08 Julho 2020
Supostamente, no dia 5 de julho, um parágrafo de um discurso pré-escrito do papa, no qual ele defendia a liberdade em Hong Kong, não foi lido por Francisco. Para evitar novas especulações, o Vaticano pode publicar o texto do acordo com a China de 2018.
O comentário é de Massimo Introvigne, sociólogo das religiões italiano e fundador e diretor-gerente do Centro de Estudos sobre as Novas Religiões (Cesnur), uma rede internacional de estudiosos que analisam os novos movimentos religiosos.
O artigo foi publicado em Bitter Winter, 07-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 5 de julho, um misterioso incidente que agradaria a Dan Brown ocorreu no Vaticano. Os discursos do papa são distribuídos aos jornalistas “sob embargo”, ou seja, o meio de comunicação só pode citá-los após o pronunciamento do papa. No passado, os jornalistas que violavam os embargos perdiam suas credenciais no Vaticano.
Supostamente, o texto embargado em italiano do habitual discurso dominical do Papa Francisco incluía um parágrafo sobre Hong Kong. Ele afirma o seguinte:
“Nesses últimos tempos, acompanhei com particular atenção, e não sem preocupação, o desenvolvimento da complexa situação em Hong Kong e desejo manifestar, acima de tudo, a minha cordial proximidade a todos os habitantes daquele território. No atual contexto, as temáticas negociadas são indubitavelmente delicadas e afetam a vida de todos. Por isso, é compreensível que haja uma forte sensibilidade a esse respeito. Desejo, portanto, que todas as pessoas envolvidas saibam enfrentar os vários problemas com espírito de sabedoria clarividente e de autêntico diálogo. Isso exige coragem, humildade, não violência e respeito pela dignidade e pelos direitos de todos. Formulo, ainda, o voto de que a vida social e especialmente a religiosa se expresse em plena e verdadeira liberdade, como, aliás, preveem vários documentos internacionais. Acompanho com a minha constante oração a comunidade católica e as pessoas de boa vontade de Hong Kong, para que possam construir juntas uma sociedade próspera e harmoniosa.”
Quando o Papa Francisco leu esse discurso, no entanto, o parágrafo foi omitido. Embora o texto tenha sido primeiramente vazado por um jornalista conhecido pela sua hostilidade a Francisco [Marco Tosatti], não há nenhuma razão para duvidar da sua autenticidade, e o Vaticano também não negou que seja um dos discursos pré-escritos usuais distribuídos sob embargo.
O texto era bastante moderado, mas a referência à “plena e verdadeira liberdade” e a “documentos internacionais” que a China deveria respeitar poderia ser irritante para os chineses, embora tenha sido equilibrado pela referência a uma “sociedade harmoniosa”, uma expressão frequentemente usada pelo presidente Xi Jinping.
Os críticos afirmam que, nas poucas horas entre a distribuição do texto sob embargo às mídias e o discurso, a China interveio. Isso não é impossível, mas teria sido algo extraordinariamente rápido. Um observador astuto viu no incidente o que em italiano eu seria tentado a chamar, com todo o respeito, de “avvertimento mafioso”, ou advertência mafiosa. De acordo com essa interpretação, o Vaticano deixou o texto circular para alertar os chineses sobre o que o papa “poderia” dizer se eles não exercessem alguma restrição.
Tudo isso aconteceu em um clima em que o silêncio do papa sobre Hong Kong foi frequentemente criticado, e abundam as especulações sobre a renovação do acordo Vaticano-China de 2018, previsto para setembro de 2020.
O Papa Francisco tem inimigos que são contrários a ele por razões totalmente não relacionadas à China, e eu pessoalmente não acredito em suas revelações sensacionais sobre o suposto apoio monetário da China ao Vaticano ou nas cláusulas sobre Hong Kong no acordo de 2018. Mas as especulações correm soltas, porque o texto de 2018 é secreto.
A minha proposta seria, antes que se assine uma renovação, como parece provável, ou não se assine, tornar seu texto público. Essa seria a maneira mais eficaz para eliminar boatos, notícias falsas e especulações. A objeção de que o sigilo faz parte do próprio contrato não é válida, pois sabemos que a renovação não é automática e, ao se renovar um contrato, as cláusulas sempre podem ser renegociadas.
A principal objeção é que acordos secretos fazem parte da diplomacia e podem servir para um bom propósito. No entanto, o Papa Francisco pediu várias vezes uma profunda reforma do modo como as instituições vaticanas atuam e defendeu um novo clima de transparência e sinodalidade.
Parece que pouquíssimas pessoas, mesmo no próprio Vaticano, sem falar da Igreja Católica chinesa, leram o acordo. O que está acontecendo na China, como o Bitter Winter documenta regularmente, é, no mínimo, contraditório. A perseguição a padres e bispos críticos do Partido Comunista Chinês, e às vezes até a alguns que não são críticos do regime, não parou.
O Vaticano não é apenas mais um governo. Em nome da transparência e da sinodalidade, a publicação do texto do acordo, ou pelo menos a sua circulação entre cardeais e bispos, contribuiria para desintoxicar aquela que está se tornando uma situação cada vez mais tóxica e disfuncional, e para proteger o próprio papa dos seus críticos mais vitriólicos.
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Papa Francisco e China: um mistério vaticano e uma proposta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU