08 Setembro 2020
O capitalismo cria muitos empregos desnecessários com o simples propósito de manter a população ocupada, afirmou, em um texto deliberadamente provocativo, o antropólogo David Graeber, que acaba de nos deixar.
O artigo de David Graeber é publicado por Alternatives Économiques, 05-09-2020. A tradução é de André Langer.
Em 1930, John Maynard Keynes previu que até o final do século, a tecnologia teria avançado o suficiente para permitir que países como o Reino Unido ou os Estados Unidos pudessem implementar a jornada de trabalho semanal de 15 horas. Não faltam motivos para pensar que ele estava certo. Em termos tecnológicos, seríamos perfeitamente capazes disso. E, mesmo assim, não é o que aconteceu. Em vez disso, a tecnologia encontrou maneiras de nos fazer trabalhar mais. Para alcançar este objetivo, foram criados empregos que, na realidade, são inúteis. Enormes batalhões de pessoas, especialmente na Europa e na América do Norte, passam toda a sua vida profissional executando tarefas que secretamente acreditam ser desnecessárias. (...)
Por que a utopia prometida por Keynes nunca se concretizou? Costuma-se dizer hoje que ele não previu o aumento do consumismo: em vez de reduzir as horas de trabalho, teríamos optado por mais dispositivos eletrônicos e lazeres à nossa disposição. É uma fábula moral muito bonita, mas basta um momento de reflexão para mostrar que ela é falsa. Sim, nós assistimos à criação de uma variedade infinita de novos empregos e de novos setores de atividades desde os anos 1920, mas muito poucos têm a ver com a produção e distribuição de sushis, iPhones ou tênis da moda.
Quais são, exatamente, esses novos empregos? Um relatório recente sobre a evolução do emprego nos Estados Unidos entre 1910 e 2000 nos dá um quadro informativo. Ao longo do século passado, diminuiu o número de trabalhadores empregados como empregadas domésticas ou como trabalhadores na indústria e na agricultura. Ao mesmo tempo, os gerentes, administrativos, vendedores e prestadores de serviços triplicaram em relação à proporção do emprego total. Com outras palavras, os empregos produtivos, como previsto, foram amplamente automatizados (mesmo se contarmos a força de trabalho da indústria global, incluindo as legiões de trabalhadores chineses e indianos, sua parcela na população mundial não é mais o que era).
Mas ao contrário de uma redução massiva do tempo de trabalho que teria permitido à população mundial perseguir seus próprios projetos, prazeres, visões, ideias, o que vimos foi um aumento dos empregos administrativos em um sentido amplo, incluindo novos setores como os serviços financeiros, o telemarketing ou o crescimento sem precedentes de setores como serviços jurídicos, serviços administrativos na educação e na saúde, os recursos humanos e as relações públicas. E estes números não levam em consideração as pessoas que têm como função prestar atividades de apoio administrativo, técnico ou de segurança a esses setores, nem mesmo atividades periféricas (tratadores de cães, entrega noturna de pizza) que não existiam, porque todo mundo passa muito tempo trabalhando em todas as outras atividades. Esses são os empregos que proponho chamar de “empregos de merda”.
É como se alguém estivesse inventando essas profissões inúteis apenas para nos manter ocupados. É aqui que reside o mistério. Isso não deveria acontecer em um sistema como o capitalismo. De qualquer forma, de acordo com a teoria econômica, a última coisa que uma empresa com fins lucrativos fará é gastar dinheiro pagando funcionários de que não precisa. E, no entanto, é isso que está acontecendo.
Mesmo que muitas empresas se dediquem a reduzir de maneira implacável o número de trabalhadores, as dispensas recaem invariavelmente sobre as categorias de trabalhadores que se dedicam a fabricar, transportar, reparar e manter as coisas. De acordo com uma estranha alquimia que ninguém consegue explicar, o número de burocratas assalariados parece aumentar, e há cada vez mais empregados, como acontecia na antiga União Soviética, que, teoricamente, trabalham 40 a 50 horas por semana, mas na prática 15 horas, como previu Keynes, com o resto do tempo gasto organizando ou participando de seminários motivacionais, atualizando seu perfil no Facebook ou baixando séries da internet.
A resposta a este mistério não é econômica: é moral e política. A classe dirigente entendeu que uma população produtiva e com abundante tempo livre à sua disposição é um perigo mortal. E, por outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor em si mesmo, de que quem não esteja disposto a se submeter a alguma forma de intensa disciplina de trabalho durante a maior parte das horas de vigília não merece nada, é extraordinariamente oportuno para eles.
Certa vez, ao contemplar o crescimento aparentemente interminável das responsabilidades administrativas nas universidades britânicas, passei a imaginar uma possível visão do inferno. O inferno é uma reunião de pessoas que passam a maior parte do tempo trabalhando em tarefas das quais não gostam e não fazem muito bem. Digamos que elas foram contratadas porque eram excelentes fabricantes de armários e, então, descobriram que deveriam gastar parte significativa do seu tempo fritando peixes. Além disso, essa tarefa realmente não precisa ser feita – ou, pelo menos, apenas um número limitado de peixes realmente precisa ser frito. Ainda assim, todos eles se tornam tão obcecados com a suspeita de que alguns dos seus colegas de trabalho possam passar mais tempo a talhar madeira do que cumprir sua parte na fritura de peixes que, rapidamente, vamos encontrar pilhas intermináveis de peixes mal fritos se acumulando em toda a oficina.
Acredito que essa seja uma descrição bastante precisa da dinâmica moral da nossa economia. Estou consciente de que argumento como este levanta imediatamente objeções: quem sou eu para dizer quais empregos são necessários? Qual é a “utilidade” do professor de antropologia que eu sou? E, em certo sentido, isso é verdade: não pode haver uma medida objetiva de valor social. Mas o que dizer daquelas pessoas que estão convencidas de que seus empregos não têm sentido?
Recentemente, entrei em contato com um amigo de escola que não via desde os 12 anos. Nesse ínterim, ele se tornou poeta e depois cantor de uma banda de rock independente. Ele era brilhante, inovador, e seu trabalho sem dúvida iluminou e melhorou a vida de muitas pessoas em todo o mundo. No entanto, depois de alguns álbuns sem sucesso, ele perdeu o contrato com sua produtora. Atormentado pelas dívidas, com uma menina recém-nascida, acabou, como ele mesmo disse, por “fazer uma escolha que, por exclusão, é a de tantas pessoas desorientadas: a faculdade de direito”. Agora é um advogado corporativo em uma grande empresa nova-iorquina. Ele é o primeiro a admitir que seu trabalho não tem sentido, não ajuda o mundo de forma alguma e, em sua opinião, não deveria existir.
O que isso revela sobre a nossa sociedade? Isso parece gerar uma demanda extremamente limitada por poetas e músicos talentosos, mas uma demanda aparentemente ilimitada por especialistas em direito empresarial? (Resposta: se 1% da população controla a maior parte da riqueza disponível, o que chamamos de mercado reflete o que essas pessoas – e mais ninguém – consideram importante ou útil.) Mais ainda, isso mostra que a maioria das pessoas que está nestes empregos é lúcida. Na verdade, acho que nunca conheci um advogado corporativo que não achasse que seu trabalho é uma merda. O mesmo se aplica a todas as novas profissões mencionadas acima. Existe toda uma categoria de profissionais assalariados que, se você os encontrar em uma festa, desejarão evitar a todo custo falar sobre o seu trabalho. Mas, depois de alguns drinques, eles se lançam a fazer discursos inflamados sobre a sua vaidade e estupidez.
Há nisso uma profunda violência psicológica. Como podemos falar sobre dignidade no trabalho quando há tantas pessoas que sentem, no seu íntimo, que seu trabalho não deveria existir? Como isso não vai criar um forte ressentimento e uma profunda raiva? No entanto, é na genialidade peculiar da nossa sociedade que os dirigentes pensaram encontrar, como no caso do peixe frito, uma maneira de garantir que a raiva se voltasse contra quem exerce uma profissão útil.
Por exemplo, em nossa sociedade, existe uma regra geral de que quanto mais o trabalho de alguém explicitamente beneficia os outros, menos provável é que sejam bem pagos. Novamente, é difícil encontrar uma medida objetiva, mas uma maneira simples de fazê-lo é perguntando a si mesmo: o que aconteceria se essa categoria de trabalhadores simplesmente desaparecesse? Independentemente do que dissermos sobre enfermeiras, coletores de lixo ou mecânicos, é evidente que se eles desaparecessem repentinamente, as consequências seriam imediatas e catastróficas. Um mundo sem professores e estivadores logo estaria em apuros. E mesmo um mundo sem escritores de ficção científica e músicos de ska certamente seria, sem dúvida, pior. Por outro lado, não é tão claro se a humanidade sofreria tanto com o súbito desaparecimento dos gestores de fundos de capital de risco, lobistas, especialistas em relações públicas, operadores de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores jurídicos. No entanto, com algumas exceções, como os médicos, a regra se mantém surpreendentemente bem.
Ainda mais perversa é a noção de que parece haver um consenso de que as coisas são como deveriam ser. É uma das forças secretas do populismo de direita. Você pode ver isso quando os tabloides perseguem os trabalhadores do metrô por paralisarem Londres durante as manifestações dos movimentos sociais: o simples fato de que eles podem paralisar a cidade mostra que o seu trabalho é realmente útil, mas parece que é exatamente isso que incomoda as pessoas.
Isso é ainda mais evidente nos Estados Unidos, onde os republicanos tiveram notável sucesso propagando o ressentimento popular contra professores e trabalhadores da indústria automobilística (e não contra os administradores escolares ou executivos da indústria automobilística que são a verdadeira causa dos problemas) por seus supostos privilégios e salários milagrosos. É como se dissessem a eles: “Mas vocês podem dar aulas para as crianças ou construir carros! Vocês têm empregos de verdade! E, mesmo assim, vocês têm a desfaçatez de pedir pensão e cuidados de saúde?”.
Se alguém tivesse planejado um sistema para preservar o poder do capital financeiro, provavelmente não o teria feito de outra maneira. Os empregos reais e produtivos são constantemente destruídos e explorados. O resto é dividido em dois grupos. Por um lado, o estrato dos desempregados, universalmente vilipendiado. Por outro lado, um estrato maior de pessoas que são pagas sem fazerem nada, com estatutos elaborados de forma que possam se identificar com as visões e valores da classe dominante e, em particular, dos seus avatares financeiros. E, ao mesmo tempo, promovendo ressentimentos contra aqueles que têm um trabalho de valor social claro e inegável. É claro que o sistema não foi projetado deliberadamente dessa forma: ele emergiu de um século de tentativas e erros. Mas essa é a única explicação possível para entender por que, apesar das nossas capacidades tecnológicas, nem todos trabalhamos apenas três a quatro horas por dia.
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Por que não trabalhamos apenas três horas por dia? Artigo de David Graeber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU