravos, inclusive a si mesmas.
O que está acontecendo em nosso tempo? Em vez de criar instituições globais para proteger os devedores, foram criados o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Standard & Poor’s para proteger os credores. Eles afirmam, desafiando toda a lógica econômica histórica, que nunca se deve permitir que um devedor fique inadimplente. Desnecessário dizer que o resultado é catastrófico. Vivemos algo que, para mim, parece exatamente o que os mais velhos temiam: uma população de devedores patinando à beira do desastre.
Quando milhares de pessoas começam a se reunir em praças na Grécia ou na Espanha clamando por “democracia real”, o que elas querem dizer é: “desde 2008, você deixou o gato da crise sair do saco. Portanto, se o dinheiro é realmente apenas uma construção social, uma promessa, uma série de reconhecimentos de dívidas, e até mesmo trilhões de dívidas, podemos fazê-los desaparecer se atores suficientemente poderosos o solicitarem. Se a democracia significa alguma coisa, todos devem ser capazes de influenciar a forma como essas promessas são feitas e podem ser renegociadas”. Acho isso extremamente encorajador.
De modo geral, como vê que estamos saindo da atual crise da dívida financeira?
Para o futuro de longo prazo, estou bastante otimista. Podemos ter estado no caminho errado nos últimos quarenta anos, mas em termos de ciclos de quinhentos anos, bem, quarenta anos não é muito tempo! Por fim, será necessário reconhecer que numa fase de dinheiro virtual, de crédito, deve haver proteções – e não apenas para os credores. Quantos desastres serão necessários para chegar a isso? Eu não saberia dizer.
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“Crédito e dívida existiam antes da moeda”. Entrevista com David Graeber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU