05 Agosto 2020
“Não se pode ver a história, nem seus construtores e instituições como uma fotografia. Por isso, finalmente, no dia 27 de abril de 2019, o Papa Francisco assinou a beatificação de dom Enrique Angelelli, dos sacerdotes Carlos Murias e Gabriel Longueville e do leigo Wenceslao Pedernera. A beatificação é o passo prévio ao reconhecimento de um fiel católico como santo. Santos populares do martírio latino-americano”, escreve Andrea Holgado, em artigo publicado por Télam, 04-08-2020. A tradução é do Cepat.
“Os nossos caminhavam por aí com uma bofetada invisível na face (...), os nossos se destacavam por uma nervosa melancolia específica no rosto, um olhar um pouco apreensivo, uma sombra de ausência, certa corcova interior pouco visível. Os nossos caminham pela cidade como pela mata, todos assustados, dizia Selim, nós também éramos os nossos”, em ‘O ministério del dolor’, de Dubravka Ugresic
Há pessoas que são produto de seu tempo, quando aceitam os desafios da história e se comprometem com esse tempo histórico, suas lutas e contradições. Dom Enrique Angelelli foi assim. E como aconteceu ao longo da história trágica da Argentina, para ele, assim como para tantos, não foi de graça.
A simplificação com a qual muitas vezes se evoca ou se apresenta na história pessoas que marcaram uma época ou foram uma referência em seu lugar de pertença, longe de dar conta da complexidade dos processos políticos, históricos, sociais e culturais, acabam as transformando em uma foto fora de contexto. Vemos a foto e não o filme com todas as suas tonalidades, assim como é a vida. Sempre há outra história, e como sempre, é mais rica e complexa.
A ditadura de 1976 foi um projeto político econômico e como tal se voltou contra todos os setores e atores sociais que foram um obstáculo. Isso é ver o filme. A brutalidade se encarnou no desaparecimento, tortura e assassinato de pessoas concretas, com suas histórias e suas vidas que tinham sonhos cotidianos, como qualquer um, como formar uma família. Também aqueles empresários que quiseram pensar um país com produção nacional, artistas, alguns militares, referências sociais e sindicais e membros da Igreja acompanhando os fiéis em uma paróquia de bairro. Um deles foi um bispo: Dom Angelelli.
Disse Pilar Calveiro que a repetição pontual de um mesmo relato, sem variação ao longo dos anos, pode representar não o triunfo da memória, sem sua derrota, porque a memória é um ato de recriação do passado, a partir da realidade do presente. Recuperar a historicidade do que se recorda, reconhecendo o sentido que em seu momento teve para os protagonistas e, ao mesmo tempo, revisitar o passado como algo carregado de sentido para o presente.
Angelelli foi um membro da Igreja Católica, um bispo, um homem comprometido com seu tempo, isso é ver o filme, sua pertença a uma estrutura religiosa que teve suas contradições, como todas as instituições da época. E como a história não é algo linear, mas com avanços, retrocessos e contradições, hoje, Angelelli, negado em seu momento por essa estrutura eclesial, foi beatificado e está em processo de santificação por essa mesma Igreja que certa vez o abandonou.
Já desde sua Córdoba natal, quando voltou de Roma, manifestou sua precoce opção pelos pobres, segundo narra o filósofo e teólogo Luis Miguel Baronetto, e acrescenta que foi desde seus inícios um sacerdote alegre, comunicativo, serviçal e compreensivo, que gerou um amplo consenso, tanto no clero como entre os trabalhadores, estudantes e bairros, para onde costumava, segundo conta Baronetto, se dirigir com sua motocicleta Puma, 2ª série, que havia batizado como “Providência”, porque “só arrancava com a ajuda de Deus”.
Identificado com a renovação da Igreja promovida pelo Papa João XXIII, participou dos debates do Concílio Ecumênico Vaticano II, em Roma, onde em 1965, junto com outros quarenta e dois bispos, assinou o Pacto das Catacumbas, por uma Igreja servidora e pobre.
Em agosto de 1968, assumiu como titular da Diocese de La Rioja. Prontamente, foi visto como um perigo pelos poderes e proprietários de terra, quando começou a mobilizar os setores afundados no esquecimento. Promoveu a formação de cooperativas de camponeses e animou a organização sindical de trabalhadores rurais, os mineiros e as empregadas domésticas.
A perseguição aumentou após instaurada a ditadura militar, em março de 1976. No dia 18 de julho de 1976, foram assassinados Frei Carlos Murias e o Padre Gabriel Longueville, em Chamical, e no 25, o dirigente cooperativista leigo Wenceslao Pedernera.
No dia 4 de agosto de 1976, quando o bispo Angelelli retornava a La Rioja, foi assassinado perto de Punta de Los Llanos. Após décadas de impunidade, a causa finalizou com a sentença condenatória de alguns dos responsáveis, no ano de 2014.
Não se pode ver a história, nem seus construtores e instituições como uma fotografia. Por isso, finalmente, no dia 27 de abril de 2019, o Papa Francisco assinou a beatificação de dom Enrique Angelelli, dos sacerdotes Carlos Murias e Gabriel Longueville e do leigo Wenceslao Pedernera. A beatificação é o passo prévio ao reconhecimento de um fiel católico como santo. Santos populares do martírio latino-americano.
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Os santos populares: sangue e martírio de nossa América - Instituto Humanitas Unisinos - IHU