18 Fevereiro 2020
No dia 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o surto da nova cepa de coronavírus, que eclodiu na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. O surgimento do novo coronavírus deu visibilidade midiática planetária a um tema que vem adquirindo uma natureza cada vez mais estratégica na agenda política internacional: o risco de epidemias globais e os possíveis impactos desses fenômenos na vida econômica, política, social e ambiental da população de todo o planeta. De um modo menos evidente, revela a face de um capitalismo cada vez mais militarizado e concentrado, que está convertendo as políticas internacionais de saúde em temas de biossegurança, segregação de populações e arma de guerras comerciais. E, de maneira menos evidente ainda, expõe o caráter insustentável de relação que os seres humanos vêm mantendo com as demais espécies animais e com os ecossistemas do planeta.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jean Segata propõe um olhar mais amplo para avaliar o caso do novo coronavírus. Esse olhar identifica, além da conversão das políticas internacionais de saúde em tema de biossegurança, vigilância e controle, a adoção de medidas racistas de estigmatização de populações inteiras e as profundas injustiças que marcam a relação dos seres humanos com os animais e com a natureza de um modo geral.
“Precisamos pensar as injustiças da nossa relação com os animais e o ambiente. Não podemos mais nos considerar como sendo a exceção neste planeta. Falamos de pragas, de espécies invasoras e de problemas sanitários quando, na verdade, somos a maior praga que existe. Nós nos espalhamos por todo o planeta, modificamos os ambientes conforme as nossas vontades e desequilibramos todos eles”, afirma Jean Segata.
O pesquisador é coordenador do Núcleo de Estudos Animais, Ambientes e Tecnologias (NEAAT), do Pós-Graduação e Antropologia da Social da UFRGS, o primeiro programa do Brasil a ter um núcleo e uma linha de pesquisa sobre as relações entre humanos, animais, saúde e ambientes.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 17-02-2020.
Em que medida categorias da antropologia podem ajudar a entender fenômenos como grandes epidemias globais? Como as suas pesquisas enfocam esse tema?
A minha entrada nesta discussão sobre antropologia e epidemias vem por meio da antropologia da saúde, mas não tão tradicionalmente como ocorre com muitos trabalhos da área, porque eu costumo associar esse campo às relações entre humanos e animais e também ao uso de novas tecnologias digitais, pesquisas com DNA e outros temas. A antropologia tem como característica realizar estudos sobre situações mais singulares e locais. O que me interessa neste campo que envolve problemas em escala global é pensar como políticas globais, como políticas internacionais de saúde e ações de grandes conglomerados capitalistas da saúde incidem em situações locais.
O que está acontecendo agora com o coronavírus adquiriu uma dimensão global, assim como ocorreu com algumas outras doenças nos últimos anos, mas muitas vezes não olhamos esses eventos de uma perspectiva mais ampla. Me interessa pensar como esses fenômenos se distanciam, quais são os hiatos, jogos de força e resistências que algumas populações locais têm em relação às políticas globais de enfrentamento a uma epidemia ou de outras situações de saúde. Muitas vezes, temos políticas de saúde que são pensadas de cima pra baixo, sem dialogar com populações locais, sem entender como certas populações se relacionam historicamente com a doença ou com vetores delas. Você simplesmente dizer que há risco de dengue ou risco de zika em certas áreas do país, sem um olhar mais microscópico para essas relações é complicado.
Nos meus trabalhos de campo, tanto em Natal quanto em Porto Alegre e em Buenos Aires, o que tenho visto é que algumas dessas populações, especialmente as que vivem na periferia em situação de vulnerabilidade econômica e social, normalmente não estão muito atentas às políticas de cuidado com mosquitos porque já adoeceram. À margem do Estado, não conseguiram atendimento. Algumas tiveram dengue e ficaram em casa tomando água. Elas convivem com essas doenças há muito tempo.
Normalmente, são essas populações que são acusadas de produzir as epidemias, assim como temos visto agora com uma certa racialização em torno do coronavírus. Vemos expressões como “é um vírus chinês”, “a doença que vem da China”, “a gripe da China”, localizando e estigmatização certa população. Ouvimos isso cotidianamente, apontando a dengue como doença dos pobres, a zika como doença que vem do Nordeste e assim por diante. Esse tipo de culpabilização de certas populações é bastante frequente.
Quando se avalia essas questões em uma escala mais microscópica e particular, como na perspectiva antropológica, se percebe que há uma distância enorme entre aquilo que é imaginado como saúde a partir de políticas sanitárias globais e aquilo que é vivido pelas pessoas. Eu fui em muitas casas, em Natal, onde as pessoas não recebem água da torneira todos os dias. Muitas vezes têm acesso à água duas vezes por semana e são obrigadas a estocá-la em baldes.
Em poucos dias, se elas não cuidam, esses baldes viram criadouros de mosquitos. Quando os agentes de saúde chegam nestas casas, essas pessoas normalmente são culpadas por contaminar a casa, o bairro e a região com mosquitos. Na verdade, elas estão estocando água. Então, elas são culpadas por um problema que, na verdade, é anterior. É um problema de Estado, de infraestrutura de abastecimento e de saneamento básico das cidades.
Em Porto Alegre a gente vê a mesma coisa. Cerca de 44% da população de Porto Alegre convive com problemas de saneamento básico, isso na cidade que, até pouco tempo, era a quarta capital em termos econômicos do país. Aí se diz que a culpa é da periferia. Mas passa caminhão do lixo lá da mesma forma que passa no Moinhos, na Bela Vista ou em outros bairros da cidade? Há containers na periferia como há em outras regiões da cidade? Há um racismo ambiental estrutural aí. Certos ambientes da cidade são de antemão estigmatizados e ficam mais suscetíveis às contaminações. Há situações muito particulares que não cabem no modelo global tradicional de como uma epidemia é pensada ou de como políticas de saúde são pensadas. Muitas vezes essas políticas são pensadas a partir de indicadores de escala internacional, achatando todo mundo, colocando diferentes populações dentro de um mesmo formato, ignorando situações de grande desigualdade. Por meio desse olhar sobre a relação entre o global e o local, é possível pensar uma crítica desses modelos internacionais que nem sempre são pensados levando em contato a realidade das populações de países do sul global.
Doença da vaca louca, gripe aviária, gripe suína, corona vírus…As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas, entre outras coisas, pela eclosão de doenças e epidemias que acabam se tornando temas planetários. Nos tornamos mais vulneráveis, de fato, a enfermidades globais?
Nós sempre estivemos vulneráveis a propagações de doenças em escala global. A febre amarela é um desses casos. Há pelo menos três séculos que temos ela presente no Caribe e na América Latina vindo de outros continentes. A sífilis e a peste bubônica são outros exemplos de espalhamento global. Mas é claro que a intensidade temporal mudou. Antes, esse espalhamento dependia de rotas comerciais marítimas. Vetores dessas doenças eram transportados passivamente por esses meios e isso demandava jornadas de muito mais tempo. O espalhamento dessas doenças era muito mais lento. O diagnóstico e o tratamento das mesmas também era muito mais lento e precário. O que existe hoje é um incremento do potencial de perigo desses eventos críticos , porque temos uma circulação muito maior de pessoas, principalmente dos anos 70 pra cá. Também temos uma circulação muito maior de artefatos, de produtos de origem animal e vegetal. Hoje, em questão de horas, uma cepa de um vírus mortal ou uma super-bactéria pode se espalhar globalmente.
Há diversos fatores relacionados a esse fenômeno que se cruzaram nos últimos anos. Tivemos os ataques com antrax, os ataques às torres gêmeas, a invasão do Oriente Médio e uma série de eventos onde pessoas que circulam pelo planeta passam a se tornar objetos de vigilância contínua por serem consideradas possíveis terroristas. A saúde também foi convertida em um assunto de segurança. Refugiados e imigrantes acabaram sendo estigmatizados, assim como certas populações, como está acontecendo com os chineses agora, ou como aconteceu com os nordestinos há alguns anos por causa do zika. A circulação de pessoas pelo mundo hoje mescla o imaginário de terrorismo com a saúde.
Michel Foucault trabalhou muito com esse tema nos anos 70 e 80, com estudos sobre fenômenos como biopolítica, controle de populações e de territórios. Não é que a militarização da saúde já não aconteça há muito tempo. Há toda uma gramática super-militar nesta área, que se expressa em expressões como guerra contra o vírus ou inteligência epidêmica, seguindo a ideia de que é preciso encontrar o vírus (inimigo) antes que ele te encontre. As políticas internacionais de saúde tem sido convertidas em políticas de biossegurança. Há uma atenção às populações humanas que circulam sob a suspeita de que podem ser terroristas especializados em microbiologia ou que podem ser pessoas que estejam disseminando vírus por aí, vindo de algum lugar contaminado. Também há vigilância sobre a circulação de produtos animais, com políticas internacionais cada vez mais agressivas contra determinadas práticas locais, como a de produção de queijos artesanais por exemplo.
Nós tivemos 500 anos de colonização europeia com uma infinidade de trânsito de plantas e animais que não eram nativos daqui. Hoje temos problemas no Rio Grande do Sul com animais como javalis e caturritas, que são consideradas espécies invasoras que podem trazer problemas sanitários e desequilíbrios ambientais. Pessoas, plantas e animais podem entrar nesta classificação de espécie invasora, de causadores de um problema sanitário epidêmico ou de bioterrorismo. Estamos todos neste mesmo caldeirão de políticas internacionais de biossegurança.
Há uma espécie de colonização do futuro, baseada na ideia de que precisamos estar preparados para o que pode vir. Nós não fazemos mais prevenção de epidemias. A gente sabe que vai ter alguma epidemia e é preciso estar preparado para ela. “Preparado para ela” não significa que estamos fazendo alguma prevenção. Estamos assumindo que ela vai acontecer, que vai acontecer algum problema e que é preciso estar pronto para dar uma resposta a ele. Só que isso pode soar muito negativo. Eu já acompanhei política pública em Natal, onde se comprou estoques de veneno, por exemplo. Não se fez nada para amenizar o problema com contaminação de dengue. Comprou-se mais veneno porque se sabe que a ocorrência do mosquito da dengue vai continuar e, portanto, vai se continuar também jogando veneno no ambiente. Isso não prevenção, mas sim tomar como dado o problema e justificar grandes estruturas e projetos no presente para alguma coisa que pode vir a acontecer. Há toda uma aura de que o futuro é incerto e de que é preciso estar preparado para ele. Há uma indústria que lucra muito com essa incerteza do futuro.
Há autores como Stephen Collier que fala desse cenário como uma situação muito característica do período pós-Guerra Fria. Durante a Guerra Fria, a gente sabia quando as chamadas super-potências iriam lançar as bombas nucleares e acabar com o mundo. Vivia-se sempre sob a tensão de que algo poderia acontecer entre os Estados Unidos e a União Soviética. Com o fim da Guerra Fria, arrumou-se outra forma de estarmos sempre neste estado de vigilância e de incerteza, sob uma espécie de medo. As epidemias são um exemplo disso. A gente não sabe quando uma epidemia vai aparecer, assim como não se sabe quando uma nova célula terrorista vai aparecer. Então, é preciso estar sempre em alerta, por meio de grandes sistemas de vigilância e de controle, militarizando as relações e as políticas porque “alguma coisa pode acontecer”.
A relação entre humanos, animais e ambientais é um tema importante em suas pesquisas. Na recente cerimônia do Oscar, o ator Joaquin Phoenix fez um pronunciamento forte a respeito das injustiças que marcam essas relações, apontando uma conexão entre elas. Na sua opinião, qual a relação entre o modo como nos relacionamos com os animais e o meio ambiente hoje e o aumento dos riscos sanitários em escala global?
A relação entre humanos, animais e ambiente é um tema central da minha pesquisa. Trabalho com a perspectiva de não separar a saúde humana, a saúde animal e a saúde do meio ambiente. Estou pensando a saúde como aquilo que é compartilhado por humanos, animais e ambientes, como ocorre também com a doença. Zoonoses como leishmaniose e leptospirose, doenças vetoriais como dengue, zika e chikungunya e talvez agora o próprio coronavírus têm um reservatório animal. Temos um conjunto de doenças e de infecções que são compartilhadas entre humanos e animais.
Eu não sou contra a humanidade, de maneira nenhuma, mas sou contra esse excepcionalismo humano, essa ideia que a gente criou que a natureza é algo externo do qual temos que nos proteger. Ao mesmo tempo, nos damos o direito de utilizá-la como recurso. Ela é vista como um domínio externo que, quando nos convém, é utilizado em nosso favor e, quando não nos convém, nos colocamos na posição de vítima dela. Quando chove demais e acontece um alagamento em uma cidade que não tem mínimas condições de equilíbrio ambiental, que está toda cimentada e cheia de concreto, fala-se que a natureza é implacável, que a fúria da natureza pode acabar com as nossas vidas e assim por diante.
É claro que esse tipo de situação é sempre um momento de tristeza e de sofrimento, mas também é um momento para refletirmos sobre o que estamos fazendo com o planeta. É muito fácil se colocar na posição de vítima da natureza, vítima da tempestade, da enchente ou de uma doença que, como alguns dizem, vem dos animais. A doença não vem dos animais. Ela também ataca os animais. Estamos, humanos e animais, no mesmo tabuleiro, suscetíveis a partilhar doenças e precisamos buscar soluções conjuntas. Não adianta você procurar soluções para a saúde humana sem pensar nos equilíbrios das populações animais e dos ambientes. Assim, os problemas vão continuar aparecendo. Não adianta querer exterminar as populações de mosquito, como se tentou fazer nos anos 40 e 50 na América Latina, com o uso de DDT. Acabaram com vários ecossistemas e envenenaram muitas pessoas jogando DDT. É preciso buscar formas de convivência, entre humanos, animais e ambientes, procurando equilíbrio e saúde para todos.
Cada vez mais tem se colocado os animais numa arena tecnológica. O caso da febre amarela é um exemplo disso. Muita gente sai atacando os macacos achando que eles estão contaminando as pessoas com febre amarela. Macaco não contamina ninguém com febre amarela, macaco morre de febre amarela, como os humanos morrem. Quando a doença aparece nos macacos, isso nos serve como um alerta. Eles são uma espécie de sentinelas e podem ser vistos também como uma ferramenta tecnológica que nos ajuda a prevenir a presença de certos vírus em determinados locais. Precisamos trabalhar conjuntamente com os animais para promovermos uma saúde que abranja a todos.
Esse reposicionamento da nossa relação com os animais precisa ser pensado em outras escalas também. Essas fazendas de confinamento de bois, porcos e outros animais são altamente agressivas para o ambiente. O agronegócio injeta muito antibiótico nos corpos desses animais. Esses antibióticos deixam resíduos que vão para as fezes, para a urina e acabam evaporando. Encurtando a história, chove antibiótico nas nossas cabeças. Literalmente. Temos resíduos de antibióticos dessas fazendas circulando pelos ambientes. Eles são absorvidos pela pele. Nossos corpos estão passando por modificações que envolvem, entre outras coisas, a contaminação por antibióticos e outras substâncias. Isso nos torna todos mais suscetíveis a contrair doenças. Outro exemplo: nas fazendas de confinamento de salmões, o peixe não consegue mais nadar fora da gaiola, porque ele não sabe mais nem nadar. Está ali só esperando engordar até determinado peso para virar filé de salmão.
Você citou a fala do Joaquin Phoenix no Oscar. Acho que realmente precisamos pensar as injustiças da nossa relação com os animais e o ambiente. Não podemos mais nos considerar como sendo a exceção neste planeta. Falamos de pragas, de espécies invasoras e de problemas sanitários quando, na verdade, somos a maior praga que existe. Nós nos espalhamos por todo o planeta, modificamos os ambientes conforme as nossas vontades e desequilibramos todos eles. Precisamos olhar o mundo para além da sombra do próprio nariz do ser humano. Esse mundo precisa ser partilhado por humanos, animais, plantas e ecossistemas de uma maneira muito mais simétrica e não a partir de uma suposta exceção humana.
Os alertas sobre perigos iminentes, na área da saúde, em escala global têm crescido nos últimos anos. Na sua opinião, esses alertas são expressão mais de um “catastrofismo midiático” ou tem base real?
Tem base real, sim. A possibilidade de a gente criar contaminações em escala global está muito presente. No caso do coronavírus nem estamos falando de pandemia, mas de uma epidemia. Pandemia é quando temos grandes proporções de contaminação, de uma forma descontrolada, em várias regiões do mundo. No caso do coronavírus, há vários países atingidos, mas todos eles tiveram uma relação direta com um único grande centro de contaminação. Mas isso é uma questão técnica da epidemiologia. Se olharmos para o mundo globalizado, é difícil dizer que está tudo sob controle. Rapidamente, partindo de um único ponto, pode-se atingir dezenas de países em uma epidemia. Então, a possibilidade de se ter uma catástrofe em escala global é muito grande. Se fosse um vírus com uma suscetibilidade maior ainda de contaminação, ele poderia rapidamente se espalhar por todos os continentes, atingindo vastas porções da população.
Então, há base real sim para preocupação, mas, ao mesmo tempo, tem aquela situação que mencionei antes, relacionada à existência de uma indústria que tem lucrado cada vez mais com a criação de novas inteligências epidêmicas, de mecanismos de segurança na área da saúde, de mineração de dados para ver se as pessoas estão falando sobre sintomas de doenças e com isso tentar prever epidemias. É uma indústria muito poderosa que lucra com a incerteza do “pode ser que aconteça”. Cria-se muitas estruturas para agir “caso aconteça”, mas não se cria tantas estruturas para prevenir que um problema aconteça. Mas também não quero ser justo. Temos hoje uma preparação muito melhor para enfrentar esse tipo de problema. Em um mês e meio de coronavírus rapidamente se identificou e isolou o vírus, foi feito o sequenciamento genético e foram enviadas amostras aos laboratórios para que os diagnósticos saíssem rapidamente.
Dos anos 60 aos 90 vivemos o auge do imperialismo global do medicamento, dependendo de laboratórios estrangeiros e de patentes de medicamentos desses grandes laboratórios internacionais. Hoje, vivemos uma espécie de imperialismo de programas de saúde. Há empresas, hoje, especializadas em oferecer pacotes de vigilância em saúde. Em Porto Alegre, por exemplo, toda vigilância dos mosquitos para dengue, zika, chikungunya e febre amarela é feita por uma empresa privada de Belo Horizonte, que instalou armadilhas, computadores, softwares e pessoal. Essas empresas desenvolveram uma tecnologia a partir do exame do DNA dos mosquitos para saber se tem vírus circulando na cidade e para tentar predizer uma possível epidemia. Eu chamo isso de um capitalismo crescente da saúde e das epidemias. É uma indústria muito lucrativa.
Pelo que as suas pesquisas apontam, a saúde parece ter se tornado definitivamente também um problema de segurança global. As relações entre biossegurança e terrorismo são uma das faces mais evidentes dessa realidade. Em que medida, esse fenômeno pode influenciar a própria formulação de políticas de saúde?
Essa é uma relação muito flagrante, como já assinalei antes. Coloca-se, no mesmo pacote, terrorismo, a circulação de alimentos de origem animal e vegetal e a circulação de pessoas. Em maio deste ano, vamos lançar uma edição especial da revista do Programa de Pós-Graduação da Antropologia, a “Horizontes Antropológicos”, sobre o tema da biossegurança. Essa edição trará textos sobre epidemias, sobre produção artesanal de queijos, matança de animais por suspeita de epidemia, tráfico internacional de trabalhadores e suspeitas de contaminação, entre outros. O ponto de crítica é como a saúde foi transformada em um assunto de segurança, de inteligência militar, de segurança de fronteiras, de acusações e estigmatizações de certas populações.
Nós temos hoje o Oriente Médio estigmatizado como sendo o lugar do terrorismo, a China, a África e o Nordeste do Brasil estigmatizados como sendo vertedouros de doenças e contaminações. Vemos fronteiras se fechando para migrantes, refugiados e, inclusive, viajantes de certos países, sob a desculpa de que se trata de uma medida de precaução sanitária, quando muitas vezes está apontando para outros tipos de problema como xenofobia, perseguição política e assim por diante. O próprio caso do coronavírus tornou isso bastante evidente. O primeiro país a fechar fronteiras e a tentar retirar seus cidadãos da região afetada foram os Estados Unidos, país que tem uma disputa comercial enorme com a China e quem tem todo o interesse de que ela fique fechada e estigmatizada como um país que pode produzir alguma insegurança sanitária para o resto do mundo. Essa é uma questão urgente a ser discutida.
Ao mesmo tempo, pensando em políticas públicas, precisamos voltar a ficar atentos. Digo “voltar” porque se trata de um movimento recalcitrante. Se considerarmos as políticas sanitárias desde o final do Brasil Imperial, veremos que os negros foram expulsos do centro do Rio de Janeiro e de outras capitais sob a acusação de que trariam insegurança sanitária e ambiental para o conjunto da população.
Eram as populações negras e pobres que estavam saindo da escravidão e ficando na rua. Foram removidas em nome da ciência e da segurança. Além disso, temos mais de um século de militarização de campanhas. A própria palavra “campanha” é um termo militar, assim como a “guerra” contra o mosquito, contra esta ou aquela doença, o mosquito é nosso “inimigo”, etc., caracterizando um patriotismo militarista associado às políticas de saúde.
Esse discurso ganha um novo formato agora com essas políticas de biossegurança internacionais, que associam políticas sanitárias com políticas de combate ao terrorismo. E há ainda o tema da securitização. As ciências atuariais, hoje, estão com um pé enorme dentro do campo da saúde, onde floresce a venda de apólices de seguro contra riscos de doenças e epidemias. Virou um assunto de segurança e securitário também. Precisamos ficar bastante atentos a esse processo de achatamento e conversão de políticas públicas de saúde em programas de segurança e de vigilância, muito mais do que ações que buscam de fato promover a saúde.
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‘Não há solução para saúde humana sem pensar injustiças da nossa relação com os animais e o ambiente’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU