31 Julho 2020
Conflitos pelo uso da água crescem a cada ano e atingem diretamente populações locais; conheça alguns casos.
A reportagem é de Lu Sudré, publicada por Brasil de Fato, 30-07-2020.
“A margem do rio é toda cercada, toda tomada. Alguns pescadores que não moram nas beiradas, moram mais afastados, ficam sem acesso. Tem vez que eles caminham longe para poder encontrar uma brecha… O rio está todo cercado pelos donos das roças, tem muitas que é do agronegócio mesmo. Elas pegam a margem toda, não deixam um corredor pras pessoas terem acesso”.
O relato é de uma nordestina que só não se diz pescadora desde que nasceu por não ter vindo ao mundo dentro das águas do rio. Aos 64 anos, Maria Alice Borges sente na pele as mudanças na vida da população que, assim como ela, mora perto da Lagoa do Curralinho, em Itamotinga, no município de Juazeiro (BA).
Após a transposição do São Francisco e chegada da Companhia Hidrelétrica (Chesf), que explora a bacia hidrográfica, ela afirma que a presença de grandes empresas do agronegócio se fortaleceu por toda a região, criando uma realidade trágica por todo perímetro do rio.
Enquanto as águas são usadas para a irrigação do monocultivo de cana e frutas, os pescadores perdem a possibilidade de manter seu modo de vida tradicional e assistem ao fluxo do rio diminuir nos escassos pontos de acesso livre.
De acordo com a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), o setor do agronegócio consome 70% das águas no país.
“Aqui na região tem a Ebraz, a Agrovale que é da cana, tem uma grande que é dos japoneses... E de jeito nenhum eles vão dar acesso pras pessoas passarem”, reitera Maria Alice, que já perdeu a conta de quantas empresas atuam na região.
As limitações não estão somente relacionadas ao acesso à margem do rio e também são resultado das transformações impostas por sucessivos megaprojetos na região. A atuação da Usina Hidrelétrica de Sobradinho – inaugurada pelo governo militar em 1982 –, por exemplo, já fez com que a trabalhadora perdesse seu barco de pesca.
“O rio sobe e o rio desce de acordo com a necessidade da Chesf. Quando querem que aqui tenha água de acordo com interesse de alguém, ela solta a água sem medir as consequências para os ribeirinhos, para os pescadores com embarcações das águas do rio. E dos pequenos agricultores, que plantam feijão e mandioca, não querem saber. A água vem e toma tudo.”
Segundo Cristina Nascimento, coordenadora da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), o perímetro do rio São Francisco é o grande exemplo da expansão do chamado agrohidronegócio. “O mercado olhou para o Nordeste como um lugar de oportunidade a partir da água. Sempre se avaliou que as terras não dariam frutos. Mas água, em boa quantidade, com a outorga do Estado garantindo a autorização para produção, é uma mina”, afirma.
“A água tem sido cada vez mais tomada por grandes corporações e projetos de irrigação, com grandes estruturas hídricas direcionadas para as indústrias. Essa população fica cada vez mais à margem do acesso ao direito. No nosso olhar, a desigualdade social é explicitada no nosso país pelo não acesso”, critica a ativista.
Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) publicado em abril deste ano, atestou um aumento de 77% nos confrontos pelo uso da água no Brasil. Enquanto em 2018 foram identificados 276 conflitos, em 2019 o número chegou a 489 casos envolvendo mais de 69 mil famílias. O maior já registrado até hoje.
Os conflitos se deram predominantemente pelo uso e pela preservação da água (59,51% dos casos), mas também na luta contra a construção de barragens e açudes (25,7%), em mobilizações contra a apropriação privada dos recursos hídricos e em casos de cobrança do uso da água no campo (14,72 %).
O documento considera questões provocadas pela mineração, pela presença de empresários de diversos setores, por hidrelétricas e pela ação ou omissão dos governos federal, estaduais e municipais.
Vítimas do derramamento de óleo na região Nordeste, os pescadores foram afetados em 199 dos conflitos registrados pela CPT, aproximadamente 41% do total. Outras populações atingidas são os ribeirinhos, pequenos proprietários e quilombolas.
Bahia, Sergipe e Minas Gerais concentram 61% dos conflitos. Não por coincidência, ressalta Ruben Alfredo Siqueira, um dos coordenadores da CPT, são essas as regiões mais cobiçadas pela mineração e pelo agronegócio atualmente.
Gráfico: Reprodução
Em entrevista ao Brasil de Fato, Siqueira lamenta que os conflitos remontem a época da ditadura, quando o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino foi criado para acompanhar e monitorar episódios de violência contra comunidades tradicionais e trabalhadores do campo vítimas da expansão do latifúndio.
Tem um discurso de geração de emprego e renda, de progresso. Mas o que fica dessas empresas que atuam de forma neocolonial é o estrago
Agora, é a água por baixo da terra que está no centro da disputa. Novamente, a atuação da Agrovale, dona da maior área plena de irrigação da cana-de-açúcar no Brasil, é citada.
De acordo com o integrante da CPT, a adutora da empresa atravessava várias comunidades entre Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), impedindo o acesso direto da população. Sem outra alternativa, as comunidades locais chegaram a fazer furos na tubulação para acessar as águas do São Francisco.
“Eles estavam cercados de cana, não tinham acesso ao rio, não tinham água. Foi uma luta até que se obrigou a empresa, como parte da negociação das outorgas públicas, a liberar água para as comunidades por onde passava a adutora. E isso não foi prejuízo para a empresa, ficou como negociação, abatimento de imposto”, comenta.
Ruben exemplifica o cenário com outro caso de apropriação particular de um açude no município de Nordestina, pela Companhia de Ferro Ligas da Bahia (Ferbasa).
“Os açudes de várias comunidades, de pescadores inclusive, são onde a empresas captam água [para lavagem do minério] e devolvem o rejeito. Imagina o caos, o conflito que é. Tem um discurso de geração de emprego e renda, de progresso. Mas o que fica dessas empresas que atuam de forma neocolonial é o estrago”, critica.
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“Ninguém vai morrer de sede”
O município de Correntina, no oeste baiano, foi palco de um dos conflitos mais intensos por água da história do país. Rica em recursos hídricos e cobiçada por empresas mantidas pelo capital estrangeiro há décadas, o município de pouco mais de 33 mil habitantes viu um dos seus principais rios evaporar.
As comunidades rurais de Fundo e Fecho de Pasto, que sobrevivem por meio da irrigação tradicional do rio Arrojado, integrante da bacia do rio Corrente e um afluente do São Francisco, e da criação de gado, foram frontalmente atingidas com a chegada da Fazenda Igarashi, focada na produção agrícola para exportação.
Tudo começou em 2015, quando Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) concedeu a Lavoura e Pecuária Igarashi Ltda o direito de retirar do rio Arrojado uma vazão de 182.203 m³/dia, durante 14 horas/dia, para a irrigação de mais de 2.539 mil hectares.
Com o passar do tempo, além da percepção da população, também o Ministério Público do estado constatou que apenas 12 bombas de captação de água ligadas por 12 minutos reduziam o nível da água do rio em 15 centímetros. A água usada cotidianamente pelo povo estava sumindo.
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Em 2017, em resposta à escassez que afetou os moradores, mais de 500 pessoas se manifestaram e destruíram maquinários das fazendas do grupo. O confronto direto gerou um prejuízo estimado pela empresa de R$60 milhões.
Ninguém vai morrer de sede na beira dos nossos rios.
O estopim, que ganhou a mídia nacional, era um grito contra a secagem de dezenas de nascentes e regos responsáveis por um sistema de irrigação coletivo e centenário, protegido pelos agricultores e quilombolas.
“Eles se reuniram, entraram na empresa e quebraram tudo. Derrubaram as torres de energia e colocam fogo nas motobombas. No domingo seguinte, tinha 12 mil pessoas na rua em Correntina em apoio à ação feita por esses ribeirinhos. Correntina está sofrendo. Há grandes piscinões que pegam água dos aquíferos para as motobombas alimentarem os pivôs centrais. É uma coisa absurda”, relata Ruben.
“‘Ninguém vai morrer de sede na beira dos nossos rios’. É um grito de guerra que virou uma palavra de ordem e está aí até hoje”, reforça.
O coordenador da CPT complementa ainda que a região do Matopiba, que engloba áreas de quatro estados brasileiros, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, começou a ser delimitada pelo governo federal para o agronegócio em 2013.
Ele define o projeto como uma expressão da “financeirização da natureza”, já que incentiva a especulação de terras agrícolas no Cerrado pelo capital estrangeiro. “Eles correm para alguma economia real para embasar, via lastro, a continuidade da especulação. É o capital financeiro agrário”, diz.
Na avaliação do sociólogo Roberto Malvezzi, membro das Equipes de Assessoria da Rede Eclesial Pan-Amazônica e da Comissão de Ecologia Integral da CNBB, o momento político brasileiro nunca foi tão favorável às empresas privadas do setor da água, a exemplo do novo marco do saneamento básico.
Para avançar em direção às águas dos rios e dos aquíferos de água doce disponíveis no mundo, ele explica que a chamada oligarquia transnacional das águas, que também conta com grandes empresas engarrafadoras como Ambev e Coca-Cola, tentam subverter a lógica da água como um direito humano fundamental a partir de uma nova narrativa.
“A narrativa é a de que a melhor forma de gerenciar um recurso escasso dotado de valor econômico, é sua privatização. Transformaram isso em política no mundo inteiro. Na verdade, há uma escassez social: O manancial está ali mas está inapropriado. A pessoa está ali mas não pode acessar aquela água. Os canais estão cercados, as pessoas que estão na vizinhança não podem nem pegar um balde de água. Aquela água já tem dono. É esse tipo de escassez que precisamos considerar”, defende.
Na Chapada do Apodi, formação montanhosa brasileira localizada na divisa entre os estados do Rio Grande do Norte e do Ceará, o agronegócio e sua ampla demanda por irrigação também estão presentes.
Os aquíferos Açu e Jandaíra são os alvos principais da fruticultura da região, principalmente para a produção de melão, melancia e mamão. Agnaldo Fernandes, agricultor e líder comunitário da região, detalha que mais de 16 áreas de assentamento da reforma agrária na região estão ameaçadas em períodos de seca devido à criação do grande perímetro irrigado, chamado pelos movimentos sociais como “perímetro da morte”.
A água é privada, as empresas a sugam e inviabilizam o modo de vida camponês.
Assim como em Correntina, segundo ele, a implantação de grandes e médios empreendimentos do agronegócio no território tem secado os lençóis freáticos da região. Agnaldo conta que as empresas como a Agrícola Famosa, apoiada pela Bayer, e Melão Mossoró, são algumas das responsáveis por comprometer o abastecimento de água comunitário na região.
“O poço da comunidade está há 100 metros de profundidade, no máximo, enquanto a empresa chega e perfura poços de até 500 metros de profundidade. Onde vai faltar água primeiro? Para as pessoas. A água é privada, as empresas a sugam e inviabilizam o modo de vida camponês”, lamenta.
Além da ameaça à soberania alimentar, ele afirma que o agrohidronegócio que afeta a região cria um imbróglio político, já que o fornecimento de água passa ser utilizado como barganha eleitoral por parte de alguns políticos.
Enquanto a população vive sob ameaça, Agnaldo alerta que as empresas seguem “conquistando” novos limites territoriais. “Em Baraúnas se perfura o chão todo e não encontra mais água. As empresas vão migrando. Para nós, não. Não temos essa facilidade. Temos uma identidade muito forte com a terra”
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Os ativistas do Apodi também denunciam há décadas o intenso uso de agroquímicos na região, e os impactos da prática para a saúde pública e para o meio ambiente. Foi por ser um expoente dessa luta que o ativista José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé, foi assassinado em 2010, em Limoeiro do Norte, no Ceará.
A alta aplicação de agrotóxicos é uma preocupação da pescadora Maria Alice lá na Bahia, às margens do São Francisco. “É agrotóxico demais lançado no rio porque as plantações estão nas margens. Se são irrigadas, esse veneno cai no rio. E aí nos sentimos prejudicados. Sou uma das que não têm acesso à água tratada, bebemos água direto do rio. Ou seja: podemos estar bebendo água envenenada. Sem contar que os peixes sofrem. Não sabemos quando comemos um peixe sadio ou se está com agrotóxico”, desabafa a senhora de 64 anos.
Frente ao cenário, Cristina Nascimento, da ASA, alerta que as multinacionais lucram em cima da chamada “indústria da seca” no semiárido brasileiro.
“A prioridade sempre foi o desenvolvimento econômico. O social, na perspectiva do direito, acontece para justificar a necessidade das obras, mas o acesso ao bem e à água, por exemplo, não é algo previsto”, diz ela.
Se depender das sinalizações do Congresso Nacional, o alto número de conflitos por água deve se acirrar ainda mais. A opinião de Ruben Siqueira, membro da coordenação nacional da CPT, se baseia no fato de que, na esteira da aprovação do novo marco do saneamento, há também uma ameaça apresentada pelo projeto de lei projeto de lei 495 de 2017, de autoria do senador Tasso Jereissati.
A proposta que cria o chamado Mercado de Águas ainda não está em pauta mas prevê a mudança essencialmente o aspecto mais central da Lei das Águas, que instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e estabeleceu a água como um bem público inalienável. Ou seja, que não pode ser controlada por particulares.
De acordo com o texto de Tasso, a mudança na lei introduziria um “instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos”. O projeto prevê que aqueles que detêm outorga de determinadas águas, ou seja, a autorização para usá-las, majoritariamente setores do agronegócio e produtoras de refrigerantes, possam negociar águas excedentes com outros outorgados de uma mesma bacia hidrográfica.
Caso o projeto seja aprovado, para Ruben, o futuro será de alta conflitividade diante da mercantilização escancarada, já facilitada na área do saneamento.
“Vai ser uma Correntina por dia. Em todas as suas facetas e tendões, esse polvo do capital só dá tiro certeiro. Entra em um negócio com garantia legal, institucional, com certeza da lucratividade. E caem fora quando não mais interessa. Se o projeto do Jeiressati for aprovado, ai completa. É a cereja do bolo. Vamos viver guerras pela água”, sustenta o coordenador da CPT.
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Águas cercadas: como o agronegócio e a mineração secam rios no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU