12 Junho 2020
A pandemia da Covid-19 nos tocou profundamente e o fará também nos próximos meses. O presente texto visa a ler o seu impacto, reunindo a reflexão da presidência da Associação Teológica Italiana para o Estudo da Moral (Atism) com alguns sócios e sócias que se manifestaram recentemente sobre o tema no blog Moralia, 08-06-2020.
A perspectiva que guia esse “manifesto” é de uma teologia moral enraizada no Evangelho, horizonte fundador de uma leitura dos sinais dos tempos que medita com sabedoria sobre a experiência humana, para habitar eticamente um tempo novo.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O tempo da pandemia nos dá o espaço para uma reflexão ético-teológica que escute profundamente a história, repensando-se na emergência de lugares, situações e pessoas.
Certamente, a teologia tem formas de elaboração próprias e não é reação imediata às contingências históricas. Ela problematiza radicalmente a existência humana e as suas condições, para pensar Deus em um horizonte “dramático”, no qual a liberdade se constitui deixando-se interpelar por aquela Palavra que acontece na história (cf. Jo 1,1-18) e que ainda permanece irredutível a produto histórico-cultural.
O pensamento teológico, portanto, precisa se debruçar sobre o vivido, para oferecer uma palavra própria, construtiva e reconstrutiva; precisa do tempo distendido do discernimento, para uma contaminação fecunda – no sinal do bem e da justiça – entre a vida humana e o advento do Deus da vida.
Ela busca uma palavra pensada e pesada, sofrida e leal; uma palavra rica de sentido e indicadora de direções; prudente e também responsável nas tomadas de posição e nas escolhas; crítica das ambivalências da vida cultural e sociopolítica. Uma palavra densa de pudor, que não profana a dignidade alheia, nem produz violência, mas dialoga, com respeito e reconhecimento dos seus interlocutores, em transparência e verdade.
O ponto de partida é a ordinariedade de um cotidiano que viu os trabalhos, as relações familiares, o tempo livre e a vida eclesial profundamente abalados pela pandemia.
A irrupção da doença e da morte revelou elementos qualificativos da humana conditio, dimensões de valor de uma existência da qual descobrimos toda a vulnerabilidade e fragilidade. Então, é preciso valorizar, também pelo tempo que está diante de nós, a ética do cotidiano que sustentou estes dias. Uma ética tecida de amor, de atenção às relações, à qualidade de palavras e gestos; uma ética expressada também em ritualidade que substanciam e concretizam a solidariedade, a responsabilidade e o cuidado da casa comum e dos seus habitantes.
Não por acaso, a pandemia tem visto uma crescente demanda de espiritualidade – mesmo além dos pertencimentos religiosos – alimentada pela demanda de sentido sobre uma situação anômala, pela necessidade de consolação, pela interrogação sobre o rosto de Deus.
Graças também a esses recursos, resistimos aos dias mais difíceis, agarrados aos sinais da humanidade comum: uma realidade que nos precede, que nos acolhe como hóspedes e que deve sempre ser tenazmente explorada e cultivada. Se, de fato, a violência da pandemia evidenciou a vulnerabilidade compartilhada, também se deve afirmar que, iguais na fragilidade, também o somos na dignidade.
Tal passagem-chave, portanto, deve ser conjugada como atenção à desigualdade no acesso aos bens necessários à vida, mas também aos mecanismos sociais e culturais que a criam; como responsabilidade pessoal e coletiva de trabalhar pelo bem de cada um. Cultivar sentimentos e práticas inspirados no humano comum significa se fazer sensível aos processos de marginalização produzidos na vida das pessoas, das cidades, dos povos e de toda a biosfera.
O Papa Francisco indiciou a “cultura do descarte” como critério para ler em profundidade o tempo que vivemos, investigando fenômenos contrastantes.
Assim, a industrialização não apenas enriqueceu o nosso espaço vital com a tecnologia (preciosa no tempo do lockdown), mas também reconfigurou culturalmente os aspectos antropológicos essenciais do habitar e da convivência humana; uma revolução ainda em curso, que gera bem-estar, mas também resíduos, às vezes tóxicos, e, ao mesmo tempo, seres humanos de descarte.
A própria pandemia evidenciou o ambíguo entrelaçamento entre processos de inclusão social e dinâmicas de exclusão e marginalização, de degradação da convivência humana: o lockdown foi particularmente duro para os empobrecidos, para os sem-teto, para refugiados e deslocados, para requerentes de asilo.
A lógica do descarte também não se detém na dimensão econômica: entra nas dobras das escolhas cotidianas – especialmente em situações de urgência e escassez de recursos como a dos últimos meses – e afeta a percepção da dignidade das pessoas.
Por esse motivo, deve ser repensada a relação público-privada, lida na modernidade sobretudo como dialética entre direitos individuais de liberdade e papel das instituições para a vida associada. Porém, a pandemia evidenciou precisamente o papel fundamental destas últimas diante de ameaças tão vastas: a autoridade reencontra o sentido, etimológico e ético, de “fazer crescer” a vida de todos e protegê-la – especialmente para os mais vulneráveis – contra a cultura do descarte. Não é casual, nesse sentido, o forte compromisso das instituições contra a crise econômica induzida pelo lockdown.
Certamente, a prevenção à Covid-19 também trouxe medidas que suspenderam temporariamente o exercício de alguns direitos democráticos, desencadeando um amplo debate sobre a vida civil em democracia e as modalidades de gestão do poder público. Temas de destaque também para o futuro – pelo impacto sobre a vida dos cidadãos, sobre o Estado de direito e sobre as relações entre os diferentes poderes e os decisores públicos – que evidenciaram a relação imprescindível entre direitos e bem comum. Nesse horizonte, colocam-se também alguns pontos nodais específicos do debate ético destes dias.
a) Proteção das pessoas e escolhas de saúde pública
A dramática problemática da gestão dos recursos de saúde se impôs nestes dias com uma urgência sem precedentes na história recente do país.
Compreendemos a exigência de equilibrar uma perspectiva de cuidado “patient-centered” e uma “group-centered”; a partir de um debate às vezes frenético, surgiu a indicação ética de oferecer a cada paciente o máximo potencial de cuidados disponível, avaliando todas as variáveis contextuais, de acordo com o princípio da proporcionalidade.
Para além da emergência, depois deverão ser verificados as argumentações e as indicações normativas: eles interpretaram adequadamente a busca do bem possível para o indivíduo? Integraram a exigência de justiça social no acesso aos recursos da saúde pública? E como avaliar a forte disparidade de escolhas entre sistemas organizacionais regionais?
b) Informação e direitos
Também é delicada a gestão dos dados pessoais sensíveis para o interesse público. Estamos em uma fase de aceleração da passagem para uma “sociedade datificada” que exige uma forte reflexão ética, a ser estendida mais amplamente no debate civil. Não é suficiente uma regulação ao acesso, armazenamento e processamento dos dados confidenciais. A gestão dos processos decisórios por meio de algoritmos poderia levar a novas formas de exclusão e controle de pessoas e grupos. Como combater, também nesse âmbito, as lógicas de descarte?
c) Escola, cidadania, jovens
Também foi vivo o debate sobre as decisões ligadas ao sistema escolar no lockdown. Na tempestiva passagem para o ensino a distância com plataformas de informática, para responder à necessidade de continuidade didática em emergência, alguns viram uma etapa rumo a novas modalidades de escola.
Muitos, porém, sublinharam alguns riscos eticamente críticos: o de novas formas daquela desigualdade que, precisamente na escola, deve ser combatida; a de privilegiar a transmissão de conteúdos em relação à formação de estilos de vida e de cidadania, a serem exercidos em relações vividas concretas. As formas às quais a emergência da pandemia forçou, foram inadequadas nesse sentido, com vivências de sofrimento para estudantes, pais e professores.
Em vez disso, é possível valorizar a tecnologia para uma escola orientada para a cidadania consciente, centrada na sábia presença relacional de formadores, visando ao crescimento de pessoas em processos educacionais compartilhados?
Três pontos nodais que também falam do esforço de enfrentar o imprevisto para uma ética enraizada – segundo uma etimologia do termo – em uma habitar, em uma experiência de espaços habituais. A partir disso, ela indica virtudes (habitus) e estilos consoantes com o humano que há em nós, e a pluralidade das éticas aplicadas também responde à complexidade crescente dos mundos em que habitamos. A pandemia da Covid-19, porém, tornou precário todo o nosso habitar o mundo, desarticulando experiências elementares e argumentações éticas.
Tal experiência invoca uma verdadeira ética do imprevisto, para um mundo previsivelmente destinado a mudanças fortes e velozes (pense-se apenas no aquecimento global). Uma exigência nada nova para uma perspectiva moral enraizada no seguimento do Senhor Jesus em uma história em mudança, mas que requer, no entanto, um método adequado. É insuficiente uma perspectiva dedutiva ou formal, que sempre corre o risco de absolutizar experiências específicas do mundo; também não é aceitável uma abordagem indutiva pura, que inverte factualidades emergentes em valores.
Nesse sentido, a encíclica Laudato si’ pede atenção para a densidade moral de uma experiência mutável, uma multiplicação das formas em que ela é escutada, a fim de examiná-la criticamente. Assim – em interação com uma pluralidade de saberes – a ética oferecerá palavras eficazes para as mudanças de época que nos esperam; dessa forma, ela se conjugará como saber de tradição capaz de se expressar também em contextos de aceleração, para contribuir para governá-los. Alguns critérios nesse sentido:
a) Um contexto cosmopolita
A pandemia da Covid-19 deu corpo à ideia de unidade da família humana, tão central na Gaudium et spes. Certamente, para os fiéis, ela não é um mero fato, nem realidade historicamente realizada; antes, é critério para ler a história e os laços intersubjetivos e sociais a partir do horizonte da criação e do dom pascal de Cristo. Em contrapartida, ela nos torna sensíveis a novas divisões e marginalizações, a escolhas inspiradas na cultura do descarte.
Diante delas, é necessária uma decisão para todas as gerações, além dos automatismos: o vínculo social nasce do encontro sempre renovado de liberdades que reabrem espaços criativos e redefinem estruturas de proteção, que contrastam perfis opressivos e agressivos, marginalizadores e discriminadores em relação ao humanum compartilhado.
Trata-se de trabalhar por um tecido renovado de relações civis e internacionais de colaboração, de confiança, de governança compartilhada, essencial para um horizonte comum de justiça.
b) Bem comum e direitos: repensar a relação
Tal exigência também afeta âmbitos nos quais o vínculo entre bem comum e comportamentos individuais é menos direto do que a do risco da pandemia. Pense-se na biosfera, cuja degradação ameaça gravemente a família humana e presumivelmente contribuiu também para o surgimento e a propagação do vírus.
É necessário um apoio ético para processos democráticos nacionais e globais de decisão, para medidas voltadas para a sua proteção e para a redução da iniquidade socioambiental, para mostrar a insustentabilidade de um exercício sem limites dos direitos individuais.
Essa também é uma dimensão da ética do imprevisto invocada pela pandemia: um pensamento clarividente, que preveja as mudanças e toma precauções contra elas.
c) A paz como horizonte
A imagem na qual a fé cristã reúne o impulso cosmopolita é a paz, que acolhe o dom da vida que nos une e se compromete a conservá-lo e a cultivá-lo. “Paz para vós!”: a saudação do Ressuscitado e um grande dom da graça de Deus (cf. Jo 20,19-23) levam para além da desconfiança e da indiferença, rejeitam a exploração dos pobres e o enriquecimento de quem que já têm o supérfluo, evitam práticas de abuso e promovem o cuidado, rejeitam a guerra e o gasto inútil com armamentos.
Paz é também pensar distendidamente, para além das emergências; é o horizonte de um pensamento teológico que sabe escutar empaticamente o seu próprio tempo para ainda pronunciar palavras inspiradas pelo Evangelho.
2 de junho de 2020, Festa da República [da Itália]
Conselho de presidência da Atism
Pier Davide Guenzi, presidente
Salvino Leone, vice-presidente
Salvatore Cipressa, secretário
Gaia De Vecchi, Paolo Benanti, Michele Mazzeo, Pietro Cognato, Simone Morandini, delegados
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Ética para um tempo inédito. Um manifesto pós-Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU