12 Junho 2020
Bose representa um microcosmo do cristianismo hoje, e a sua crise atual deve ser vista no contexto de uma Igreja que está passando por uma transição institucional e espiritual.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 10-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Patriarca ecumênico Bartolomeu I visita o Mosteiro de Bose em Cellole,
acolhido por Enzo Bianchi (à esquerda). (Foto: Monasterodibose.it)
A Igreja Católica na Itália ficou chocada nas últimas semanas depois que a Comunidade de Bose anunciou que a Santa Sé havia ordenado que seu fundador e ex-prior de 77 anos, Enzo Bianchi, deixasse o mosteiro ecumênico e fosse morar temporariamente em outro lugar.
Dois outros irmãos e uma irmã também receberam a ordem de deixar a comunidade.
O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado vaticano, emitiu a ordem no dia 13 de maio. E o Papa Francisco aprovou pessoalmente a decisão “in forma specifica”, o que significa que ela é definitiva e não há recurso.
A intervenção da Santa Sé começou com uma “visita apostólica” de um mês ao mosteiro, que a comunidade nunca solicitou, mas aceitou.
Três enviados papais realizaram a visita entre os dias 6 de dezembro de 2019 a 6 de janeiro de 2020. Eles redigiram um relatório que foi “elaborado com base na contribuição dos testemunhos livremente dados por cada membro da Comunidade”.
Os documentos relativos a esse caso (o relatório da visita, o decreto, a carta do cardeal Parolin à Comunidade) não foram disponibilizados ao público.
Bose não é uma comunidade monástica tradicional ou neomonástica. De fato, é algo mais.
Ela é composta principalmente por irmãos não ordenados e irmãs. Existe apenas uma presença mínima do clero, apenas com o objetivo de fornecer os sacramentos a seus membros e aos convidados da Comunidade.
Bose tem sido extremamente importante para o catolicismo italiano como um centro para o ressourcement – um “retorno às fontes” [refontalização] – teológico (bíblico, litúrgico, patrístico e ecumênico) do Vaticano II.
Sua redescoberta e reproposta das tradições cristãs primitivas – também nas Igrejas orientais, da Síria às primeiras missões cristãs à China – ampliaram os horizontes de muitos católicos. Inclusive de clérigos e leigos, especialistas e não especialistas.
Ela é também um centro de ressourcement em relação ao diálogo com a sociedade em geral, graças à sua conceituada editora [Qiqajon].
Bianchi e a Comunidade entenderam o potencial do “pós-secular”, sem nunca sucumbir à tentação do clericalismo, do integralismo ou da apologética.
Eles também não se deixaram seduzir pelos perigos opostos, como um vago espiritualismo que às vezes não é apenas pós-eclesial, mas também pós-cristão.
É por isso que aquelas pessoas que estiveram em Bose – católicas e não católicas – nunca esquecem a abordagem teológica abrangente da Comunidade, e não apenas as adoráveis liturgias e a famosa comida excelente.
Ainda me lembro de quando Bianchi se dirigiu a centenas de jovens líderes da Associação Católica de Escoteiros na Itália (Agesci, na sigla em italiano) em agosto de 1997.
Ele estava tentando libertar o catolicismo de uma identificação estrita com um foco obsessivo na moral sexual. Ele também disse coisas como por exemplo: “Como cristãos, não podemos entender a homossexualidade apenas a partir de uma perspectiva bíblica”.
Ainda estávamos no pontificado de João Paulo II, e eu havia começado a minha amizade com Enzo e a Comunidade. Depois, passei vários meses no início dos anos 2000 vivendo com eles e discernindo, com a ajuda deles, uma possível vocação monástica.
Conheço pessoalmente os envolvidos no doloroso caso atual. Mas não sou só eu. Um componente fundamental de Bose é a hospitalidade para retiros, cursos bíblicos e congressos. Todos os anos, quase 20.000 pessoas passam pelo mosteiro da Comunidade perto de Turim e pelas suas outras fraternidades no centro e no sul da Itália.
Os católicos italianos que desenvolveram uma fé adulta – e cresceram de outras formas também – sempre souberam que Bose estava lá, independentemente de quão ruim pudesse ser a situação na Igreja. Para eles, este último capítulo da história da Comunidade foi um trauma real.
Para a “geração Bose” dos católicos italianos, como eu os chamei, foi como assistir seus pais aparecerem perante o tribunal do divórcio. Mas, nesse caso, o juiz é o Papa Francisco, o que complica enormemente as coisas do ponto de vista espiritual e eclesial.
Felizmente, isso acabará sendo apenas uma separação temporária e não um divórcio pleno, porque há também implicações ecumênicas. Bose forjou laços importantes com as Igrejas protestantes e de modo especial com as Igrejas Ortodoxas Orientais – seus bispos e teólogos na Europa oriental, Oriente Médio, Rússia e Estados Unidos.
Existe uma antipatia profunda contra Bose em certos círculos tradicionalistas na Itália e no Vaticano. Mas esta recente intervenção da Santa Sé não tem nada a ver com problemas doutrinais relativos ao fundador, aos outros três membros que foram obrigados a sair ou à Comunidade em geral.
Pelo contrário, ela está relacionada à difícil transição de liderança do fundador ao novo prior, que foi eleito em 2017, depois que Bianchi renunciou livremente. O fundador já havia anunciado vários anos antes que acabaria renunciando.
A eleição do novo prior, Luciano Manicardi, ocorreu de acordo com a regra da Comunidade. E ocorreu em continuidade com o carisma fundacional e com o fundador, pois ele havia sido subprior nos nove anos anteriores.
Mas, para Bose, foi o fim de uma era. E foi ainda mais complicado do que a transição normalmente difícil do fundador para a segunda geração que ocorre em outros movimentos e comunidades.
Bianchi é imensamente popular e carismático, não apenas dentro da Comunidade ou do catolicismo italiano. Ele também é um dos intelectuais mais conhecidos da grande mídia italiana, inclusive da televisão pública nacional.
Seus livros sempre vendem incrivelmente bem e não apenas para católicos: em certo sentido, ele perde apenas para o Papa Francisco como escritor espiritual popular.
A transição de Bianchi para Manicardi foi ainda mais difícil devido àquilo que a jornalista francesa Marie-Lucile Kubacki chamou de problema de “estrelato”.
Não é um problema totalmente diferente do “emeritado” no atual pontificado. Na religião massivamente midiatizada de hoje, é muito difícil para qualquer líder altamente visível de uma comunidade religiosa, senão até impossível, simplesmente desaparecer ou se tornar um eremita.
Bianchi tem sido muito mais visível do que qualquer bispo, abade ou superior general “emérito” de uma comunidade religiosa, desde que renunciou ao cargo de prior.
Diante de tudo isso, a separação temporária do fundador em relação à Comunidade é dolorosa, mas necessária. Ela fornece o tempo e o espaço necessários para a cura tanto da Comunidade quanto dos quatro irmãos e irmãs separados. O termo “separado” é extremamente doloroso para uma Comunidade que tem o ecumenismo como um de seus componentes-chave.
Questões de longo prazo permanecem e terão que ser respondidas: não apenas para Bose, mas também para todas as novas comunidades e movimentos eclesiais que surgiram desde o Concílio Vaticano II (1962-1965).
Bose sempre representou muito mais do que a nova comunidade leiga neomástica habitual.
Ela se tornou um espaço de fôlego para os católicos e para outros cristãos que às vezes mantêm relações difíceis com as suas Igrejas locais ou para aqueles que simplesmente buscam algo mais do que a Igreja local pode oferecer. Isso impôs um ônus adicional e particular à Comunidade e ao fundador.
Mas é claro que não se trata apenas daquilo que os amigos (ou mesmo os inimigos) da Comunidade gostariam de fazer com Bose. Trata-se, acima de tudo, de uma questão do que os irmãos e as irmãs da Comunidade querem fazer com Bose.
A Comunidade optou por ficar em silêncio por enquanto. As questões dizem respeito ao conteúdo do decreto e da carta anexada do cardeal Parolin à Comunidade.
Canonicamente, Bose é uma associação de fiéis leigos. Muitos temem que haverá um movimento para mudar seu status canônico. Mas também temem que haja medidas para alterar o DNA e o modo de vida singular da Comunidade: ecumenismo; hospitalidade eucarística; liturgia; os leigos e leigas e o seu caráter não clerical.
Tais mudanças iriam além e em sentido contrário às intenções da Comunidade como a conhecemos.
As opiniões dos irmãos e irmãs não católicos, especialmente sobre a trajetória ecumênica da Comunidade, deveriam ser cuidadosamente levadas em consideração.
O fato de o decreto ter vindo do Vaticano – especificamente da Secretaria de Estado e do papa – e não do bispo local levanta sérias questões eclesiológicas.
Talvez tenha sido uma extrema ratio para uma situação interna que se tornara insustentável. Ou talvez tenha sido uma indicação de que a Igreja Católica ainda está muito intimamente moldada pelo Vaticano I (o primado papal) do que pelo Vaticano II (a responsabilidade das Conferências Episcopais e dos bispos locais).
Por outro lado, provavelmente é irrealista pensar que o bispo local poderia ter mandado que Bianchi ou a Comunidade fizessem qualquer coisa, dado a proeminência internacional de Bose.
Embora este último evento em Bose seja importante para os homens e as mulheres que moram lá, há ramificações para o futuro de todas as novas comunidades e movimentos.
Esses grupos pós-Vaticano II ainda vivem em uma situação institucional precária, em que um “estado de exceção” (uma crise interna como esta) ainda permite a intervenção papal. É como um déjà-vu dos últimos 10 séculos da história da Igreja.
É por isso que novas comunidades e movimentos tendem a enfatizar sua coesão interna, mesmo às custas da transparência (bem diferente do caso de Bose). Eles sabem que toda rachadura interna poderia acelerar a intervenção de cima, privando a comunidade da sua liberdade.
O que recém aconteceu em Bose também deve ser visto no contexto do pontificado atual. Francisco lembrou continuamente os movimentos e comunidades católicos que eles não devem pensar que são uma elite da Igreja, mas sim uma parte dela como povo.
Essa é uma perspectiva teológica diferente, e não é exatamente o que João Paulo II e Bento XVI disseram a esses movimentos.
Mas essa intervenção vaticana em Bose enviou sinais potencialmente angustiantes para outras novas comunidades. Agora elas estão se perguntando: se isso aconteceu com Bose, isso também poderia acontecer conosco?
A intervenção poderia fortalecer o carisma de Bose ou talvez seja o primeiro passo da autoridade eclesiástica central em Roma para reconhecer Bose formalmente. Isso é algo que aconteceu com a maioria dos novos movimentos e comunidades católicos nas últimas décadas.
Mas isso também poderia enfraquecer a especificidade e a singularidade de Bose aos olhos dos católicos e dos parceiros ecumênicos da Comunidade.
Bose representa um microcosmo do cristianismo hoje, e a sua crise atual deve ser vista no contexto de uma Igreja que está passando por uma transição institucional e espiritual.
A solução para a crise não é desposar o cristianismo com as modas culturais do momento, mas sim com as grandes fontes da tradição cristã indivisa. E é sobre isso que a Comunidade de Bose foi, é e – espero – sempre será.
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Comunidade de Bose: caso de teste para novas comunidades e movimentos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU