08 Mai 2020
Neste período tão estranho, a impossibilidade de frequentar os sacramentos e a missa põe o povo cristão diante de uma situação inédita, que levanta diversas interrogações.
A opinião é da neuropsiquiatra infantil e psicoterapeuta italiana Mariolina Ceriotti Migliarese, em artigo publicado em Avvenire, 07-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que a fé tem a ver com o alfabeto dos afetos? O fato é que a fé, aquela de verdade, tem a ver com tudo: com os afetos, com os pensamentos, com a vida.
Neste período tão estranho, a impossibilidade de frequentar os sacramentos e a missa põe o povo cristão diante de uma situação inédita, que levanta diversas interrogações.
Na discussão que foi aberta em muitas mídias, um comentário que eu vi no Facebook me fez refletir de modo particular. Uma pessoa que eu conheço, distante da fé, mas não hostil de modo prejudicial, escreve: por que os cristãos não podem renunciar por um tempo aos seus ritos em vista da saúde de todos e do bem comum?
Parece-me que essa pergunta expressa muito bem a subvalorização geral daquilo que os fiéis, por sua vez, levantam como uma questão crucial e que é a consequência lógica precisamente desse pensamento: isto é, que a Eucaristia é, para nós, “um rito”. Um rito certamente importante, respeitável, dotado de um forte valor simbólico e identitário, mas, como todos os ritos, certamente não indispensável em tempos de crise, porque a vida concreta vem antes de todo rito, mesmo que importante.
Mas, na verdade, o que nos falta é um rito? Um rito muito bonito, profundo, cheio de significados simbólicos, rico em valor identitário? É disso que se trata?
Eu acho que responder a essa pergunta é importante, porque a questão traz à tona como é profunda e generalizada hoje a incompreensão sobre o verdadeiro significado da fé. Nós devemos responder: não, não se trata apenas de um rito, nem da simples memória de um evento antigo, porque, no Sacramento, expressamos a certeza de encontrar Alguém.
A fé, para nós, é crer que, na Eucaristia, encontramos uma Pessoa viva, concreta e tangível: a Pessoa do Ressuscitado. A fé nos diz que não se trata de um encontro simbólico, mas sim de um encontro que tem a mesma consistência e realidade de um abraço, o encontro com uma Pessoa amada e que nos ama. Nós cremos em uma Presença concreta e vamos com alegria encontrar concretamente (não simbolicamente) Alguém que amamos.
Mas, se cremos e afirmamos isso abertamente e com simplicidade, torna-se subitamente evidente também para nós algo que geralmente não conseguimos perceber em todo o seu verdadeiro porte e que muitas vezes não consideramos até o fim, com todas as consequências que poderia envolver: que a fé no Cristo crucificado, ressuscitado e sempre presente representa, para todos os efeitos, um verdadeiro salto lógico, um salto para outra dimensão, algo incrível e verdadeiramente inédito. Algo que beira a loucura, mas que pode mudar realmente a vida.
Essa foi a maravilha e a dureza da mensagem cristã desde as origens: a entrada concreta, física de Deus no nosso mundo. A presença de Deus com um corpo que toca, acaricia, ama, sofre, morre. Um Deus morto e ressuscitado que não está alhures, mas permanece conosco e continua tocando, acariciando, amando; continua sofrendo com quem sofre e morrendo com quem morre.
A nossa religião coloca no centro a concretude do corpo, dá valor à concretude do gesto. O cristão não vive de símbolos, mas sim de uma realidade mais verdadeira e real do que qualquer outra realidade contingente. Ainda cremos nisso de verdade?
Talvez essa impossibilidade de participar da Eucaristia não afete apenas o sacrossanto princípio da nossa liberdade de culto, mas também constitua uma ferida capaz também de abrir um caminho. Uma ferida que pode se transformar em uma oportunidade preciosa: a de sair de uma fé domesticada, que perdeu a sua maravilha e a sua dureza, para reencontrar o fato de ser, ao mesmo tempo, tolice, escândalo, alegria e possibilidade. Aquela que nos permite ter o olhar livre daqueles que não precisam se encastelar ou se defender, mas vive toda circunstância como uma nova oportunidade: a de participar dia após dia da eterna criação de Deus.
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O que a fé reencontra sem a eucaristia. Artigo de Mariolina Ceriotti Migliarese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU