26 Junho 2020
"Fico espantado com essa exaltação da celebração eucarística sem a presença do povo, de modo que aquilo que é um caso excepcional e, como tal, regulamentado pela Instrução Geral do Missal Romano (cf. n. 209), torna-se, de alguma forma, uma ocasião propícia para experimentar que a liturgia é acima de tudo o culto da majestade divina", escreve Washington Paranhos, padre jesuíta, professor do Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
Li com atenção uma “meditação” do cardeal Robert Sarah sobre “Covid-19 e o culto cristão” [1] e confesso que não fiquei surpreso com a reflexão do Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. A sua meditação vai na linha de pensamento de um movimento mais amplo e que busca encontrar ainda mais apoio dentro da Igreja. Exatamente porque há alguns meses um conhecido blog tradicionalista “Rorate caeli” [2] divulgou que a Congregação para a Doutrina da Fé enviou aos bispos de todo o mundo um questionário com uma série de perguntas sobre a situação do uso da forma extraordinária do Rito Romano na própria diocese. As nove perguntas tocam em todos os diferentes aspectos do problema; perguntas precisas às quais os bispos são convidados a responder até o próximo mês de julho. Diz-se que, com esta iniciativa, pretende-se informar ao Papa Francisco sobre a aplicação do motu proprio Summorum Pontificum 13 anos após sua promulgação[3].
Aprecio, de fato, o interesse e o amor que o cardeal Sarah manifesta pela liturgia e pela correta celebração. Embora sem entrar no mérito do conteúdo desta longa carta/meditação, um dos últimos esforço do cardeal, gostaria de exprimir, respeitosamente e com parresia, algumas das minhas perplexidades sobre as declarações contidas na carta.
O cardeal Sarah exalta o caráter “sagrado” da Igreja como um local de culto e lamenta o desfile de turistas que frequentemente se movem, sem respeito algum, no “templo santo do Deus vivo”. Gostaria apenas de lembrar, apoiando-me em São Paulo, que acima de tudo “nós somos o templo do Deus vivo” (2Cor 6,16). O Papa Francisco também recordava disso na Audiência Geral de 26 de junho de 2013, comentando Ef 2,20-22: “Isto é bonito! Nós somos as pedras vivas do edifício de Deus, profundamente unidas a Cristo, que é a pedra fundamental, e também de apoio entre nós. O que significa isto? Quer dizer que o templo somos nós mesmos, nós somos a Igreja viva, o templo vivo, e quando estamos unidos, entre nós está também o Espírito Santo, que nos ajuda a crescer como Igreja. Nós não estamos isolados, mas somos Povo de Deus: esta é a Igreja!” A atenção pelo sagrado, que permeia todo o texto do cardeal, deveria centrar-se acima de tudo na assembleia celebrante que, como diremos mais adiante, o cardeal acredita que pode ser dispensada.
Posteriormente, é afirmado, citando SC 33, que a liturgia é “principalmente culto da majestade divina” e, nesse contexto, é criticada a tendência da mentalidade ocidental contemporânea de exaltar a dimensão pedagógica da liturgia. Observo, porém, que o texto de SC 33, citado pelo cardeal, se exprime nestes termos: “Embora a sagrada Liturgia seja principalmente culto da majestade divina, é também abundante fonte de instrução para o povo fiel”. A Constituição conciliar cita aqui o Concílio de Trento. Portanto, o fato de a liturgia propor e desenvolver uma autêntica pedagogia da fé não deveria ser subestimada.
Nesta visão da liturgia, chega-se ao ponto de afirmar que em tempo de Covid-19 “muitos padres descobriram a celebração [da Eucaristia] sem a presença do povo. Dessa forma, eles experimentaram que a liturgia é principalmente e acima de tudo o culto da majestade divina […]. Celebrando sozinhos, não tendo mais o povo cristão sob seus olhos, e assim tomaram consciência que a celebração da Missa sempre se dirige ao Deus Trindade”.
Fico espantado com essa exaltação da celebração eucarística sem a presença do povo, de modo que aquilo que é um caso excepcional e, como tal, regulamentado pela Instrução Geral do Missal Romano (cf. n. 209), torna-se, de alguma forma, uma ocasião propícia para experimentar que a liturgia é acima de tudo o culto da majestade divina. A synaxis eucarística, que “é o centro da assembleia dos fiéis a que o presbítero preside” (PO n. 5), não pode se tornar uma “devoção privada” do presbítero. “As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é «sacramento de unidade», isto é, Povo santo reunido e ordenado sob a direção dos Bispos” (SC 26).
Observo ainda que o Catecismo da Igreja Católica, entre os nomes dados à Eucaristia, fala em “Assembleia Eucarística [‘synaxis’], porque a Eucaristia é celebrada na assembleia dos fiéis, expressão visível da Igreja” (n. 1329). O serviço dos ministros não deve ser entendido como separado ou acima daquele de toda a assembleia, mas deve ser entendido em uma visão unitária e global: na Igreja reunida que celebra, cada um intervém de acordo com diferentes papéis (cf. 1Cor 12,4-11.28-30; Rm 12,6-8). O presbítero que precisa celebrar sozinho para entender o significado da liturgia, ainda não entendeu o real significado de seu sacerdócio ministerial.
Como conclusão, é importante lembrar que a Última Ceia celebrou concretamente o amor humilde, servidor e salvador de Jesus. No Evangelho de João, é sempre oportuno mencionar isso, durante a Ceia, Jesus lavou os pés dos discípulos e lhes mandou fazer o que ele fez: “(...), vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que também vós façais assim como eu vos fiz” (Jo 13,14-15). Humildade, amor e serviço: marcas eternas do amor de Jesus. Ou seja, Jesus realizou uma ação simbólica (como faziam os Profetas do AT), e por isso, orienta aos seus discípulos para que façam o mesmo.
É interessante notar ainda que no Evangelho joanino não é descrita a instituição da Eucaristia, como nos evangelhos sinóticos, isso já foi abordado no capítulo 6, mas a ceia faz parte do mesmo contexto eucarístico: o lava-pés está no lugar da instituição da Eucaristia, de modo que a ação cúltica de ação de graças agradável a Deus é a promoção da vida, o serviço aos irmãos e irmãs; que o sacerdócio é fundamentalmente serviço integral e não somente cúltico à comunidade dos santos; e que onde dois ou mais se reunirem em nome de Jesus Cristo, ele estará presente no meio deles (cf. Mt 18,20), com ou sem sacerdotes, com ou sem ritos especiais de celebração, já que o próprio Cristo Jesus é o Sumo Sacerdote por excelência, o mesmo que disse que os adoradores que Deus procura são os que o adoram em espírito e verdade para além de templos e de ritos especiais (cf. Jo 4,23); que esses tempos de Covid-19 estão nos dizendo que igrejas abertas não são necessariamente sinônimos de corações abertos, nem que elas podem substituir os hospitais, onde quem está realmente promovendo a vida e servindo não são os sacerdotes, mas os médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, agentes de saúde em geral. Quem sabe o que o Papa Francisco disse sobre a “Igreja como hospital de campanha”[4] deva ser levado mais a sério (não somente em tempos de pandemia) a começar pelo clero? Porque “a lógica mundana impele-nos para o sucesso, o dinheiro. A lógica de Deus para a humildade, o serviço e o amor”[5] (Papa Francisco).
[1] Exclu : Covid-19 et culte chrétien, une lettre du cardinal Sarah.
[2] Rorate caeli
[3] Veja sobre este argumento em: Sintonia tra magistero pastorale e magistero magistrale: sotto esame lo “stato di eccezione liturgica” di “Summorum Pontificum”.
[4] Cf.: Discurso do Papa Francisco aos párocos da Diocese de Roma.
[5] TWITTER @PONTIFEX_PT, 2 de junho de 2013.
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A missa sem o povo: oportunidade para a espiritualidade do presbítero? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU