07 Mai 2020
Nossas formas tradicionais de ministério têm sido prejudicadas pelo peso da sua história: por uma boa dose de teologia obscurantista; pelo nosso direito canônico; pela inércia do povo de Deus induzida – infelizmente – pelas próprias formas do ministério; e, não menos importante, pela ambição, ciúmes e fraquezas dos nossos clérigos.
A opinião é de John N. Collins, especialista mundial na história e no significado da diaconia/ministério. Ex-missionário do Sagrado Coração, ele estudou no Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e na École Biblique (Jerusalém), e lecionou em universidades da Austrália.
Este artigo é uma adaptação de “Gateway to Renewal: Reclaiming ministries for women and men” [Portal para a renovação: reivindicando ministérios para mulheres e homens] (Ed. Morning Star Publishing, 2016), um dos vários livros de sua autoria.
O artigo foi publicado em La Croix International, 06-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os católicos romanos de língua inglesa estão em desvantagem quando se trata de discutir o sacerdócio.
Desde a infância, todos já ouviram falar do padre da paróquia, mas basta chamá-lo de “presbítero”, e muitos começam a pensar: “presbiteriano”? E lá isso significa o que a palavra grega original significava, “ancião”.
De uma maneira indireta, no entanto, através das antigas línguas francesas (prêtre) e alemãs (Priester), o “padre” surgiu em inglês [priest] como o ministro católico que “oferece o sacrifício da missa”.
Isso deixou a palavra “presbítero” disponível para os presbiterianos, que recorreram a ela quando eles começaram a surgir por volta dos anos 1560 e a mudaram em inglês para “anciãos” [elders].
Depois dos anos 1960, no entanto, a confusão se intensificou quando, no seu último dia, o Concílio Vaticano II (1962-1965) publicou o seu “Decreto sobre o ministério e a vida dos sacerdotes” (Presbyterorum ordinis). Esse documento em latim chamava os padres de “presbíteros”, um termo que não carrega nenhuma conotação do padre sacrificador.
Uma terminologia inconstante refletia as tensões na teologia do sacerdócio, e, nas décadas seguintes, o próprio sacerdócio sofreu severos contragolpes. Essa teologia derivou do fim da era medieval na formulação da 23ª Sessão do Concílio de Trento (1563).
Durante o primeiro ano do seu pontificado, João Paulo II emitiu uma “Carta aos Sacerdotes” (Quinta-feira Santa de 1979), na qual ele atribuía as desorientações da teologia do sacerdócio às forças da “secularização”.
Assim começou um movimento em direção àquilo que se chama de restauracionismo em relação ao modelo tridentino, cuja marca registrada é seu caráter estritamente sacerdotal: ou seja, o ofício exclusivamente sacerdotal de oferecer o sacrifício à divindade.
O sucessor de João Paulo II, Bento XVI, pressionou na mesma direção.
Ele inaugurou um Ano Sacerdotal em junho de 2009. Consciente daquilo que ele também identificou como “um contexto de secularização generalizada”, Bento XVI procurou restabelecer o padre como “um homem do sagrado, subtraído do mundo para interceder em favor do mundo”, como ele descreveu mais tarde.
Bento XVI atribuía esse conceito de sacerdócio à Carta aos Hebreus (cf. 5,1). Mas, como veremos, ele estava há muito tempo no centro da visão platônica do cosmos ("Político", seção 290d).
Estava embutida na cultura religiosa grega antiga a noção de “ministério” como diakonia, um espaço de trabalho entre o céu e a terra.
Em seu "Político", Platão (século IV a.C.) definiu o papel do adivinho ou vidente como intérprete das intenções dos deuses para os seres mortais. Isso era tão significativo em uma terra de oráculos que Platão estava avaliando a candidatura do adivinho para o mais alto papel na república.
A língua de Platão deu a ele a capacidade de nomear essa atividade de “habilidade diacônica”. Da mesma forma, a “habilidade diacônica” do padre era “dar aos deuses dons nossos (...) e conquistar deles para nós a doação de coisas boas”.
A mediação é essencial para as ideias transmitidas à mente grega por essas palavras com o radical diakon-, ou ministério.
Várias centenas de anos depois, outro filósofo grego chamado Temístio (+387 d.C.) ilustrou como o nosso sentido do tato difere dos outros sentidos.
Aquilo que tocamos é contíguo a nós: estamos em contato imediato. O processo é diferente quando vemos, ouvimos ou cheiramos algo.
Aqui, diz Temístio, precisamos de “um corpo intermediário [digamos o ar] agindo como meio” para que a visão, o som ou o cheiro cheguem até nós. Sua palavra para essa mediação é diakon- (de An. 125.9).
Desejando superar as “perigosas formas de reducionismo” da noção de sacerdócio, o Papa Bento XVI lamentou no discurso acima citado como “as décadas passadas” testemunharam a introdução de “categorias mais funcionalistas do que ontológicas”.
Ele disse que essas categorias só poderiam ser combatidas mantendo uma “hermenêutica da continuidade sacerdotal”.
Ele estava fazendo um ponto teológico de distinção, elogiando o sacerdócio de hoje por partir continuamente de Jesus de Nazaré e passar “através dos 2.000 anos da história de grandeza e de santidade, de cultura e de piedade que o Sacerdócio escreveu no mundo”.
Essa não é uma apologia que Bento provavelmente repetiria hoje. Nos seus dois últimos anos como papa, ele expulsou do sacerdócio “quase 400 padres” por abuso sexual (Guardian, 17-03-2014).
No entanto, ele ainda enfatizaria que o “pertencimento ontológico a Deus” por si só constitui um caráter “profético” dentro do sacerdócio e que, portanto, “somente no sacerdote [os fiéis leigos] poderão encontrar aquela Palavra de Deus que deve sempre estar nos seus lábios”.
Faço uma pausa para observar duas coisas. Primeiro, há uma mudança terminológica dos termos “presbiteral” para “sacerdotal”. E, segundo, é a função totalmente exclusiva do padre em relação à palavra de Deus.
A mudança continua sendo um marcador das tensões de longa data na teologia do sacerdócio.
No italiano original do curto discurso de Bento, o padre nunca é o presbítero cujo perfil havia sido tão proeminente no Presbyterorum ordinis. Em vez disso, o padre é o sacerdos: o “sacerdote” (14 ocorrências) é dotado de “sacerdozio” (10 ocorrências).
Vemos algo semelhante na exortação apostólica Christifideles laici, de 1998, que foi a resposta de João Paulo II à assembleia do Sínodo dos Bispos sobre os leigos que ocorreu no ano anterior.
Aqui, o termo “sacerdotal” ocorre 52 vezes, enquanto “presbiteral” repete-se apenas 8 vezes, sete delas em citações de documentos anteriores. No decreto conciliar Presbyterorum ordinis, o termo latino “presbítero” predominava sobre o termo “sacerdotal” da ordem (185 x 75).
O que há em um nome? Obviamente, muita teologia.
Quando a crise no número de clérigos superou a crise na identidade teológica do presbiterado, surgiram inúmeros comentários adivinhando as iniciativas pastorais às quais as autoridades eclesiásticas se voltariam.
No topo da lista, havia o chamado a ordenar viri probati (“homens probos”, digamos), casados ou não, e a não excluir o recall de padres que renunciaram.
É claro que muitos continuam pedindo a ordenação de mulheres, apesar da possibilidade de atrair a punição canônica.
Vários anos atrás, Tom Roberts, do National Catholic Reporter, retransmitiu uma conversa que ele teve com um proeminente pároco de Melbourne sobre como criar um novo modelo. O pároco só pôde dizer: “Eu não sei, eu não sei”.
Se precisarmos rescindir qualquer retorno à categoria da ontologia, podemos voltar a olhar para a linguagem que os primeiros cristãos adotaram com o objetivo de designar as funções fundamentais e animadoras das suas comunidades sob a liderança do seu Cristo.
A partir do nosso breve encontro com a terminologia acima, talvez essa linguagem já coloque sob uma luz diferente o ministério de Jesus, que veio “ministrar” (diakon-, Marcos 10,45), e o ministério de Paulo, cuja reivindicação mais urgente era a de ser um “ministro” (diakon-) do Cristo celestial (2Cor 11,23).
Tudo o que podemos fazer aqui é assegurar àqueles que estão profundamente preocupados com esses assuntos que os valores fornecidos por uma leitura autêntica da diakonia nos conferem uma versatilidade magistral ao organizar um ministério apropriado para a Igreja em qualquer contexto eclesial e em qualquer estágio histórico da sua experiência.
Nossas formas tradicionais de ministério têm sido prejudicadas pelo peso da sua história: por uma boa dose de teologia obscurantista; pelo nosso direito canônico; pela inércia do povo de Deus induzida – infelizmente – pelas próprias formas do ministério; e, não menos importante, pela ambição, ciúmes e fraquezas dos nossos clérigos.
Lucas, o evangelista, bem no começo dos nossos registros sobre o ministério, nos mostrou como deixar o ministério livre.
No muito mal entendido sexto capítulo dos seus Atos dos Apóstolos, quando as viúvas gregas são negligenciadas no “ministério” diário dos Doze, estes não dizem: “Bem, os seus genros que cuidem delas”. Não. Os Doze fazem algo diferente, algo ao modo eclesial. Os Doze são criativos no ministério e instituem uma extensão deles mesmos. De acordo com Atos 1, o Senhor lhes deu uma comissão ministerial (diakonia) para proclamar o Evangelho. Portanto, nesse momento de necessidade, eles consultam seus irmãos e – em um processo de seleção que eles deixam a cargo dos fiéis, em oração juntos e na imposição das suas mãos – o ministério da jovem Igreja se expande. Dessa maneira, os pastores equipam os santos, edificam o corpo de Cristo e “fazem o trabalho de um evangelizador e desempenham bem o seu ministério/diakonia” (2Timóteo 4,5).
Ficamos com a pergunta: o que impede que as nossas atuais lideranças da Igreja façam o mesmo?
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Tudo é o padre? Artigo de John N. Collins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU