20 Mai 2020
Doenças que emergiram da relação entre animais e humanos matam no mundo cerca de 700 mil pessoas todos os anos e o risco de surgirem novas pandemias é grande. Estima-se que as aves aquáticas e os mamíferos sejam reservatório para 1,7 milhão de vírus ainda não identificados, mas com potencial para infectar humanos.
A reportagem é de Karina Toledo, publicada por Agência FAPESP, 18-05-2020.
“Qualquer um desses pode ser a próxima ‘doença-X’ – potencialmente mais disruptiva e letal do que a COVID-19. Se não tomarmos muito cuidado com as escolhas que fazemos hoje, é provável que no futuro as pandemias ocorram com mais frequência, se espalhem mais rapidamente, tenham maior impacto econômico e matem mais pessoas”, alertam cientistas ligados à Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES).
O artigo, intitulado COVID-19 Stimulus Measures Must Save Lives, Protect Livelihoods, and Safeguard Nature to Reduce the Risk of Future Pandemics (Medidas de estímulo econômico para minimizar efeitos da COVID-19 devem salvar vidas, proteger meios de subsistência e salvaguardar a natureza para reduzir o risco de futuras pandemias), foi divulgado no site da entidade – criada em 2012 com a missão de sistematizar o conhecimento científico acumulado sobre biodiversidade para subsidiar decisões políticas em âmbito internacional.
O texto é assinado por Peter Daszak (EcoHealth Alliance, Estados Unidos), Josef Settele (Helmholtz-Centre for Environmental Research, Alemanha), Sandra Díaz (Universidade Nacional de Córdoba, Argentina) e o brasileiro Eduardo Brondizio (Indiana University, Estados Unidos). Os três últimos coordenaram a primeira avaliação global do estado da biodiversidade, publicada pela IPBES em 2019. O relatório indicou a existência de 1 milhão de espécies de plantas e animais em risco de extinção nas próximas décadas e já antevia a possibilidade de surgir uma epidemia em escala global (leia mais aqui).
Para os autores, a espécie humana é a única responsável pelo avanço da COVID-19. “Assim como as crises do clima e da biodiversidade, as recentes pandemias são consequência direta da atividade humana – particularmente de nossos sistemas financeiros e econômicos globais baseados em um paradigma limitado, que valoriza o crescimento econômico a qualquer custo”, afirmam.
Entre as atividades que favorecem a transmissão de doenças da vida selvagem para as pessoas, são citadas no texto o desmatamento desenfreado, a expansão descontrolada da agricultura, a agricultura intensiva, a mineração e a exploração de espécies selvagens. Segundo os cientistas, essas práticas ocorrem principalmente nas áreas em que vivem as comunidades mais vulneráveis a doenças infecciosas.
“Nossas ações impactaram significativamente mais de três quartos da superfície da Terra, destruíram mais de 85% das áreas úmidas e dedicaram mais de um terço da terra e quase 75% da água doce disponível às lavouras e à produção animal. Acrescente a esse cenário o comércio não regulamentado de animais silvestres e o crescimento explosivo das viagens aéreas globais e ficará claro como um vírus que antes circulava inofensivamente entre espécies de morcego no sudeste da Ásia conseguiu infectar mais de 2 milhões de pessoas, causar um sofrimento humano incalculável e interromper economias e sociedades em todo o mundo. Esta é a mão humana na emergência de uma pandemia”, afirmam.
O principal objetivo do artigo divulgado pela IPBES é fazer um alerta aos governantes de todo o mundo para que as ações tomadas para reduzir os impactos da atual pandemia não ampliem os riscos de futuros surtos e crises. Nesse sentido, os autores apontam três questões a serem consideradas nos planos de estímulo econômico que estão sendo implementados em diversos países.
A primeira é o fortalecimento e a aplicação das regulamentações ambientais. Na avaliação dos cientistas, apenas devem ser implantados pacotes de estímulo que ofereçam incentivos para atividades mais sustentáveis e positivas à natureza. “Neste momento, pode ser politicamente conveniente relaxar os padrões ambientais e apoiar setores como agricultura intensiva, transporte de longa distância, companhias aéreas e setores de energia dependentes de combustíveis fósseis, mas se não forem exigidas mudanças urgentes e fundamentais para que essas atividades se tornem mais sustentáveis, estarão subsidiando essencialmente o surgimento de futuras pandemias”, argumentam.
Em seguida, os autores sugerem que seja adotada, em todos os níveis de tomada de decisão, a abordagem “One Health” (saúde única), que reconhece as complexas interconexões entre a saúde das pessoas, dos animais, das plantas e do ambiente que compartilham. “Os departamentos florestais, por exemplo, geralmente estabelecem políticas relacionadas ao desmatamento. Os lucros são amplamente obtidos pelo setor privado, porém, são os sistemas de saúde pública e as comunidades locais que frequentemente pagam o preço dos surtos de doenças resultantes. A abordagem ‘One Health’ garantiria que fossem tomadas as melhores decisões, levando em conta os custos e as consequências de longo prazo das ações de desenvolvimento para as pessoas e a natureza”, defendem.
Por último, o grupo aponta a necessidade de financiar adequadamente os sistemas de saúde, mobilizar financiamento internacional para estimular programas de saúde pública em áreas de doenças emergentes, de oferecer alternativas viáveis e sustentáveis às atividades econômicas de alto risco e de proteger a saúde dos mais vulneráveis. “Isso não é simples altruísmo, mas um investimento vital no interesse de todos para evitar futuros surtos globais”, afirmam.
Na avaliação do biólogo Carlos Alfredo Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Programa BIOTA-FAPESP, o Brasil parece seguir na direção oposta à recomendada pelos especialistas da IPBES. Números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que a extração ilegal de madeira avança em ritmo acelerado na Amazônia e que o volume do desmatamento acumulado de agosto de 2019 a março deste ano foi quase o dobro do verificado no mesmo período do ano anterior. Além disso, o governo federal exonerou recentemente agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) responsáveis pelas operações de combate ao garimpo ilegal e à grilagem de terra.
“Vem sendo desmontada toda a legislação ambiental do país. Até mesmo as regras que protegem a Mata Atlântica começaram a ser flexibilizadas. Um exemplo é o Despacho 4.410/2020 emitido pelo Ministério do Meio Ambiente em abril, que anistia, em todo o bioma, quem desmatou áreas de preservação permanente até 2008, isentando os proprietários da obrigação de restauração dessas áreas. Logo não vai sobrar nada”, lamenta Joly. Procurado pela reportagem, o Ministério do Meio Ambiente não retornou até o fechamento desta edição.
Segundo o coordenador do BIOTA, que já integrou o Painel Multidisciplinar de Especialistas da IPBES e, atualmente, coordena na entidade a força-tarefa voltada à capacitação das equipes que elaboram os relatórios, ninguém tem ideia da quantidade de vírus potencialmente patogênicos que existem nas florestas brasileiras.
“Pesquisadores do BIOTA acabam de publicar o primeiro inventário de vírus que infectam plantas no Brasil. Mas nunca foi feito um levantamento sistemático dos vírus que infectam animais. A Amazônia tem hoje uma baixa densidade populacional, mas, à medida que mais gente entra nas florestas e se expõe a esses patógenos, aumenta o risco de que cruzem a barreira das espécies”, diz.
Além do desmatamento, outro fator de risco apontado por Joly é a extinção de predadores como a onça-pintada e o decorrente desequilíbrio na cadeia alimentar. “Hoje há populações crescentes de capivara em todas as áreas urbanas do Estado de São Paulo. Por um lado não há um predador para fazer o controle dessas populações e, por outro, há alimento em abundância nas plantações de cana e milho nas margens dos rios. Esse já é um problema de saúde pública, pois as capivaras abrigam o carrapato-estrela, vetor da febre maculosa”, explica Joly.
As plantações de alimento também costumam atrair outras espécies de roedores que são reservatórios de vários hantavírus e arenavírus, patógenos que podem ser transmitidos para humanos por meio do contato com fezes e urina de animais infectados.
Se por um lado a rica biodiversidade do país abriga inúmeras espécies patogênicas desconhecidas, por outro pode ser a fonte de medicamentos capazes de combater viroses e pandemias, argumenta Joly.
“No âmbito da iniciativa BIOprospecTA, do BIOTA, os pesquisadores estão continuamente buscando nas espécies da biodiversidade brasileira moléculas que possam ser a base do desenvolvimento de novos medicamentos. Essa pesquisa envolve plantas, animais e microrganismos, terrestres, marinhos e de água doce. Moléculas obtidas de esponjas marinhas, por exemplo, resultaram em fármacos de grande importância clínica para o tratamento de infecções virais como o herpes”, conta Joly.
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Medidas de estímulo econômico pós COVID-19 não devem estimular futuras pandemias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU