21 Agosto 2020
Políticos e fazendeiros avançam sobre solo sagrado dos Paresí no Mato Grosso, utilizados pelo marketing do governo Bolsonaro; vice-prefeito no Paraná e dono bilionário do grupo Fertipar reclamam áreas na Terra Indígena Ponte de Pedra, no oeste do estado.
A reportagem é de Caio de Freitas Paes, publicada por De Olho Nos Ruralistas, 20-08-2020.
No oeste do Mato Grosso, o avanço da pandemia do novo coronavírus e as invasões em terras indígenas correm juntas. Com mais de 40 casos confirmados de Covid-19, os Paresí da Terra Indígena Ponte de Pedra se depararam no início de julho com uma longa cerca, porteira e a presença de implementos e vestígios de maquinários agrícolas em suas terras. Os indígenas costumam ser descritos pelo governo Bolsonaro e por defensores de novas regras para terras indígenas como “índios sojeiros”.
Servidores da Funai receberam tiros de invasores.
(Foto: Reprodução)
Avisados, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) e policiais foram inspecionar a região, na tarde do dia 07 de julho, uma terça-feira. O que era uma apuração rotineira virou desespero quando um dos ocupantes da comitiva avisou: “Acelera, tão atirando em nós!”. No vídeo gravado pelos servidores, é possível ouvir o som das balas estufando na lataria da caminhonete enquanto eles fogem. “Levamos três tiros, não vamos revidar porque não é nossa função, mas tá aqui a prova”, diz um dos servidores ao resto da equipe.
Com a divulgação das imagens, ruralistas da região acusaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pelo ataque. No dia seguinte, uma notícia publicada pelo Portal Campo Novo — e veiculada em sites ligados ao agronegócio, como o Notícias Agrícolas e Compre Rural — descreveu a situação como “tensa”, afirmando, sem qualquer evidência, que os camponeses tinham invadido a “aldeia Ponte de Pedra”. Horas depois, o MST negou a versão do portal, que atualizou a notícia removendo a menção ao movimento.
O que os portais ignoraram foi que a única intrusão documentada nos últimos meses foi de uma família de agricultores e empresários paranaenses, beneficiados pela Instrução Normativa nº 9, da Funai, que abriu caminho para o registro de imóveis rurais sobre terras indígenas pendentes de homologação, como a Ponte de Pedra. “Os responsáveis pela fazenda disseram que só construíram cercas porque a Funai editou a normativa nº 9, os autorizando a ocuparem a área, depois certificada pelo Sistema de Gestão Fundiária (Sigef)”, afirma o procurador da República no Mato Grosso Ricardo Pael.
Dados dos governos estadual e federal mostram que há muitos outros não indígenas de olho nas terras: entre eles, um dos homens mais ricos do país, Alceu Elias Feldmann, dono da Fertipar, maior produtora nacional de fertilizantes agrícolas.
Um mês antes do ataque aos servidores da Funai, no dia 03 de junho, o Sigef apontou o registro de uma fazenda de 7,5 mil hectares ocupando metade da área demarcada da TI Ponte de Pedra. O código do imóvel equivale no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) à Fazenda Ponte de Pedra, pertencente à Nailor Antônio Marchezan e seus filhos Rodrigo, Neila Patrícia e Nádia Roberta.
Fazenda de paranaenses toma quase metade da área da TI Ponte de Pedra. (Imagem: Sigef | Incra)
Baseados em Santa Isabel do Ivaí (PR), os Marchezan são figuras influentes no Paraná, donos de uma fábrica de torneiras e objetos metálicos. Um dos herdeiros, Rodrigo Fontana Marchezan (PSB) foi eleito vice-prefeito do município em 2016. Em sua declaração à Justiça Eleitoral não consta nenhum imóvel no Mato Grosso.
Os Marchezan também são agricultores em outros cantos do país. Foi por isso, aliás, que o patriarca Nailor Antônio invadiu outra área restrita, no Mato Grosso do Sul. Em 2011, ele foi alvo de um inquérito civil pelo Ministério Público Estadual, por plantar arroz ilegalmente em uma área de preservação no município de Batayporã (MS).
Segundo o MP, Nailor “causou dano a Unidade de Conservação por ter, sem a devida licença ou autorização do órgão ambiental, cultivado arroz irrigado, utilizado as águas e construído uma edificação em alvenaria e aterro de 600 metros, às margens da denominada Lagoa Comprida, considerada área de proteção ambiental“.
A acusação baseou-se em uma vistoria da Polícia Militar Ambiental na área, em 2006. Nailor admitiu o crime, mas a Justiça o inocentou anos depois.
Não bastasse a ofensiva de latifundiários, pistoleiros e políticos, os Paresí enfrentam outro rival de peso. O magnata Alceu Elias Feldmann tenta, desde 2016, regularizar sua posse sobre a Fazenda Ponte de Pedra — não confundir com o imóvel pertencente aos Marchezan —, alvo de um processo de usucapião. Para a Justiça do Mato Grosso, Feldmann comprovou a “posse continuada durante o prazo previsto em lei” dos 7,4 mil hectares, hoje sob análise do governo mato-grossense.
Fortuna de US$ 2,2 bi levou Feldmann (centro) à lista da Forbes em 2019. (Foto: Divulgação)
Listado pela revista Forbes como o 1.057º homem mais rico do mundo, com um patrimônio de US$ 2,2 bilhões (e empatado com o bolsonarista Luciano Hang, dono das lojas Havan), ele é dono de 10 mil hectares em Campo Novo dos Parecis, divididos entre três fazendas.
Seu conglomerado, Fertipar, é dos principais no mercado brasileiro e internacional, com produção estimada em mais de 6 milhões de toneladas de fertilizantes por ano. Mas parte de sua riqueza já transitou por vielas obscuras do mercado financeiro.
Em 2014, Feldmann foi investigado pelo antigo Comitê Operacional de Atividades Financeiras (COAF) durante o escândalo Swissleaks, um gigantesco esquema de evasão fiscal envolvendo milhares de correntistas do banco HSBC na Suíça. Parte do dinheiro teria irrigado campanhas políticas nas eleições daquele ano. O empresário aparecia na lista de envolvidos com nove transações suspeitas alertadas à Polícia Federal.
Ao jornalista Fernando Rodrigues, hoje diretor do Poder 360, o bilionário não quis comentar as suspeitas de então e disse que suas doações eleitorais seguiram as regras do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Procurado pela reportagem, o empresário não respondeu às perguntas sobre as terras mato-grossenses.
Apelidados como “índios sojeiros”, os Paresí tornaram-se uma das peças centrais do lobby ruralista pela abertura das terras indígenas à agropecuária. Desde 2003, membros da etnia vêm arrendando partes do território — que engloba nove TIs entre os municípios de Tangará da Serra, Campo Novo do Parecis, Sapezal, Campos de Júlio, Nova Lacerda e Nova Maringá — para o cultivo mecanizado de soja.
A disputa se intensificou em 2018, quando o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autuou dezesseis fazendeiros por plantarem soja transgênica em áreas indígenas arrendadas, prática proibida pela Lei nº 11.460/2007. Desde então, fazendeiros e políticos tornaram-se presença constante nos festivais de abertura da safra, trajando cocares, penachos e outros adereços. Entre eles, o governador Mauro Mendes (DEM) e os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e da Agricultura, Tereza Cristina.
A pressão para regularizar a situação da soja produzida em território Paresí, permitindo assim sua exportação, foi contemplada pelo presidente Jair Bolsonaro, que enviou ao Congresso em fevereiro o Projeto de Lei nº 191/2020. Se aprovada, a proposta legalizará as atividades de mineração e plantio de transgênicos em terras indígenas.
A abertura ao agronegócio, no entanto, não contempla os 17 mil hectares da TI Ponte de Pedra, que tem um significado especial para a etnia. Situada entre Campo Novo dos Parecis, Diamantino e Nova Maringá, essa terra indígena resguarda o solo mais sagrado à mitologia Paresí. “Mesmo com nossos projetos agrícolas, aqui é diferente, queremos manter como sempre foi”, diz Gilmar Paresí, presidente da Comissão de Saúde Halití-Paresí. “É onde estão muitos de nossos espíritos, nosso povo que fala conosco à noite”.
A lenda conta que foi no rio Ponte de Pedra que surgiu Wazare, herói mítico vindo ao mundo para nomear os seres e as coisas. “Para vocês entenderem, é como se Ponte de Pedra fosse, para nós, a mesma coisa que Belém para os cristãos”, afirma Gilmar.
Nada disso parece importar à diretoria da Funai. Quando o presidente Marcelo Xavier publicou a fatídica normativa nº 9, automaticamente abriu a porteira da TI Ponte de Pedra e de outros duzentos territórios no país. Sua canetada escancarou ao menos 9,8 milhões de hectares de terras indígenas ao agronegócio, uma área comparável à da Islândia.
O Mato Grosso tem sido ponta de lança da ofensiva contra terras indígenas no país. Territórios como Batelão, Manoki, Menkü e Piripkura são alguns dos que já foram alvo de novos registros do Incra desde maio. Ocorreram ao menos 49 novas certificações dentro destas terras indígenas nos últimos meses, segundo levantamento da Operação Amazônia Nativa (Opan).
Em junho, a Justiça Federal suspendeu temporariamente a aplicação da normativa nº 9 no Mato Grosso, mas o Ministério Público Federal (MPF) descobriu que a decisão não foi cumprida pelo governo Bolsonaro. “Identificamos vários registros no Sigef mesmo depois da liminar concedida pela Justiça, barrando a aplicação dessa normativa”, afirma o procurador Ricardo Pael.
O MPF afirma que só em um território, Apiaká do Pontal e Isolados, nove fazendas foram certificadas após a proibição judicial. Juntas, somam mais de 37 mil hectares. Com base na denúncia, o juiz da 3ª Vara Federal em Mato Grosso, Cesar Augusto Bearsi, intimou Funai e Incra a darem explicações até o dia 10 de agosto, sob a pena de serem multados em R$ 100 mil.
Ao De Olho nos Ruralistas, a Funai informou que a normativa nº 9 segue em vigor em todo país, com exceção de Acre, Amazonas, Mato Grosso e Pará. Disse ainda que a medida traz “segurança jurídica e respeito ao direito de propriedade de cidadãos indígenas e não-indígenas” e não informou quantos pedidos de registro foram autorizados nos últimos meses.
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Funai e Incra certificam latifúndio em território dos “índios sojeiros” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU