"Até que ponto a emergência pode justificar a limitação dos direitos fundamentais? Existe um direito à saúde que possa prevalecer sobre qualquer outro?", questiona Domenico Marrone, teólogo italiano, em artigo publicado por SettimanNews, 07-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A epidemia de Covid 19 nos coloca diante de uma realidade que, até agora, não tínhamos visto: vivemos naquela que o sociólogo alemão Ulrich Beck chama de "sociedade global de risco". Uma sociedade na qual, inclusive devido às consequências indesejadas da ação humana, se multiplicam os riscos, com relação aos quais nossos conhecimentos são insuficientes.
Se a "sociedade global de risco" é o mundo em que vivemos, devemos nos resignar a testemunhar um processo de restrição estrutural das nossas liberdades ou podemos tentar adaptar às características dos tempos atuais as instituições e também a cultura jurídica, a fim de salvaguardar, tanto quanto possível, os valores de nossa civilização?
Diante dos riscos globais, também será necessário entender qual o papel que os cientistas e especialistas devem ter no processo de tomada de decisão. Estamos expostos a múltiplas fontes de risco. Podemos escolher entre vários riscos, decidindo limitar no máximo a um, ao custo de expandir os riscos agravados pela proibição.
Também podemos buscar um equilíbrio dos riscos, priorizando a exigência de conter o que é percebido como o risco mais grave sem atingir a expansão excessiva de outros riscos.
O que provavelmente é crucial para a tutela de nossas liberdades é a transparência do processo de tomada de decisão e a motivação para a escolha. É necessário dizer quais são exatamente os riscos que enfrentamos, que tipo de equilíbrio criar entre eles, o que se quer tutelar e motivar as razões.
Razões que neste, como em muitos outros casos que ocorrem na sociedade global de risco, se prestam a uma análise técnico-científica. A epidemia é combatida graças à ciência. São virologistas, epidemiologistas e muitos outros cientistas e médicos que podem nos dizer o que fazer.
Certamente os conhecimentos científicos são incompletos, mas, em qualquer caso, apenas o saber técnico-científico que usufrui de maior consenso na comunidade científica internacional pode indicar o que fazer.
As limitações de nossas liberdades e, portanto, as escolhas sobre como gerir os riscos deverão ser colocadas em um processo de tomada de decisão em que o papel de cientistas e especialistas seja institucionalizado e claramente visível.
Despontam de imediato algumas questões: até que ponto a emergência pode justificar a limitação dos direitos fundamentais? Existe um direito à saúde que possa prevalecer sobre qualquer outro?
Uma limitação tão severa dos direitos constitucionais só pode ser aceita por tempo limitado. A restrição imposta às nossas liberdades com a natureza peremptória da fórmula "ficar em casa", identificada como um meio fundamental para a tutela da saúde de cada um e de todos, não pode deixar de assumir um caráter excepcional, de modo que a perda de sua essencialidade, uma vez zerado ou circunscrito o perigo de contágio imediatamente a privará de qualquer legitimidade legal e permitirá reexpandir automaticamente o regime de ordinária legalidade.
Esta é uma passagem incontornável para que os embasamentos democráticos do nosso sistema permaneçam intactos. O subsequente percurso rumo à normalidade, que não será curto e certamente exigirá uma gradual e cuidadosa modulação das intervenções, pode ser gerido através das tradicionais ferramentas legislativas e organizacionais [1].
O nosso ser parte de uma sociedade global de risco nos imporá, de agora em diante, que nos equipemos para gerir os perigos e armadilhas da globalização, garantindo um nível aceitável de proteção aos direitos fundamentais, em conformidade com as normas constitucionais, da legislação europeia e das convenções internacionais.
Não é possível comprimir sine die direitos pessoais fundamentais, com base em um genérico princípio de precaução idôneo, enquanto tal, que prevaleça axiomaticamente em qualquer instância concorrente. Conferir autônoma dignidade jurídica às exigências da precaução traz consigo o risco de dar prevalência, sempre e em qualquer caso, às razões da emergência, impedindo qualquer atividade humana até que haja alguma certeza em torno do estado de saúde coletiva. Um resultado semelhante, na atual sociedade de risco, é quase impossível de alcançar; o próprio juízo de proporcionalidade das medidas vai necessariamente se deparar com resultados diferentes caso as propriedades relevantes da emergência mudarem [2].
O Tribunal Constitucional, em uma importante decisão de alguns anos atrás sobre o caso ILVA, lembrou-nos que "todos os direitos fundamentais tutelados pela Constituição estão em uma relação de integração recíproca e, portanto, não é possível identificar um deles que tenha prevalência absoluta sobre outros. A tutela deve sempre ser ‘sistêmica e não fracionada em uma série de normas não coordenadas e em potencial conflito entre si’ (...). Se assim não fosse, se verificaria a expansão ilimitada de um dos direitos, que se tornaria ‘tirano’ em relação às outras situações jurídicas constitucionalmente reconhecidas e protegidas, que constituem, em seu conjunto, expressão da dignidade da pessoa" (sent. n. 85 de 2013). Essas afirmações, pronunciadas na época para postergar o direito à saúde, o direito ao trabalho e à livre iniciativa econômica, devem ser lembradas hoje [3].
Em nossa Constituição, não existe uma hierarquia rígida e a priori de valores. O equilíbrio entre interesses e direitos constitucionais é móvel e historicamente situado, e é o resultado de múltiplos processos de integração política. Hoje o equilíbrio tende para o direito à saúde; amanhã, assim que as condições efetivas o permitirem, o arranjo de interesses atuais deverá necessariamente mudar. Nosso ordenamento não conhece uma hierarquia geral dos valores constitucionais.
O direito à saúde é o único direito que o Constituinte definiu como fundamental. E é significativa a formulação em termos negativos do art. 32 segundo o qual a lei não pode, em caso algum, violar os limites impostos pelo respeito à pessoa humana: ao estabelecer esse limite inderrogável para qualquer intervenção normativa em tema de saúde, o Constituinte evoca claramente o princípio da dignidade, com um implícito balanceamento de valores que não admite alterações. O respeito à pessoa humana e à sua dignidade é posto como valor não suscetível a balanceamento e como limite extremo do exercício do poder.
O direito à saúde em si não pode prevalecer sobre qualquer outro direito. Na situação atual, parece-me que, na realidade, o direito à vida esteja sendo questionado mais que o direito à saúde, e esse sim talvez seja um direito que poderíamos considerar "tirano", no sentido de que é capaz de prevalecer sobre qualquer outro.
Mas, obviamente, para estabelecer se o sacrifício de um direito fundamental necessário para garantir a vida seja justificado ou não, não basta considerar em abstrato o valor dos dois direitos a serem equiparados, porque mesmo que o sacrifício seja requisitado na presença de um perigo para a vida de uma ou mais pessoas, é preciso se perguntar qual é a consistência do perigo, se o perigo pode ser evitado de outra forma e se o sacrifício é proporcional ao perigo [4].
"As autoridades chamadas a tomar decisões para afrontar riscos sanitários e ambientais, às vezes, se encontram diante de situações nas quais os dados científicos disponíveis são contraditórios ou quantitativamente escassos: em tal caso pode ser oportuna uma avaliação inspirada pelo ‘princípio de precaução’, que não comporta a aplicação de uma regra, mas uma orientação ordenada a administrar situações de incerteza. Esta manifesta a exigência de uma decisão provisória e modificável com base em novos conhecimentos que eventualmente se venham a alcançar. A decisão deve ser proporcional às providências já tomadas em vista de outros riscos. As políticas cautelatórias, baseadas no princípio de precaução, requerem que as decisões sejam baseadas em um confronto entre riscos e benefícios previsíveis para cada possível opção alternativa, inclusive a decisão de não atuar. À abordagem baseada no princípio de precaução liga-se a exigência de promover todo o esforço para adquirir conhecimentos mais aprofundados, mesmo sabendo que a ciência não pode chegar rapidamente a conclusões acerca da ausência de riscos. As circunstâncias de incerteza e a provisoriedade tornam particularmente importante a transparência no processo decisório.” [5].
O princípio da precaução (PP) está destinado a crescer em importância na sociedade de risco. Se um comportamento traz consigo o risco de uma consequência prejudicial, a atividade deve ser proibida. Tudo isso é aparentemente muito persuasivo e pode facilmente se infiltrar em nosso ânimo perturbado por uma epidemia que ameaça a nossa vida e dos nossos entes queridos. Se, no entanto, apesar da pressão emocional que envolve todos nós, analisamos o problema com mais calma e atenção, vemos que a questão é mais complexa e que os valores em jogo são distintos [6].
Certamente não queremos nos privar do PP e não queremos renunciar às garantias que ele oferece a valores fundamentais, como a proteção da saúde e do meio ambiente. Mas isso não pode impedir-nos de ver suas ambiguidades ou, caso se preferir, sua complexidade.
O constitucionalista estadunidense Carl Sunstein, que dedicou um estudo aprofundado ao tema [7], nos traz que o princípio de precaução é paralisante porque, em essência, ao impor a proibição de uma determinada atividade traz consigo outros riscos que derivam precisamente da falta de realização de tal atividade, e que, para impedi-los, seria ao contrário necessário permiti-la. Então o que fazer? Que risco permitir? Com base em quais critérios e procedimentos fazer a escolha?
Entender e interpretar o princípio de precaução é tarefa de toda pessoa de fé, de todo cristão, de todo ser humano. Antes mesmo de se entregar a hermenêuticas típicas de apologistas e polemistas do passado, é necessário esclarecer esse princípio.
Se queremos nos perguntar o que pode propor hoje a tradição ético-teológica católica ao mundo secular sobre os problemas relacionados ao princípio de precaução, talvez valha a pena voltar um pouco e olhar com mais simpatia para a tradição da casuística que muitos de nós havíamos colocado no fundo da gaveta, no sótão ou até na cesta de lixo.
Isso nos lembra outra tradição, a do probabilismo, isto é, uma referência indireta ao fato de que estamos diante de situações em que existe uma espécie de dupla insegurança: a insegurança de como as coisas estão em um nível empírico e do que deve ser feito no nível normativo. Portanto, uma incerteza sobre as consequências que algumas de nossas intervenções podem ter e uma insegurança sobre o próprio valor das normas que usamos para poder resolver tal dilema.
Folheando os manuais de casuística com todas as suas tendências: do probabilismo, do equiprobabilismo e outros, do final do século XVI até meados do século XVIII, já encontramos essa problemática.
No fundo, se cavarmos em nossa própria tradição, não é a primeira vez, mesmo dentro do campo, digamos assim, que nos é específico, da comunidade de fiéis da Igreja Católica, que somos confrontados com a insegurança moral e essa insegurança moral é dupla porque é uma insegurança que diz respeito tanto à conexão dos fatos, sua sucessão e suas consequências, quanto à insegurança sobre as normas que governam tais escolhas.
Evidentemente, os casuístas do século XVII não pensavam nem no meio ambiente nem nas revoluções tecnológicas ou nas pandemias, mas a aplicaram a outros campos. Contudo, considero interessante lembrar essa tradição.
Por trás dos exemplos um tanto grotescos relatados, há uma grande sabedoria, ou seja, a sabedoria de dizer como se deve agir moralmente quando as consequências dos próprios atos não são conhecidas, mas são apenas prováveis. Portanto, uma sabedoria ética vinculada à gestão de ações das quais nós não conhecemos todas as consequências e a demanda sobre a validade de cada uma das normas quando essas normas, por sua vez, são apenas prováveis e não seguras.
Naquela época, as duas grandes frentes eram os laxistas e os rigoristas, que evidentemente travaram duras disputas entre si, mas não é por acaso que a linha que acabou sendo vencedora, principalmente mediante S. Alfonso de Liguori, foi a linha intermediária. E essa linha intermediária era como uma linha que dava espaço tanto à insegurança efetiva como à insegurança normativa.
Afinal, o que se salvou da tradição casuística é esse sentido pela insegurança efetiva e normativa. Na minha opinião, esse evento histórico tem um valor exemplar ainda hoje. Obviamente hoje não podemos apenas copiar, mas valeria a pena reexaminá-lo para ver se, aplicado aos nossos problemas da relação homem-natureza, ainda possa nos dizer algo.
Não podemos ignorar o fato de que, nesta situação de emergência sanitária, existe um dever de reflexão para o aprofundamento que deveria fazer suar "sete camisas" aos teólogos e até ao Magistério eclesiástico, aquele da gestão ética responsável do risco que é, por assim dizer, uma temática verdadeiramente nova. De fato, aquela de risco era basicamente uma categoria ainda desconhecida para a reflexão ético-teológica.
Mas vamos retornar ao princípio de precaução. Hans Jonas está de certa forma na origem da formulação do princípio de precaução. Sua filosofia do princípio responsabilidade, a obra fundamental em que ele coloca tais questionamentos [8], é a tentativa de reformular fundamentalmente o imperativo moral, o imperativo categórico de Kant segundo novas modalidades e dizendo: aja de maneira que suas ações sejam compatíveis com a permanência da verdadeira vida humana sobre a terra.
Hans Jonas escreveu seu livro como um contrapeso aos três volumes do filósofo Ernst Bloch sobre o princípio da esperança [9]. Bloch, que tenta propor ao homem do final do século XX uma ética utópica dizendo: o que te deve guiar na ação é o princípio da esperança. Se a espécie humana esquecesse todas as formas de coartação, de opressão, de luta de classes, etc., se orientasse-se para o princípio da esperança, emerge a sociedade sem classes. Diante dessa ética orientada de maneira exclusiva para o futuro, Hans Jonas diz "não!". Não ao princípio da esperança e "sim!" ao princípio responsabilidade. Hans Jonas, portanto, tende a tornar o princípio da responsabilidade uma espécie de imagem espelhada ou o verso da moeda do que era, em vez disso, o princípio esperança.
Bloch parte da ideia de que, em linha de princípio, existe um motor da história que direciona para o bem, necessariamente em direção para o bem, apesar de uma multidão de cadáveres que se encontram no caminho. Ele parece ouvir o eco do mantra destes últimos dias: "Tudo ficará bem".
Então, diante desse otimismo desarmante de Bloch, Hans Jonas responde que não; a hipótese catastrofista, a catástrofe é o que realmente nos espera se continuarmos a agir assim.
A tese de Jonas é especularmente contrária à formulada por Bloch. E assim, para Jonas, vale a heurística do medo; isto é, o imperativo é agir como se a tese mais catastrófica fosse a mais real. Aja de tal maneira que você sempre comece com o princípio de que a catástrofe é certamente a possibilidade, a mais real, não a mais provável, mas a mais real.
Embora admitindo a tese de Jonas provisoriamente, o problema da democracia permanece. O problema é que tal posição deve poder ter o acordo dos cidadãos; caso contrário, a alternativa é aquela de um paternalismo de Estado ou de uma "cienciocracia".
Portanto, permanece o fato de que, independentemente do tipo de solução que desejemos propor para esses dilemas, é uma solução que o teste da democracia também deve passar. Pensar que seja possível propor a heurística do medo como critério de escolhas políticas para aqueles que realmente têm responsabilidades de Governo dizendo: se por acaso você não conseguir obter uma maioria no Parlamento para essas medidas, faça-as de qualquer maneira, porque é melhor, de qualquer forma, uma tomada de posição de tipo ditatorial ou não democrática, mas cientificamente correta, em vez de uma decisão de tipo democrático: aqui temos um nó que certamente precisa ser resolvido.
Deve-se notar também que o princípio da precaução, de acordo com sua formulação clássica, não distingue suficientemente entre perigo e risco. Muito provavelmente, essa distinção também é difícil de implementar ou transmitir para a opinião pública.
Também deve ser feita uma distinção entre risco efetivo e risco potencial. Em alguns casos, o risco é parcialmente quantificável e, em alguns casos, é puramente potencial. As medidas a serem tomadas contra riscos efetivos são diferentes daquelas a serem tomadas contra riscos potenciais.
A expressão "incerteza da ciência" refere-se a várias formas de indeterminação do saber no campo científico: a complexidade dos conhecimentos, a falta ou insuficiência de dados, a imprevisibilidade dos resultados, a natureza estocástica das previsões em muitos setores de investigação científica [10].
Isso significa que, com frequência cada vez maior e em numerosos âmbitos, a comunidade científica, chamada a se pronunciar em relação a uma questão da ciência que exija regulamentação normativa, seja incapaz de expressar uma posição certa e unívoca, mas apresente uma variedade de teses díspares ou parcialmente divergentes. O caráter sempre aberto do caminho científico certamente representa uma característica definidora dele, mas a complexidade de alguns campos de pesquisa radicalizou esse caráter para formas indecidíveis.
Essa incerteza da ciência torna particularmente delicada a posição daqueles que, investidos na tarefa de intervir juridicamente e encontrando-se diante de uma pluralidade de descrições e previsões heterogêneas, precisem escolher a tese a ser privilegiada de maneira normativa.
Segundo Smith e Wynne[11], a ignorância pode assumir quatro conotações diferentes: risco, incerteza, ignorância, em sentido próprio, e indeterminação.
No caso de decisão em condições de risco, as variáveis que caracterizam um problema são conhecidas e a respectiva probabilidade de resultados diferentes, positivos e negativos, é quantificada.
Na hipótese de decisão em condições de incerteza, no entanto, embora os parâmetros de um sistema sejam conhecidos, a incidência quantitativa dos fatores envolvidos não é conhecida e, portanto, a probabilidade de um evento é ignorada.
Uma definição diferente qualifica a incerteza como "probabilidade de segunda ordem", no sentido de que, enquanto em caso de risco, a probabilidade de um evento pode ser quantificada, na hipótese de incerteza, apenas as probabilidades relativas de avaliações alternativas de risco podem ser quantificadas.
Chegando então à ignorância no sentido estrito, esta é definida como o conjunto de dados não disponíveis, cuja aquisição consciente - isto é, a consciência da ignorância - está subordinada à descoberta de novos elementos cognitivos.
A indeterminação, finalmente, é o conceito que resume o caráter tendencialmente aberto e condicional de todo conhecimento, em particular, a sua valência contextual e sua determinabilidade sociocultural.
Mas a complexidade da visão atual do saber científico também está ligada a fatores subjetivos, isto é, ao reconhecimento do caráter não neutro dos juízos científicos. Os componentes da avaliação que podem intervir nos juízos científicos foram diferenciados por Shrader-Frechette em três categorias: valores pré-conceituais (bias value), valores contextuais (contextual values) e valores constitutivos ou metodológicos (constitutive or methodological values).
Os bias values são quando os cientistas que formulam o juízo científico omitem dados ou os apresentam deliberadamente de forma inadequada para forçar uma interpretação; mas, segundo a autora, nas avaliações científicas essas posições unilaterais são facilmente identificadas e elimináveis.
Os contextual values incluem as preferências pessoais, sociais e culturais que, talvez de forma menos evidente, mas ainda assim invasiva, orientam um juízo, fazendo prevalecer alguns valores sobre outros.
Finalmente, os constitutive values são os mais difíceis de evitar, pois dizem respeito ao favor reconhecido pelos cientistas a determinadas teorias ou regras metodológicas mais do que a outras [12].
Os técnicos das avaliações devem expressar juízos sobre os dados a serem coletados; devem escolher como reduzir miríades de fatos a modelos manuseáveis; precisam realizar extrapolações de situações conhecidas para fatos desconhecidos. Essas operações nunca são neutras e unívocas, mas sempre orientadas a valores e propósitos.
Trata-se da passagem de uma visão acrítica do saber científico, assumido como objetivo e livre de incertezas, para uma posição consciente da não neutralidade das proposições científicas.
Tradicionalmente, as duas tendências opostas que dominaram o cenário teórico da análise dos risco foram: a posição que, considerando irracionais os medos do público, acredita que apenas técnicos podem fornecer avaliações objetivas e confiáveis dos riscos; e a teoria que, ao contrário, sustenta que apenas o público, diretamente afetado pelos riscos, pode e deve avaliar sua aceitabilidade.
A primeira, de orientação epistemológica neo-positivista, considera a avaliação de risco um juízo totalmente objetivo, neutro e isento de valores (value-free), e considera irrelevantes os riscos inferiores a certo nível de probabilidade. Essa perspectiva considera totalmente irracional que o público possa aceitar um risco de alta probabilidade e rejeitar um risco de baixa probabilidade (por exemplo, a probabilidade de um acidente de carro comparado a um acidente de avião); e negligencia a hipótese de que tal escolha possa depender de um sistema pessoal de valores, que se separe de uma objetividade predefinida.
A outra posição, alinhada a um relativismo cultural extremo e a um anarquismo epistemológico, afirma que os riscos são apenas constructos sociais: toda concepção da vida pode ter suas próprias justificativas e os riscos que cada um decide aceitar não podem ser avaliados com base em uma abstrata aceitabilidade. Esse ponto de vista reduz os riscos efetivos à percepção deles. Ambas as concepções resultam bastante insatisfatórias.
O que é importante notar aqui é que tanto a perspectiva do cientista quanto a perspectiva irracionalista sobre riscos facilmente levam a resultados políticos autoritários. A primeira, de fato, associa-se a uma perspectiva tecnocrática na qual a decisão cabe exclusivamente aos especialistas. A segunda, aparentemente mais democrática - no sentido tradicional de escolha da maioria - ainda pode ter resultados autoritários, contando exclusivamente com uma vontade política separada de justificativas de tipo racional (um puro voluntarismo político). De fato, ambas as perspectivas se movem na alternativa conhecimento ou irracionalidade, o modelo segundo o qual, fora do conhecimento certo, existe apenas a “opinabilidade” e a pura preferência instintiva.
A manifestação de riscos e incertezas ligados à implementação social da ciência deve levar em consideração uma dupla exigência. Primeiro, a necessidade de estender a consulta com os cientistas, sempre que surjam divisões de opinião sobre a possível ocorrência de eventos potencialmente prejudiciais; segundo, a oportunidade de envolver mais os cidadãos em decisões embasadas cientificamente, mas que afetam diretamente a sociedade civil.
A nomeação dos especialistas, a instituição e o funcionamento dos comitês científicos e técnicos e o próprio saber científico, sendo considerados expressão de um método objetivo e certo, não são considerados matéria relevante e problemática do ponto de vista da tutela que o Estado oferece aos cidadãos.
A necessidade de introduzir garantias e direitos específicos, bem como de promover uma maior participação democrática da sociedade civil, hoje diz respeito especificamente à regulamentação da ciência, uma área na qual o afastamento dos cidadãos até agora tem sido quase total.
Essa visão da relação entre ciência e sociedade não desconhece a natureza privilegiada da linguagem científica. A ciência pode dizer uma palavra de particular autoridade, mas não tem o poder de pronunciar a palavra exclusiva ou definitiva sobre as escolhas sociais.
Embora uma avaliação científica a mais completa possível seja indispensável, julgar qual o nível de risco aceitável para a sociedade constitui uma responsabilidade eminentemente política. Em nossa situação de emergência sanitária, a política simplesmente limitou-se a receber tout court o ditado da ciência ou assumiu para si a responsabilidade de tomar decisões?
Devem ser estabelecidas as condições para o credenciamento público dos diferentes saberes; é necessário identificar as formas de controlabilidade pública de tais conhecimento, os diferentes pressupostos metodológicos e axiológicos que inspiram seu funcionamento; nenhuma forma de saber pode ser afirmada apenas com base em uma predefinida validade-verdade.
Nesse sentido, o governo da ciência é um problema de democracia: aqui o termo democracia não se refere à prevalência de uma maioria, mas ao caráter aberto e não autoritário de nenhuma linguagem (nem mesmo aquela da ciência). Toda decisão social deve ser filtrada em várias instâncias e através de uma pluralidade de conhecimentos, comparações e negociações. Seria redutivo interpretar essa posição como anticientífica.
Em vez disso, trata-se de uma questão de promover uma compreensão mais profunda dos vínculos complexos entre ciência e sociedade (e a Igreja também faz parte da sociedade), identificando modalidades e procedimentos mais apropriados para a determinação das escolhas científicas e decisões que afetam a sociedade. Não se trata de atender impulsos reivindicatórios por partes de setores da sociedade (e, portanto, também por parte da Igreja), mas de não abdicar de responsabilidades que cabem aos indivíduos e aos vários setores da comunidade civil, para além de qualquer paternalismo estatal ou científico.
[1] Cf. G. Luccioli.
[2] G. Pitruzzella.
[3] Cf. C. Caruso.
[4] Cf. G. Lattanzi.
[5] Pontifício Conselho de Justiça e Paz, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 469.
[6] Cf. A. Bondolfi, Il principio di precauzione e la Dottrina Sociale della Chiesa, no Notiziario CEI 2/2006, 109-124
[7] Cf. Carl Sunstein, Il diritto della paura. Oltre il principio di precauzione, Il Mulino, Bologna 2010
[8] H. Jonas, Il principio responsabilità. Un’etica per la civiltà tecnologica, Einaudi, Torino 2002.
[9] Cf. E. Bloch, Il principio speranza. Milano: Garzanti ed. 2005.
[10] Cf. M. Tallachini, Principio di precauzione: epistemologia e diritto, em Notiziario-CEI 2/2006, p. 125-140.
[11] R. Smith, B. Wyne (eds.), Expert Evidence: Interpreting Science in the Law, London, Routledge 1989; B. Wyne, Uncertainty and Environmental Learning: Reconceiving Science and Policy in the Preventative Paradigm, “Global Environmental Change” 1992, June, p.111-127; cf.r. também J. HUNT, The Social Construction of Precaution, in T. O’Riordan, J. Cameron (eds.), Interpreting the Precautionary Principle, London, Earthscan 1994, p.117-125.
[12] K.S. Shrader-Frechette, Risk and Rationality, cit., p.41: “Even collecting data requires use of constitutive value judgments because one must make evaluative assumptions about what data to collect and what to ignore, how to interpret the data, and how to avoid erroneous interpretations”.