26 Agosto 2020
“Estamos em um limiar que pode durar anos”, sentencia Franco “Bifo” Berardi, escritor, filósofo e ativista italiano, em conversa com o jornal Página/12. Em um momento que “não é para conclusões”, analisa o cenário e prevê alternativas. Escreve, em um extenso e-mail, que “o caos é o dominador da época”, e que são possíveis “um colapso final da ordem econômica global” e um desenvolvimento de comunidades autônomas, com eixo na igualdade. Não acredita no poder do Estado. O verdadeiro poder, para ele, está no capitalismo. Recorre a vários temas que envolvem este fato total que é a pandemia. Vacina, meio ambiente, virtualidade, vínculos humanos afundados em uma “epidemia de solidão”.
A entrevista é de María Daniela Yaccar, publicada por Página/12, 24-08-2020. A tradução é do Cepat.
Em quarentena, além de pintar, Bifo escreveu um texto muito original e literário chamado Diário da psicodeflação, que contém uma definição do coronavírus: “vírus semiótico”, “fixação psicótica” que prolifera no corpo estressado da humanidade global” e que bloqueou “o funcionamento abstrato da economia”. Está disponível na página web da editora Caja Negra, que também publicou os títulos Futurabilidad e Fenomenología del fin”. Depois, Bifo escreveu Más allá del colapso.
O escritor nascido em Bolonha, em 1949, tem história. Participou das revoltas juvenis de 68, foi amigo de Félix Guattari, frequentou Foucault. Fundou revistas, criou rádios alternativas e sinais de TV comunitárias. Alguns de seus livros destacados são A fábrica da infelicidade, Generación post-alfa, Félix e La sublevación. A editora Tinta Limón está prestes a lançar El Umbral. Crónicas y Meditaciones. Atualmente, é professor de História Social dos Meios de Comunicação, na Academia de Brera, em Milão.
Com o coronavírus, a filosofia ficou no centro do palco. Qual é a sua missão nesta pandemia?
É a mesma de há milhões de anos: entender, conceber, dispor o pensamento coletivo. O filósofo tenta transformar o que percebemos na experiência comum em conceitos que permitam iluminar o caminho. É muito simples, mas talvez o exercício se faz problemático. Se o que entendemos da realidade implica que não há saída ética, política e nem científica de uma situação, se a imaginação filosófica não consegue imaginar outra saída que a barbárie, outro horizonte que a extinção, o trabalho se torna muito duro. Temos que reconhecer e contar o que nos parece inevitável do ponto de vista do entendimento, mas, ao mesmo tempo, recordar que talvez o imprevisto subverta os planos do inevitável. Essa é a missão da filosofia: imaginar o imprevisível, produzi-lo, provocá-lo, organizá-lo.
Em “Más allá del colapso”, delineia dois cenários: “O que fica do poder capitalista tentará impor um sistema de controle tecnototalitário. Mas a alternativa está aqui e agora: uma sociedade livre das compulsões de acumulação e crescimento econômico”. De que maneira seria possível construir uma alternativa?
As consequências atuais da pandemia e do lockdown (confinamento) são muito contraditórias. Há tendências divergentes, até opostas, na esfera econômica, a do poder. De um lado assistimos ao desmoronamento dos nós estruturais da economia. O colapso da demanda, do consumo, uma deflação de longo prazo que alimenta a crise da produção e o desemprego, em uma espiral que podemos definir como depressão, mas que é algo mais do que uma depressão econômica. É o fim do modelo capitalista, a explosão de muitos conceitos e estruturas que mantêm as sociedades juntas.
Ao mesmo tempo, assistimos ao enorme fortalecimento do capitalismo das plataformas e das empresas digitais em seu conjunto. A relação entre sistema financeiro e desmoronamento da economia produtiva aparece incompreensível: Wall Street confirma sua tendência positiva, quase triunfal. Está sendo produzida uma enorme bolha econômica que no futuro próximo poderá explodir? Ou, ao contrário, isso significa que a abstração financeira se tornou totalmente independente da realidade da economia social?
Acredito que no próximo ano assistiremos ao colapso final da ordem econômica global, que poderia abrir as portas para um inferno político e militar essencialmente caótico. O caos é o verdadeiro dominador da época pandêmica. Um caos que o capitalismo não pode submeter. Não há uma alternativa política visível no futuro próximo. Há revoltas. Haverá. Mas não se pode imaginar uma estratégia política unificante.
Escreveu que a igualdade, “destruída na imaginação política, nos últimos 40 anos”, poderia ganhar protagonismo. Esta ideia não contrasta com o que está acontecendo nesse momento? O vírus aprofundou a pobreza, o desemprego, a desigualdade.
Na situação caótica que pode se desenvolver, vão proliferar as comunidades autônomas, as experimentações igualitárias de sobrevivência. Claro que hoje se manifesta uma tentativa das forças empresariais, mafiosas, neoliberais de se apoderar o máximo possível da riqueza social, dos recursos físicos e monetários. Mas isso não estabilizará nada. Todas as medidas de estabilização que as forças políticas de governo na Europa, assim como em outros lugares, estão tentando não podem estabilizar nada a longo prazo.
O crescimento não voltará amanhã, nem nunca. A Ecosfera terrestre não permitirá. Não está permitindo. A demanda não aumentará, não só porque o salário vai diminuindo, mas também porque a crise produzida pelo vírus não é só econômica. É essencialmente psíquica, mental. É uma crise das esperanças de futuro. Nesta situação, temos que imaginar formas de vida autônomas pós-econômicas, de autoprodução do necessário, de autodefesa armada contra o poder, de coordenação informática global.
O que acredita que significa esta pandemia para o ordenamento geopolítico mundial?
O caos toma o lugar de comando. Não existe de maneira objetiva. Há caos quando os acontecimentos que interessam nossa existência são muito complexos, rápidos, intensos para uma elaboração emocional e consciente. O vírus, invisível e ingovernável, conduziu o caos a um nível definitivo. Não posso prever os pontos onde o desmoronamento produza efeitos mais notáveis. O que me parece muito provável é um processo de guerra civil nos Estados Unidos.
Segundo um artigo publicado no Dallas News, há alguns dias, não haverá guerra civil, mas uma situação caótica de terror permanente. Os cidadãos americanos continuam comprando armas de fogo, embora já exista mais de uma arma por cada cidadão, incluídos crianças e avós. O trumpismo não foi uma loucura provisória. É a expressão da alma branca de um país que nasceu e prosperou graças ao genocídio, a deportação, a escravidão massiva. Os efeitos globais da desintegração dos Estados Unidos não podem ser previstos.
Uma vez que surja uma vacina, acredita que a humanidade relaxará e o dano ecológico voltará a se aprofundar ou será possível repensar a relação com o meio ambiente? Existe o risco de uma vida em estado pandêmico permanente?
Claro que existe. A Covid foi apenas um dos vírus que podem proliferar contagiosamente. Não posso entrar em detalhes sobre a possibilidade de uma vacina eficaz porque não sou biólogo, mas não acredito que a experiência do coronavírus acabe com a vacina. A pandemia 2020 foi só o começo de uma época de catástrofes globais, em nível biológico, ambiental e militar.
O efeito da pandemia sobre o meio ambiente é contraditório também. De um lado, houve uma redução dos consumos de energia fóssil, um bloqueio da poluição industrial e urbana. Do outro, a situação econômica obriga a sociedade a se ocupar dos problemas imediatos e adiar as soluções de longo prazo. E não há longo prazo em nível da crise ambiental, porque os efeitos do aquecimento global já ocorrem. Mas, ao mesmo tempo, podemos imaginar (e propor) a criação de redes comunitárias autônomas que não dependam do princípio do proveito e a acumulação. Comunidades do sobreviver frugal.
Maristella Svampa, socióloga argentina, considera que a metáfora do inimigo invisível no discurso político oculta a dimensão ambiental do vírus. Concorda?
Concordo. A Covid-19 é uma emergência particular do colapso ambiental. As elites políticas não me parecem à altura do problema, o que dizem não me parece muito importante. A política em seu conjunto é impotente. O que fazem os políticos “bons” (como Conte na Itália)? Aplicam a disciplina sanitária obrigatória, colam-se à decisão científica, que toma o lugar da decisão política. O que fazem os maus (Bolsonaro, Trump...)? Negam-se à decisão científica e afirmam a autonomia da política.
Mas a política se tornou um jogo sem sentido, sem conhecimento. A potência do político é a loucura, a vingança, a raiva contra a impotência. Se a política foi durante a idade moderna uma expressão da vontade, agora, está morta porque a vontade humana perdeu sua eficácia sobre o processo real.
Como imagina que serão os vínculos após a pandemia? Como são agora?
A pandemia marca uma ruptura antropológica de uma profundidade abismal. Pensemos no ato mais humano de todos: o beijo, o aproximar-se dos lábios, o acariciar paulatino e doce da língua no interior da boca de outro ser humano. Este ato se tornou o mais perigoso e antissocial que se possa imaginar. Que efeito irá produzir esta novidade no inconsciente coletivo? Uma sensibilização fóbica ao corpo e a pele do outro. Uma epidemia de solidão e, portanto, de depressão.
Em nível social, o distanciamento implica o fim de toda solidariedade. Em nível do inconsciente, equivale à bomba atômica. Temos que reinventar a afetividade, o desejo, o toque, o sexo, mas... temos a força psíquica para isso? Não me parece. Mas repito com determinação: estamos no limiar, não conseguimos saber como sairemos da oscilação na qual o inconsciente está capturado.
Agamben escreveu sobre a limitação da liberdade, “aceita em nome de um desejo de segurança induzido pelos mesmos governos que agora intervém para o satisfazer”. O que pensa sobre o controle do Estado, com a pandemia como pano de fundo?
O Estado se identifica cada vez mais com as grandes agências de controle informático, de captura de enormes quantidades de dados. Não existe mais como entidade política, territorial. Segue existindo na cabeça dos soberanistas de direita e de esquerda. Não existe a política, perdeu todo o seu poder. Não existe o Estado como organização da vontade coletiva, não existe a democracia. São todas palavras que perderam seu sentido.
O Estado é o conjunto da disciplina sanitária obrigatória, dos automatismos tecnofinanceiros e da organização violenta da repressão contra os movimentos do trabalho. O lugar do poder não é o Estado, uma realidade moderna que acabou com o fim da modernidade. O lugar do poder é o capitalismo em sua forma semiótica, psíquica, militar, financeira: as grandes empresas de domínio sobre a mente humana e a atividade social.
Nos países da América Latina, a dicotomia que se apresenta nos textos filosóficos europeus (capitalismo-comunismo) não ressoa do mesmo modo. Aqui, pensamos mais em termos de um Estado presente. Que leitura faz da pandemia em relação a dois cenários com diferenças estruturais como América Latina e Europa?
Na América Latina houve uma força particular, um discurso neossoberanista de esquerda, o que poderíamos chamar de populismo de esquerda, segundo a versão de Laclau, Jorge Alemán e outros. A experiência lulista, a kirchnerista, a de Evo na Bolívia e o chavismo são experimentos de soberania popular, democráticos, com tentativas sociais. Foram valiosos, talvez mais ou menos exitosos. Mas, ao final, todos fracassaram, porque a complexidade da globalização capitalista não deixa espaços de manobra a nível nacional, provocando a violência da reação.
A pandemia é um teste da impossibilidade de atuar na dimensão nacional. Claro que pode haver uma gestão racional da pandemia, como a da Argentina, e uma maneira irresponsável e genocida como a do Brasil. Mas, ao final, a pandemia está provocando um apocalipse global que nenhuma política racional pode evitar. Marca também o fracasso final de qualquer hipótese soberanista, de esquerda e de direita.
O que pensa dos movimentos “antiquarentena”? A ideia da liberdade foi cooptada pela extrema direita?
A palavra “liberdade” é um mal-entendido da filosofia moderna e do pensamento político. Os que falam de liberdade na época dos automatismos tecnofinanceiros não sabem do que estão falando. O inimigo da liberdade não é o tirano político, mas os vínculos matemáticos das finanças e os digitais da conexão obrigatória. Há uma liberdade ontológica que significa que Deus decidiu não determinar a direção da vida humana, deixando assim o livre-arbítrio aos humanos. Mas a matéria de que os organismos são compostos determina profundamente a possibilidade de atuação do organismo. E a matéria social, a economia, a doença, a proliferação viral são verdadeiros matadores da liberdade.
A modernidade foi capaz de inventar um espaço de liberdade verdadeiro. O poder da política moderna (de Maquiavel a Lenin) foi a capacidade de escolher estrategicamente e agir taticamente para dobrar não toda a realidade, mas, sim, espaços relevantes da realidade social, técnica, até médica. O fim da modernidade marca também o fim desta liberdade marginal. A criação de automatismos tecnofinanceiros destroçou o poder político da vontade, matou a democracia.
A palavra liberdade hoje significa apenas liberdade de explorar os que não podem se defender, de tornar os outros escravos, de matar os africanos que querem sobreviver migrando para a Europa. Liberdade, hoje, é uma palavra assassina. Só igualdade é uma palavra que pode restabelecer algo de humano entre os humanos.
“Acredito que a pandemia atual marca a saída definitiva da época moderna da expansão e o ingresso na época da extinção”, escreveu. Consegue imaginar quanto tempo nos resta? A extinção é inevitável?
Antes de mais nada, não sou um adivinhador. Quando digo que entramos na época da extinção, quero dizer que no horizonte futuro a simples conclusão linear das tendências existentes (sobre-exploração, poluição, aquecimento global, redução do espaço habitável, multiplicação dos gastos militares, proliferação das guerras, epidemia psicótica) não implica outra perspectiva realista que a extinção da civilidade humana (que já está se manifestando) e da espécie humana (que parece cada vez mais provável). Mas estou convencido de que o inevitável, muitas vezes, não se realiza porque o imprevisível tende a prevalecer.
Uma das muitas coisas que o vírus modifica é como se vive a morte e o luto. Em “Más allá del colapso”, você se refere ao retorno da morte na cena do discurso filosófico. Como se pode ler esta mudança?
A morte foi removida, negada, apagada na cena imaginária da modernidade. O capitalismo foi a tentativa mais exitosa de alcançar a imortalidade. A acumulação de capital é imortal. A vida humana se identifica com o seu produto abstrato e consegue viver imortalmente na abstração. Em consequência, rejeitamos a ideia de nossa mortalidade individual, porque consideramos a vida como propriedade privada que não pode acabar.
A destruição sistemática do meio ambiente é a prova de que não acreditamos na mortalidade. Não importa se matamos a natureza, porque é a simples maneira de realizar a acumulação de capital, nossa eternidade. Mas a pandemia nos obriga a reconhecer que a morte existe, que é o destino de cada ver vivente. A abstração perdeu sua potência, o dinheiro não pode nada frente à morte. O problema é que não estamos falando (só) da individual, estamos falando da extinção do gênero humano como horizonte de nossa época.
Quando a pandemia finalmente se dissipar (supondo que isso aconteça), é possível que se tenha imposto uma nova identificação psicológica: online equivale à doença”, escreveu. Pode dar mais detalhes sobre isto e sobre que lugar ficará para o corpo?
Seria possível verificar algo muito interessante: depois de um longo tempo em que a relação corpórea foi substituída pela online, seria possível verificar uma identificação psíquica da dimensão online com a doença, com um período de solidão e medo. Como se resolverá a oscilação? Com uma epidemia de autismo suicida ou com uma explosão de desejo libertador? Não sabemos, mas podemos refletir sobre as alternativas que vão sendo designadas no limiar.
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“A pandemia marca o fracasso final de qualquer hipótese soberanista, de esquerda e de direita”. Entrevista com Franco “Bifo” Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU